“É preciso inovar é necessário criar uma nova institucionalidade para a Saúde”. A orientação é do pesquisador em Saúde Coletiva Alcides Silva de Miranda, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenador da Comissão de Política, Planejamento e Gestão da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). Como colaborador da rede Brasil Saúde Amanhã, em setembro Alcides participou do seminário “Brasil Saúde Amanhã: horizontes para os próximos 20 anos”, na Fiocruz, em que apresentou o painel “Segmentos Institucionais de Gestão em Saúde: descrição, tendências e cenários prospectivos”. Na ocasião, discutiu o pluralismo institucional de serviços de Saúde no Brasil, em termos de suas naturezas jurídicas e modalidades administrativas, e descreveu dois cenários futuros: um inercial, mais pessimista para a saúde pública, e outro alternativo, mais compatível com o ideário do SUS. Nesta entrevista, Alcides aprofunda os cenários futuros para o Brasil e o setor Saúde e aponta a regionalização do SUS como oportunidade de inovação. “Se é possível inovar, precisamos inovar na gestão das regiões de saúde”, afirma.

Como foi realizado o estudo sobre as tendências futuras para a gestão do sistema de saúde, do ponto de vista dos pluralismos institucionais do SUS?

Estudos de futuro podem ser desenvolvidos por diferentes metodologias, que vão desde previsões feitas pela análise de tendências políticas até o uso de dados, relacionando passado e futuro. Quando analisamos tendências a partir de dados objetivos, podemos projetá-las para o futuro considerando as muitas variáveis que podem alterar esse percurso. São variáveis-chave, que, se alteradas, podem influenciar o intercurso das tendências e até modificá-las. Portanto, as tendências projetadas para o futuro podem ser inerciais, dando continuidade a séries históricas, ou indicar novos caminhos, a partir de mudanças nas variáveis-chave. Normalmente, projetamos cenários para uma tendência inercial – uma projeção do passado sem alterações significativas nas variáveis-chave – e cenários alternativos, projetados considerando possíveis intercorrências e correções de rumo.

Essa foi a estratégia metodológica adotada pela rede Brasil Saúde Amanhã. Nossa encomenda foi analisar os tipos institucionais que coexistem no setor de Saúde, sobretudo suas naturezas jurídicas e modalidades administrativas. Levantamos dados de uma série histórica de dez anos sobre os segmentos institucionais de serviços de saúde no Brasil e verificamos seus perfis de crescimento e decréscimo. Projetamos essas tendências para 2030, sem considerar a alteração de variáveis-chave, e assim chegamos ao chamado cenário inercial. Depois, identificamos as variáveis que poderiam alterar o intercurso das tendências inerciais e projetamos cenários alternativos. Como variável-chave consideramos, por exemplo, a reforma da Lei de Responsabilidade Fiscal e do modelo de financiamento setorial e o modelo hegemônico de atenção á saúde buscando inferir qual seria o impacto dessas medidas nos diferentes segmentos institucionais da Saúde.

Identificar as tendências de longo prazo e as variáveis-chave capazes de impactar transformações decisivas nos cenários futuros do país e da Saúde nos permite inferir as estratégias políticas, sociais e institucionais necessárias para garantir o contrato social da Constituição Federal e o direito à saúde. Então, embora os cenários projetados para 2030 sejam pessimistas na perspectiva da política pública e do SUS, nós temos o compromisso histórico, uma responsabilidade com as futuras gerações, de tomar agora as decisões e iniciativas necessárias para alterar o intercurso da tendência inercial, incidindo, modificando e reorientando os rumos do país pela estratégia da política pública, da garantia do direito social à saúde, da política redistributiva, da equidade, da universalidade, da atenção integral à saúde e da participação da população nos processos de gestão do SUS.

O senhor aponta o pluralismo de institucionalidades que coexistem na gestão do SUS como um entrave à universalidade e à equidade. Nesse sentido, quais os cenários para o sistema de saúde nas próximas décadas?

O pluralismo de tipos institucionais nos serviços de saúde é uma característica histórica do sistema de saúde brasileiro. Mas o pluralismo institucional, em si, não é o problema. A Constituição Federal o reconhece por meio de um setor suplementar não vinculado ao SUS e de um setor complementar que presta serviços ao SUS. Todos esses segmentos que caracterizam o pluralismo institucional da Saúde são regulados pelo SUS – daí o caráter de unicidade do sistema de saúde; daí ele ser Único. O SUS tem a prerrogativa de regular o conjunto de outros segmentos institucionais da Saúde e, por isso, o que ocorre atualmente é grave. Embora,em seu artigo 197, a Constituição Federal estabeleça tal prerrogativa para o SUS, ao agenciar serviços para o terceiro setor, segmentos não estatais e estatais de direito privado, como empresas púbicas e fundações estatais, o Estado brasileiro não apenas transfere responsabilidades na prestação de serviços. Ele também transfere prerrogativas de autoridade pública e sanitária. E assim esvazia o SUS.

Portanto, é preciso qualificar o pluralismo institucional da Saúde – e as suas tendências para as próximas décadas. O cenário inercial projetado pela rede Brasil Saúde Amanhã se caracteriza por um pluralismo institucional agenciado pelo empresariado e pela migração de serviços, da responsabilidade da gestão e da autoridade sanitária da égide do direito público para o direito privado. Isso tende a acontecer, principalmente, porque os contratos firmados com as agências do capital privado se restringem à definição da produção de procedimentos biomédicos e a alguns critérios de satisfação dos consumidores, sem salvaguardar os princípios e diretrizes do SUS. A regulamentação e posterior regulação desses contratos tende a obedecer à mesma lógica e, assim, tendem a ser regulados somente o acesso, a produção e o consumo de procedimentos biomédicos – não necessariamente na perspectiva das políticas públicas. Em longo prazo, essa dinâmica irá reduzir o contrato social da Saúde, previsto na Constituição Federal, a um mero contrato de gestão e produção de serviços e procedimentos biomédicos pelas agências privadas.

O estudo aponta, ainda, a tendência hegemônica à mercantilização da Saúde e ao fortalecimento do setor suplementar, desvinculado do SUS e subvencionado pelo Estado. Trata-se de uma modalidade de capitalismo sem risco: subvencionada pelo Estado e com regulação branda, que limita excessos mas não regula de fato. Seguindo esta tendência, o futuro seria a consolidação de um tipo de pluralismo institucional caracterizado por uma fragmentação e segmentação gerida por oligopólios privados subvencionados e por oligopólios agenciados pelo Estado, por meio de contratos para prestação de serviços. Coexistiriam, ainda, dentro do próprio Estado, modalidades administrativas sob a égide do direito privado, ou seja, empresas públicas e fundações estatais funcionando sob essa mesma lógica de mercado. Segundo nosso estudo, este é o cenário hegemônico preponderante para 2030: um pluralismo institucional agenciado pelo capital privado, desvinculado do SUS e subvencionado pelo Estado brasileiro.

Em longo prazo, quais as consequências desse cenário inercial para conservação do SUS, conforme previsto pela Constituição Federal?

A concretização do cenário inercial tende a levar, em primeiro lugar, à quebra do princípio da integralidade na Saúde, com sérios comprometimentos aos princípios de universalidade e equidade. Todas essas tendências relacionadas ao agenciamento do sistema de saúde pelo capital privado resultarão na redução do contrato social da Saúde a um contrato para gestão de procedimentos biomédicos e à redução do direito social ao “direito de consumidores”. E a responsabilidade pela promoção, proteção, assistência e reabilitação da saúde, nos termos da atenção integral, tende a ser reduzida à produção e ao consumo de procedimentos biomédicos. Em seguida, a universalidade do sistema de saúde tende a ser reduzida ao conceito de universalismo básico, com acesso universal a determinados pacotes de procedimentos biomédicos ou “padrões de integralidade” – sobretudo na Atenção Básica e nos procedimentos de média e alta complexidade de custo elevado. Os serviços de alta complexidade que são interessantes para o mercado serão mantidos na saúde suplementar e complementar, como os de apoio terapêutico e diagnóstico. E o que for muito caro e der prejuízo ao mercado será universalizado por meio da rede pública.

Dessa forma, universaliza-se uma Atenção Básica de baixa resolubilidade, subfinanciada, mais focada em denominadores populacionais de risco e não em toda a população; universaliza-se os serviços de alto custo, que não são lucrativos para o mercado; e agencia-se os procedimentos de média e alta complexidade que sejam lucrativos  por meio de prestadores de serviço qualificados como de interesse público, com provimento de recursos públicos, mas que operam com margens de autonomia e de autoridade sanitária que não são propriamente de interesse público. Além disso, devem preponderar os segmentos de serviços privados suplementares, não vinculados ao SUS, mas subvencionados pelo Estado.

Recentemente, ocorreu a alteração de uma variável-chave relevante: a abertura da Saúde ao capital estrangeiro. Com isso, o cenário para os segmentos de serviços suplementares não vinculados ao SUS se altera significativamente, tornando-se ainda mais pessimista para o SUS. É um cenário que coloca o sistema de saúde pública em uma condição de acessório a um grande sistema privado subvencionado e a um subsistema público agenciado pelo capital privado. Infelizmente é um cenário muito ruim.

Por sua vez, um cenário alternativo, ocorreria por meio da alteração de variáveis-chave como a Lei de Responsabilidade Fiscal, o financiamento setorial e a reorganização do sistema de saúde a partir do modelo da atenção integral. Seria um cenário mais coerente e mais compatível com os princípios e diretrizes do SUS.

Como os atuais arranjos federativos e processos regulatórios da Saúde impactam a garantia do SUS como um sistema de saúde público, universal e de qualidade? Quais as tendências para as próximas décadas?

O Pacto Federativo da Saúde é de suma importância e singular em todo o mundo. Ele tem papel crucial na Saúde, ao definir princípios e diretrizes para os entes federados. O problema é que, até hoje, não há legislação complementar insuficiente para regulamentá-lo. Então os arranjos federativos vêm sendo criados pelos próprios entes federados. No caso da Saúde, inventamos as Comissões Intergestores Bipartite, Tripartite e Regionais para dar conta das relações intergovernamentais. Mas a falta de um direcionamento claro sobre como devem ocorrer as relações entre os entes federados tem levado à fragmentação de subsistemas e serviços de saúde: há municípios que optam por agenciar Organizações Sociais de Saúde (OSS), outros que criam empresas públicas e os que terceirizam serviços. Olhando para o mapa do Brasil e para a distribuição dessas modalidades institucionais em todo o território nacional, percebemos uma multiplicidade de iniciativas fragmentadas, que tornam o pluralismo institucional muito frágil. Isso decorre, sobretudo, da falta de coesão entre as decisões e políticas da união, dos estados e dos municípios.

Uma das variáveis-chave que identificamos ser capaz de alterar o intercurso da tendência inercial e projetar um cenário mais favorável para o SUS é a da inovação institucional. Na prática, isso significaria criar uma nova institucionalidade para a Saúde, sob a égide do direito público; tripartite, com participação de municípios, estados e união; que pudesse retomar o direcionamento das políticas públicas a favor do SUS. É preciso inovar na criação de uma nova institucionalidade para a Saúde, de direito público, intergovernamental, que possa ter planos de cargos e salários únicos para trabalhadores do SUS; que possa ter economias de escala e de escopo; que possa definir e conjugar uma série de iniciativas com base nos âmbitos regionais, organizando as regiões de saúde. Caso contrário, caminharemos para o cenário inercial, que é o cenário de mercado, de mercantilização de procedimentos biomédicos, de garantias mínimas de direito do consumidor, de negação do contrato social da Constituição Federal.

Que medidas devem ser tomadas no presente para que o cenário desejável possa se concretizar?

Criar uma nova institucionalidade para a Saúde, por si só, não é suficiente. Este é apenas um aspecto do problema. É necessário conjugar uma série de iniciativas e medidas políticas para que se possa viabilizar o que estamos chamando de uma nova institucionalidade para a Saúde. O subfinanciamento setorial é gravíssimo e, inclusive, é utilizado como discurso para justificar o empresariamento e a mercantilização da Saúde. Portanto, é necessário reformular o modelo de financiamento e reorientar a organização do sistema de saúde, com ênfase na Atenção Primária, em medidas de promoção da saúde de natureza intersetorial. É preciso, também, adequar a Lei de Responsabilidade Fiscal à realidade dos municípios. Atualmente, mesmo que haja um maior aporte de recursos financeiros na Saúde, não seria possível expandir a oferta de serviços para a população devido às restrições à contratação de profissionais pela administração pública, direta ou indireta. A maior parte dos municípios brasileiros já saturou o limite de contratação imposto pela Lei de Responsabilidade Fiscal e seria importantíssimo alterar este mecanismo legal ou estabelecer uma contrapartida de Responsabilidade Social no que se refere à expansão de serviços imprescindíveis para a população brasileira.

Além de tudo isso, eu considero a perspectiva da regionalização uma grande oportunidade de inovação institucional na Saúde; um momento apropriado para o país discutir os termos do financiamento setorial, de forma a garantir um modelo de atenção adequado ao perfil social e epidemiológico da população brasileira. Criamos as 439 regiões de saúde e, agora, há uma discussão substancial sobre como será a gestão das regiões de saúde. Não basta criá-las no mapa ou fazer arranjos normativos ou programáticos imediatos. É preciso estratégias institucionais para viabilizar a gestão no cotidiano de cada região de saúde. Portanto, se é possível inovar, precisamos inovar na gestão das regiões de saúde. Esta seria uma alteração de variável-chave que mudaria substancialmente o intercurso do cenário inercial, tão pessimista para o SUS.

Bel Levy
Saúde Amanhã
19/10/2015