O Estado tem importante papel no fortalecimento das bases produtivas da indústria farmacêutica no país – nicho de mercado que tende a aproveitar janelas de oportunidade e render bons resultados no futuro. Essa é a opinião do economista Marco Antonio Vargas, professor do Departamento de Economia da Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisador associado do Grupo de Inovação em Saúde da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca(Ensp/Fiocruz). Como colaborador do projeto Brasil Saúde Amanhã, Vargas é um dos autores do artigo “Indústrias de Base Química e a Biotecnologia voltadas para a Saúde no Brasil: panorama atual e perspectivas para 2030”, que integra o quinto volume do livro “A Saúde no Brasil em 2030: Diretrizes para a Prospecção Estratégica do Sistema de Saúde Brasileiro”. Sobre a relação entre mercado e políticas públicas, o pesquisador é categórico: “É necessário que as lógicas sanitária e econômica convirjam e se articulem. Deixar o mercado atuar livremente não é, nunca foi e nunca será a solução mais adequada para a Saúde”, defende.

Em suas análises para o projeto Brasil Saúde Amanhã, o senhor aponta a necessidade de pautar a atuação futura do Complexo Econômico e Industrial da Saúde a partir de nichos estratégicos de mercado. Como isso poderia ser feito?

É preciso direcionar o desenvolvimento do Complexo Econômico e Industrial da Saúde de acordo com os nichos de mercado que estão postos nacional e globalmente. No entanto, não se pode perder de vista o objetivo primordial deste setor, que é servir ao sistema de saúde e às necessidades da população brasileira. É preciso conquistar esse equilíbrio. Pela iniciativa privada, a orientação seria investir maciçamente em medicamentos para doenças crônico-degenerativas e neoplasias – o que dá muito retorno financeiro. Do ponto de vista das políticas públicas, porém, precisamos verificar se este é o melhor foco de investimento para o sistema de saúde ou se existem outras prioridades. Em outras palavras, essa identificação de nichos estratégicos deve necessariamente refletir as especificidades do sistema de inovação em saúde do país, seja no tocante às características da base produtiva e tecnológica em saúde como em relação às particularidades de seu arcabouço institucional que incorpora, entre outros elementos, o modelo de atenção à saúde (universal, integral e equânime) e o marco regulatório da produção e inovação em saúde. Isso pode parecer óbvio, mas percebe-se frequentemente um claro descolamento entre os programas e políticas adotados pelo governo e esse contexto sistêmico que marca o processo de inovação em saúde no país.

Diante disso, há um conjunto de macrotendências que devem ser analisadas de forma a melhor direcionar o desenvolvimento da indústria farmacêutica no país. Há mudanças no perfil sociodemográfico brasileiro, com o envelhecimento da população e o aumento da prevalência de doenças crônico-degenerativas, e há mudanças na política de Saúde, com ênfase nas políticas de prevenção, e outras  tendências como a desospitalização, uso crescente da telemedicina, etc. entre outras A base produtiva tem que estar preparada para atender essas questões e, também, para adentrar no nicho das novas plataformas tecnológicas.

Levando tudo isso em consideração, temos boas e más notícias. A base produtiva brasileira ainda é frágil para responder às demandas de medicamentos para o sistema de saúde e a balança comercial mostra um déficit de natureza estrutural. E, além disso, a indústria farmacêutica nacional ainda está muito aquém dos padrões globais de investimento em Pesquisa e Desenvolvimento (P&D), por diversas razões. Uma grande empresa farmacêutica norte-americana ou francesa investe, em média, 16% de seu faturamento em atividades de P&D. No Brasil, esse investimento é, em média, de 3,3% nas maiores empresas (empresas com mais de 500 empregados), segundo dados da Pesquisa de Inovação Tecnológica do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (Pintec/IBGE). E nessa indústria – que é um oligopólio baseado no conhecimento – o esforço inovativo e economias de escala em P&D são ferramentas essenciais de competição.

Em compensação, há uma diferença de escala que não pode ser ignorada. Uma grande farmacêutica brasileira fatura hoje em torno de US$ 1 bilhão. Uma grande farmacêutica americana fatura em torno de US$ 60 bilhões. É uma briga de Davi e Golias: a escala de produção é muito diferente e o esforço inovativo também. Encontramos aí, então, uma janela de oportunidade. Se ainda não é possível atingirmos o nível de investimento em P&D praticado pelos Estados Unidos ou pela França, podemos nos esforçar para ampliar os investimentos em inovação em alguns nichos estratégicos. E já estamos fazendo isso: o investimento em atividade inovativa na indústria farmacêutica brasileira está melhorando muito. Em termos de valores absolutos ainda é pouco, mas já é possível enxergar uma tendência de aumento dos investimentos. Hoje, mais de 60% dos investimentos em atividades inovativas são direcionados para atividades de P&D interno e externo, enquanto que esse percentual era de apenas 25% em 2000, de acordo com dados da Pintec. Além disso, as empresas mais dinâmicas no cenário nacional investem de 4% a 5% de seu faturamento em P&D.

Como o desenvolvimento da Indústria Farmacêutica afeta o futuro do Sistema Único de Saúde (SUS)?

Ter uma indústria farmacêutica forte e competitiva é estratégico para o sistema de saúde, tanto em termos de soberania nacional em saúde como do ponto de vista econômico e tecnológico. Antigamente, Saúde era “vendida e mal comprada” apenas como um gasto necessário, por ser um direito de todos que deve ser assegurado pelo Estado. Depois, essa percepção passou a comportar o argumento de que o setor Saúde é, também, atraente para a política industrial porque requer emprego qualificado, valor agregado e inovação tecnológica. Países do BRICS, como a Índia e a China, já mostraram que é possível utilizar o desenvolvimento da base produtiva em saúde – particularmente de fármacos e medicamentos –   para promover crescimento e ampliar exportações com maior valor agregado. Nos dois exemplos, o papel do Estado e das políticas públicas, foi fundamental para definição de uma nova estratégia de desenvolvimento do setor farmacêutico.

Existe uma demanda crescente, uma necessidade de ampliar o escopo de atendimento e possibilidades de incorporação de novos medicamentos. Por isso, a nossa expectativa é que as questões envolvendo a inovação na base produtiva da indústria farmacêutica nacional se ampliem e se aprofundem no horizonte dos próximos 20 anos. Neste contexto, é necessário promover a articulação entre o sistema de inovação em saúde  e o sistema de bem estar social, para garantir que a inovação na base produtiva da saúde atenda, efetivamente, à demanda em saúde da população brasileira – que nem sempre coincide com a lógica do mercado farmacêutico.

Em outras palavras, a política pública voltada para as necessidades da população é importante porque a lógica de mercado é muito perversa – e, entretanto, não pode ser ignorada. Ao contrário, precisamos aprender a lidar com ela e, ao mesmo tempo, fortalecer a base produtiva nacional. Atualmente, a base de produção farmoquímica está muito fragilizada, há pouquíssimas empresas. A indústria farmacêutica cresceu e se fortaleceu com a política dos genéricos, mas essa onda acabou. As tendências da indústria farmacêutica em âmbito global afetam a indústria nacional e por isso precisamos estar atentos, do ponto de vista da política pública, para a forma de coordenar esse jogo, que não é fácil. Em suma, é necessário que as lógicas sócio-sanitária e econômica convirjam e se articulem. Deixar o mercado atuar não é, nunca foi e nunca será a solução mais adequada para a Saúde.

Quais as perspectivas para o futuro do Complexo Econômico e Industrial da Saúde, no horizonte dos próximos 20 anos?

A partir do estudo desenvolvido para o projeto Brasil Saúde Amanhã, percebemos que, de fato, houve um processo de transformação no setor produtivo nacional induzido por algumas políticas públicas. Mas ainda estamos com déficit industrial e o peso dos medicamentos biológicos na balança comercial ainda é muito alto – e apresenta tendência de crescimento. Esses insumos correspondem a 4% do volume e a 40% do valor das compras feitas pelo SUS nos componentes especializados, por exemplo. Ou seja: compra-se muito pouco e paga-se muito caro. Os gastos públicos federais nesta área, destinados majoritariamente aos medicamentos biológicos, como anticorpos monoclonais e outros, são outro problema que deve ser enfrentado com investimentos maciços na base produtiva nacional.

Numa perspectiva mais ampla, o quadro global é de transformação acelerada e o Brasil ainda tem um grande potencial para crescimento e fortalecimento do setor farmacêutico. Outro dado interessante de nosso país é que a mudança no perfil de investimento em inovação no setor farmacêutico brasileiro tem sido fomentado principalmente pelo esforço inovativo das empresas de capital nacional. As multinacionais não mudaram consideravelmente o perfil do seu esforço inovativo no país no decorrer da última década. O que é lógico, pois o grosso dos investimentos em P&D dessas empresas está concentrado em seus países-sede. Afinal, investir em inovação é uma ação estratégica de Estado.

Então, há nichos estratégicos onde é possível crescer. Avaliamos que para avançar no fortalecimento do Complexo Econômico e Industrial da Saúde o país deve investir em duas frentes: onde não há conhecimento estabelecido e, portanto, há muito a construir, e onde já temos competência acumulada. Em termos prospectivos, temos que pensar, portanto, nas janelas de oportunidade. Sem dúvida, não seremos líderes mundiais na produção de medicamentos num futuro próximo. Mas certamente cabe investirmos de forma direcionada. E essa orientação não deve partir unicamente do mercado: não é o caso de o Estado promover incentivos para o setor produtivo nacional produzir o que quiser. É preciso induzir a inovação em áreas consideradas prioritárias para a saúde pública, que tenham maior relevância para o sistema nacional de saúde.

Considerando o cenário global, quais são as perspectivas para o futuro da indústria farmacêutica brasileira e o SUS?

Nós sofremos influência direta do cenário global. Há várias tendências que marcam a transformação da indústria farmacêutica em âmbito mundial, como a pressão competitiva oriunda da baixa competitividade em P&D no paradigma da base química tradicional. Com isso, empresas estão investindo cada vez mais em P&D para achar uma molécula nova – e estão gerando cada vez menos resultados. Isso está levando as empresas a uma estratégia nova. A síntese química pautou o sistema de P&D durante décadas hoje há uma nova situação: a biotecnologia e a nanotecnologia. As empresas farmacêuticas estão buscando cada vez mais fusões e aquisições com empresas de base biotecnológica, então o futuro da indústria farmacêutica parece ser, mesmo, a biotecnologia – uma promessa anunciada desde a década de 1970 que vem se concretizando mais recentemente.

Outra questão que está influenciando mundialmente a indústria farmacêutica – e que tem impactos também para o Brasil – são os novos vetores de crescimento. Os mercados emergentes estão assumindo uma importância estratégica, o que é mais um motivo para termos muita atenção em relação a como montar a política em prol do desenvolvimento da indústria farmacêutica de capital nacional.. É preciso criar uma autonomia mínima, uma base doméstica de geração de P&D, e isso depende de uma política de Estado. Toda experiência internacional que em alguma medida deu certo no desenvolvimento do setor farmacêutico – como Cingapura, Israel, Índia, China – tem um componente da política que direciona essa articulação.

O contexto global nos pressiona muito, mas há janelas de oportunidade. Olhando para o futuro, podemos identificar nichos estratégicos. A grande vedete do momento para se ganhar capacitação na rota biotecnológica são as proteínas recombinantes. É o que há de mais promissor e que, de alguma maneira, converge os interesses do setor privado com os do sistema de saúde. São medicamentos que têm sido incorporados crescentemente na lista de medicamentos estratégicos do SUS. Outro nicho importante é o das vacinas recombinantes, que se justifica como tal pela capacidade instalada que já temos no país: hoje, 80% da demanda pública por vacinas é atendida pelos laboratórios oficiais.

Outra questão estratégica são os antibióticos. Nós não temos autonomia na produção de antibióticos no Brasil. Esse é também um problema global, porque as empresas estão deixando de investir em plataformas de pesquisas em antibióticos – pois são medicamentos administrados por tempo limitado que, portanto, dão menos lucro que os remédios para doenças crônico-degenerativas, de uso contínuo –  enquanto estamos enfrentando bactérias cada vez mais resistentes aos antibióticos tradicionais. Isso se tornou uma questão tão grave que o governo americano e a União Europeia lançaram programas para apoiar esse tipo de pesquisa. O Brasil poderia se somar a este esforço.

No que o exercício de prospectar o futuro contribuiu para o setor?

A base produtiva da Saúde passou por um período de retração no Brasil e o advento dos medicamentos genéricos foi crucial para que o país recuperasse a dinâmica de crescimento e de investimento na produção de fármacos e medicamentos. Mas essa onda passou. A indústria nacional cresceu e se capacitou muito com base na venda de genéricos – este foi um nicho bastante importante – mas agora temos o desafio da incorporação das novas plataformas tecnológicas para produção de medicamentos por rota biotecnológica.

Este é um tema controverso, porque há uma pressão da indústria farmacêutica global para colocar os medicamentos mais caros e mais modernos na compra pública – o que não necessariamente é possível e desejável. Por exemplo, em relação aos medicamentos oncológicos, há o desabastecimento: a indústria farmacêutica deixa de produzir medicamentos com menor valor agregado e passa a oferecer medicamentos mais modernos, só que muito mais caros, e ainda há protocolos de tratamento que são baseados naqueles medicamentos que deixaram de ser produzidos. Como conciliar? Apesar desta complexidade, a incorporação das novas plataformas é inexorável, e cabe ao Estado pautar a escolha das novas tecnologias em saúde em função das necessidades do Sistema Nacional de Saúde.

Outro problema que enfrentamos é que a nossa base produtiva não dá conta da demanda da população por insumos de Saúde e, por isso, o país importa. O déficit fruto das importações em 2013 na área de medicamentos, fármacos, vacinas e derivados, soros e reagentes foi em torno de U$ 10 bilhões – uma soma realmente impressionante.  Ao longo do tempo este déficit tem aumentado, principalmente em função dos medicamentos biológicos, as proteínas recombinantes, que são “a bola da vez”. Num período de 10 anos as importações do NCM 30021038 – que congrega uma parte considerável da importação de anticorpos monoclonais – foram de U$ 13 milhões em 2003 para U$ 708 milhões de dólares, em 2013. Então, não é que estejamos importando muito mais medicamentos e atendendo a uma parcela maior da população. Estamos importando medicamentos mais caros – e nem toda a população brasileira tem acesso a eles. Isso representa uma ameaça sistêmica ao sistema de saúde, caso o Estado não dê conta do fortalecimento da base produtiva em saúde.

Por fim, o déficit estrutural da Balança Comercial não é apenas econômico, mas também de conhecimentos: faltam capacitações. A produção de insumos biológicos na indústria farmacêutica é incipiente. Os laboratórios oficiais têm alguma inserção, mas é pequena, e as empresas privadas estão investindo em algumas plataformas. Outra percepção que alcançamos neste exercício de prospectar o futuro foi a de que, também na base produtiva da Saúde, há deficiências na área de capacitação profissional. Essa condição merece uma análise mais profunda, que já está em curso, para que possamos compreender melhor quais são os gargalos e como podemos superá-los de forma a incrementar a indústria nacional.

Marina Schneider, Equipe Saúde Amanhã, 09/03/2015