O crescente uso de novas tecnologias digitais nos serviços de saúde, acelerado pela pandemia de Covid-19, pode ter impactos nos processos de trabalho e cuidado em saúde, na organização e dinâmica do próprio sistema de saúde. Esse assuntos estiveram em pauta no seminário “O Brasil depois da pandemia: telessaúde – tendências e perspectivas”, realizado no dia 22 de novembro pela iniciativa Brasil Saúde Amanhã, disponível gratuitamente no canal da VideoSaude Distribuidora da Fiocruz no YouTube.

O debate recebeu os pesquisadores Ana Estela Haddad, da Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo (USP); Fernando Aith, da Faculdade de Saúde Pública da USP; Janete Castro, do Núcleo de Estudos de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), e Ligia Bahia, do Instituto de Estudos de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Também contou com a moderação de José Noronha, coordenador da iniciativa Brasil Saúde Amanhã, abertura dos sanitaristas Paulo Gadelha, coordenador da Estratégia Fiocruz para a Agenda 2030, e Marismary De Seta, vice-diretora da Escola de Governo em Saúde da Ensp/Fiocruz, além de contribuições de Angélica Baptista Silva, da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), e de Matheus Falcão, do Núcleo de Pesquisa em Direito Sanitário da USP.

“Este encontro faz parte de uma série debates virtuais sobre o Brasil – e o sistema de saúde – após a pandemia de Covid-19 e integra de um esforço institucional da Fiocruz para a realização da prospecção estratégica do Sistema Único de Saúde (SUS). Trabalhamos em sintonia com a Estratégia Fiocruz para a Agenda 2030 e com um horizonte móvel de 20 anos, que nos permite trazer contribuições concretas para o futuro do país e do sistema de saúde”, apresentou Noronha.

Paulo Gadelha frisou que a telessaúde é um dos eixos que ancoram toda a transformação digital da Saúde e que esse processo deve ser orientado pelos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). “A pandemia de Covid-19 ampliou profundamente a digitalização dos meios interacionais e essas transformações estão presentes, também, no campo da Saúde, tanto na coleta de dados das inúmeras pesquisas científicas quanto nas questões relacionadas à prestação de cuidados à população. Considerando o lema da Agenda 2030 – ‘não deixar ninguém para trás’ – precisamos garantir que essas transformações não gerem ainda mais desigualdades no acesso aos serviços de saúde ”, destacou o sanitarista.

Marismary afirmou que a mudança tecnológica do setor não pode significar um entrave ao acesso ao serviços de saúde. “Desde 2007, a iniciativa privada tem cada vez mais espaço na assistência à saúde. Em 2014, essa tendência ganhou força com a abertura do setor ao capital financeiro internacional. E a saúde digital também é impactada por esse cenário”, pontuou a pesquisadora.

Democratização do acesso: saúde digital inclusiva

Ana Estela Haddad iniciou a rodada de exposições com uma contextualização histórica sobre telessaúde e discorreu sobre as diversas transformações digitais que ocorreram ao longo dos 30 anos do SUS. “Em 2005, o conceito de eSaúde (do inglês, eHealth) tornou-se uma recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS) para a ampliação do acesso à saúde no mundo. E, desde 2007, a telessaúde está presente no SUS, com três redes constituídas em um ecossistema digital: Telessaúde Brasil, UNA-SUS e R.U.T.E, que integram as dimensões da atenção, da gestão, da pesquisa e do ensino”, informou a pesquisadora.

Janete Castro e Fernando Aith apresentaram os resultados de pesquisa sobre a regulação do teletrabalho em saúde no Brasil, desenvolvida pelo Observatório de Recursos Humanos da UFRN em parceria com o Centro de Estudos e Pesquisas em Direitos Sanitários (CEPEDISA) da USP, com financiamento do Fundo Nacional de Saúde (FNS). Janete destacou que as precárias condições de trabalho do setor Saúde são anteriores à pandemia de Covid-19 e que a emergência sanitária aprofundou e tornou mais evidente a precariedade das condições de trabalho na Saúde. “Nossos estudos sinalizam que, após a pandemia, dificilmente , a situação de teletrabalho irá retroagir para o estágio anterior. A expectativa é que a prescrição de serviços de saúde por teleconsultas se consolide como modelo de fornecimento no Brasil. Essa realidade demanda a atenção da sociedade para evitar possíveis e potenciais abusos e desvios éticos profissionais, notadamente no que se refere aos direitos associados a privacidade, intimidade, segurança e saúde”, ponderou.

Sobre a regulamentação e normatização da telessaúde no Brasil, Aith complementou: “O termo regulação é polissêmico, composto por basicamente três dimensões. A concepção política, no que tange à regulação estatal sobre o comportamento humano; a concepção sociológica, ligada ao controle social, que é essencial para pensarmos a regulação da saúde digital de forma mais ampla; e a concepção jurídica, relacionada aos comandos normativos de um órgão estatal criado para este fim. O que percebemos é que, hoje, no Brasil, a saúde digital é um campo aberto à regulação. A via normativa, jurídica, ainda deve ser bastante aperfeiçoada, o que deve ser fruto de um processo político e preferencialmente democrático na sociedade brasileira”.

Ligia Bahia compartilhou reflexões sobre a agenda da transformação digital no sistema de saúde do Brasil e ressaltou que as reais consequências da telessaúde para o diagnóstico, o tratamento e a prevenção das doenças, para a pesquisa, a avaliação e a educação continuada dos profissionais de saúde ainda são obscuras. Muitas vezes as novas ferramentas tecnológicas são vendidas como intrinsicamente benéficas, mas sem dados e comprovações sobre os impactos na saúde e os desfechos clínicos.  “As empresas de saúde privada, de origem predominantemente norte-americana, vendem o uso de telemedicina para reduzir os atendimentos emergenciais – e, com isso, os custos da atenção à saúde. Mas qual será o impacto dessa redução para a saúde dos usuários dos serviços de saúde?”, questionou.

No debate, Angélica Baptista Silva discutiu o avanço da privatização da Saúde a partir do aumento de teleconsultas e a relevância das discussões sobre a regulamentação da telessaúde, especialmente no que tange às interfaces da Lei de Proteção de Dados com a Saúde Pública. Matheus Falcão, por sua vez, defendeu o fortalecimento de uma política nacional digital para pensar as implicações da telessaúde. O seminário on-line foi mais  uma atividade do projeto “Implicações das Tecnologias Digitais nos Sistemas de Saúde”, liderado por Marcelo Fornazin e Leonardo Castro, pesquisadores da Ensp/Fiocruz, e desenvolvido no âmbito da iniciativa Brasil Saúde Amanhã com apoio da Estratégia Fiocruz para a Agenda 2030.

Para assistir ao seminário, acesse o vídeo no canal da VideoSaude Distribuidora da Fiocruz.