A partir de uma perspectiva territorial, quais os desafios para o Sistema Único de Saúde (SUS) no horizonte dos próximos 20 anos? A pergunta é o mote da pesquisa “Definição de Área de Abrangência e Denominador Populacional para Polos de Atendimento Municipal segundo Fluxo de Pacientes”, desenvolvida no âmbito da rede Brasil Saúde Amanhã pelos pesquisadores Mônica Magalhães, doutora em Saúde Coletiva, Diego Xavier, mestre em Epidemiologia, e Vanderlei Matos, mestre em Engenharia Cartográfica. “Os resultados ajudam a entender a situação atual do déficit de atendimento para alta complexidade no país e evidenciam, de um lado, a magnitude de atendimento de alguns polos que apresentam serviços especializados e, de outro, os vazios sanitários no país, que ainda são enormes”, adianta Mônica. Para o longo prazo, a recomendação dos pesquisadores é criar centros de atendimento especializado nas áreas que hoje representam vazios sanitários, de forma a diminuir as distâncias percorridas em busca de atendimento e a sobrecarga de demanda que os centros especializados recebem atualmente.

Qual a importância da perspectiva territorial para a Saúde e quais as suas contribuições para o estudo do futuro do sistema de saúde brasileiro?

A perspectiva territorial regula todo o sistema de saúde do país, desde a atenção primária, por meio da definição de áreas de cobertura da Estratégia Saúde da Família, até a orientação de centros de especialização de tratamento de alta complexidade. Neste último caso, é evidente que a atração exercida por um polo de atendimento sobre a população de outros municípios está relacionada com a complexidade dos serviços oferecidos e a disponibilidade dos municípios para atender um número de usuários maior do que o gerado por sua população residente. Observamos, por exemplo, que a força de atração é maior, ou seja, é exercida em maior distância, quando a complexidade dos serviços ofertados é mais elevada.

A metodologia adotada neste estudo traz um avanço para o planejamento do sistema de saúde e uma nova ferramenta para estudos epidemiológicos, já que a partir desse método torna-se possível calcular taxas para locais de atendimento e internação por meio de informações disponíveis nos sistemas de informação em saúde.

Quais as metodologias aplicadas para investigar o estado atual das internações médico-hospitalares na esfera municipal e as suas tendências para o futuro? 

Para quantificar a população atendida foi contabilizada a demanda de determinados serviços de saúde e o peso que eles têm nos municípios que mais recebem pacientes, denominados “polos de atendimento”. A metodologia consistiu em acrescentar à população da cidade que recebe os pacientes a população proporcional do outro município, que envia pessoas para o polo de atendimento. Para tal, o elemento central do cálculo se pautou no inverso da taxa usual calculada em estudos ecológicos. Consideramos o número de procedimentos que um município enviou para o outro, dividindo a população do município emissor pelo total de atendimentos a residentes e não residentes. Assim, para o polo “A”, o denominador de “A” foi o somatório das parcelas de população dos municípios emissores com a população do próprio polo.

Eventualmente, por conta da natureza do procedimento, no caso de municípios que não enviaram pacientes a outra cidade e não realizaram o procedimento no próprio município optamos por utilizar a base de dados do REGIC (Região de Influência das Cidades) Componente Saúde (IBGE, 2014). A identificação desses municípios com seus respectivos polos possibilitou a definição da área de abrangência segundo o procedimento analisado, além da elaboração de um denominador capaz de realizar cálculos de taxas de internação para essas  áreas de cobertura e atendimento dos polos de saúde. É importante ressaltar que nossos estudos não consideraram dados do sistema privado de saúde, que podem compor uma lógica diferente de áreas de abrangência e fluxo de pacientes. No entanto, cabe destacar que com o foco nos dados do sistema publico de saúde sobressaem vazios sanitários principalmente na região Norte, onde o volume de tratamento privado é muito menor que no Sul e no Sudeste, áreas que apresentam maior número de polos de tratamento público, sobretudo em especialidades médicas de maior complexidade.

De acordo com o estudo, quais os principais desafios para a organização do sistema de saúde no horizonte dos próximos 20 anos? 

O estudo criou um denominador populacional para cada polo de atendimento com base no fluxo de pacientes e na proporção da população enviada aos municípios para atendimento de procedimentos de alta complexidade. Além disso, foram calculadas as taxas de internações por procedimentos de alta complexidade para a população residente, para a população não residente em busca de atendimento e para a população da área de abrangência do município polo. Por fim, delimitou-se a área de abrangência geográfica e o número de conexões dos polos de atendimento de procedimentos de alta complexidade segundo subgrupos de procedimentos realizados.

Com isso, foi possível identificar a população coberta pelos polos de atendimento e realizar cálculos de taxas nas áreas de abrangência, com base no fluxo real de pacientes do SUS deslocados e segundo as especialidades selecionadas. Os resultados ajudam a entender a situação atual do déficit de atendimento para alta complexidade no país e evidenciam, de um lado, a magnitude de atendimento de alguns polos que apresentam serviços especializados e, de outro, os vazios sanitários no país, que ainda são enormes. No horizonte dos próximos 20 anos, criar centros de atendimento especializado nas áreas que hoje representam vazios sanitários irá diminuir as distâncias percorridas em busca de atendimento e a sobrecarga de demanda que os centros especializados recebem atualmente.

Dentre as tendências futuras para o Brasil, estão o envelhecimento da população, a intensificação das doenças crônicas não transmissíveis e a migração para cidades de médio porte. Em longo prazo, como o país pode se preparar para atender às novas demandas de saúde que resultarão deste processo? 

Primeiro, é importante considerar que, de forma geral, os resultados de nosso estudo sugerem que há municípios capazes de suprir suas demandas e ainda ofertar atendimentos a outros municípios; cidades que comportam os seus residentes e conseguem atender uma população pequena direcionada ao polo de atendimento; e os municípios que não possuem uma oferta excedente e que conseguem absorver seus próprios pacientes.

Quando observados somente procedimentos que apresentam estreita relação com o processo de transição demográfica no país, verificamos que a grande maioria dos polos de atendimento para câncer, cirurgia de quadril e cirurgias cardíacas concentra-se nas regiões Sul e Sudeste. Por um lado, essas regiões apresentam um processo de transição demográfica mais avançado em relação às demais regiões, entretanto, hoje o déficit de atendimento por esses procedimentos e as distâncias percorridas por essa população idosa ainda é muito grande. Se a oferta de atendimento, além de outras políticas de atenção ao idoso, não apresentarem incremento significativo de investimento podemos ter um quadro bastante preocupante em longo prazo.

Em termos de políticas públicas, o que deve ser feito no presente para que nas próximas décadas seja possível efetivar a regionalização ?da saúde nos termos do SUS, atendendo a universalidade, integralidade e equidade? 

A autonomia conferida aos municípios por meio da descentralização trouxe muitos benefícios para a operacionalização de políticas públicas de saúde, transferência de recursos e gerenciamento do sistema. Segundo o Censo de 2010, 89% dos municípios brasileiros apresentaram população com menos de 50 mil habitantes e 45% com menos de 10 mil habitantes. É difícil supor que todos esses municípios apresentem capacidade de gerenciamento e recursos suficientes para realizar atendimento à saúde integral e universalmente aos seus usuários. Estudos como este desenvolvido no âmbito da rede Brasil Saúde Amanhã podem criar subsídios para o planejamento e conformação das regiões de saúde. Contudo, novas iniciativas devem ser consideradas, inclusive arranjos legais que descrevam critérios técnicos para que se possa avançar na regionalização, já que hoje não são claras as normas que devem ser aplicadas para conformação das regionais, ficando a cargo dos estados definir este critério.

Em outros estudos, verificamos que em procedimentos de baixa complexidade a maioria dos usuários não precisa se deslocar para além de suas regionais de saúde de residência. Entretanto, a conformação do espaço social nem sempre é considerada para definição dessa regional. Por exemplo, em cidades limítrofes de diferentes unidades federativas é comum que pacientes busquem atendimento fora de sua regional de saúde. A conformação de regionais entre unidades federativas é prevista na regulamentação para conformação de regionais, mas embora os dados de internação evidenciem essa pratica dos usuários não existe hoje, no país, uma regional de saúde que ultrapasse os limites de uma unidade federativa.

Bel Levy
Saúde Amanhã
17/08/2015