Quais as perspectivas para o futuro da Saúde no Brasil no horizonte dos próximos 20 anos? Como mobilizar a sociedade pelo Sistema Único de Saúde (SUS)? As questões são abordadas pelo coordenador executivo da rede Brasil Saúde Amanhã, o pesquisador José Carvalho de Noronha, em entrevista concedida ao Observatório de Análise Política em Saúde (OAPS). Além de apresentar um retrospecto do trabalho desenvolvido pela rede Brasil Saúde Amanhã e adiantar os próximos passos da iniciativa, Noronha critica a proposta da Organização Mundial de Saúde (OMS) para “Cobertura Universal em Saúde”. “Com esta proposta, a OMS vinculou ‘cobertura’ basicamente à questão quase exclusiva do financiamento de ‘gastos catastróficos’ e ‘gasto do próprio bolso’, desprezando as questões de equidade e de acesso e uso efetivos”, sintetiza.

A iniciativa Brasil Saúde Amanhã tem como objetivo prospectar estrategicamente o futuro do sistema de saúde brasileiro. Em que etapa o projeto se encontra?

A iniciativa Brasil Saúde Amanhã teve início em 2010, a partir da constatação da inexistência ou escassez de esforços brasileiros no sentido de explorar os horizontes de médio e longo prazo para a formulação e definição das políticas sociais. Entre as poucas exceções, estão as estimativas de compromissos de benefícios previdenciários. No campo da Saúde, de maneira segmentada e no setor privado, a prospecção de horizontes tem sido empregada de forma sistemática há bastante tempo pela indústria farmacêutica e, mais recentemente, pela indústria de equipamentos e materiais para cuidados de saúde. Neste contexto, em uma primeira etapa, foram percorridos os temas mais relevantes para o desenho de horizontes futuros do sistema de prestação de cuidados à saúde no Brasil. O produto desse esforço resultou no livro “A Saúde no Brasil em 2030: Diretrizes para a Prospecção Estratégica do Sistema de Saúde Brasileiro”, publicado pela Fiocruz em versão resumida em maio de 2012 e em cinco volumes com a íntegra dos estudos em 2013. As publicações foram incorporadas à base Scielo Livros, em acesso aberto, e estão disponíveis neste portal, na seção Publicações.

Atualmente, encontram-se em fase final para publicação pela Editora Fiocruz os estudos da segunda etapa do projeto. Os primeiros resultados já podem ser acessados neste portal, sob a forma de Textos para Discussão. Nesta segunda rodada, foram revistos os cenários macroeconômicos e aprofundados o exame do financiamento setorial, com uma exploração ampliada do espaço fiscal, e o estudo demográfico, combinado com um exame das “centralidades” territoriais para a Saúde. No campo do acesso aos serviços de saúde, foram percorridos a distribuição espacial dos recursos físicos e os fluxos de internações e procedimentos de alta complexidade, com a identificação de suas áreas e populações de referência. Exploramos com mais profundidade as estimativas futuras para a força de trabalho em Medicina, Enfermagem e Odontologia, bem como as respectivas capacidades de formação. Na área do Complexo Econômico Industrial da Saúde, retomamos as identificações de nichos e diretrizes na área de fármacos, produtos biológicos, equipamentos e materiais e iniciamos a explicitação conceitual da questão de “segurança sanitária” na produção de insumos para a Saúde.

Para o próximo biênio, pretendemos consolidar o portal Saúde Amanhã como ferramenta estratégica de disseminação de informação para o planejamento prospectivo em Saúde e como instrumento para articulação de parcerias com órgãos do governo, universidades, centros de pesquisa, conformando a Rede de Prospecção, Risco Público e Gestão Estratégica em Saúde. Entre as atividades previstas estão a realização de oficinas de trabalho para aprofundar as metodologias para a prospecção estratégica do setor, explorar em mais detalhes a questão dos biofármacos e produtos biológicos para a saúde e as mudanças do perfil profissional, em decorrência da reorganização do modelo de atenção à saúde em redes integradas de cuidados. Seminários abertos para aprofundamento do exercício prospectivo estão previstos nos campos da organização da atenção à saúde; espaço fiscal e financiamento setorial; e saúde e desenvolvimento sustentável. Também estão planejados quatro novos estudos: prioridades de investimentos em saúde; cuidados prolongados e paliativos; projeção de necessidades de especialistas para cuidados de alta complexidade; e estratificação demográfica e epidemiológica com base social e territorial.

Quais os princípios e métodos de trabalho aplicados nesta trajetória?

A prospecção estratégica visa, a partir da definição de um conjunto de diretrizes para um futuro desejado, expandir a capacidade de perceber as situações e temas emergentes e apoiar a elaboração de estratégias e o processo decisório por meio do exame das probabilidades de ocorrência dos futuros possíveis. Inclui tanto o exame de tendências quanto a exploração de futuros potenciais para gerar visões de como a sociedade evoluirá e definir quais as opções de políticas disponíveis para o horizonte desejado. Evidentemente, para que seja possível o exercício prospectivo, faz-se necessário que se desenhem parâmetros de expectativas desejadas para o futuro do país.

Em linhas gerais, a iniciativa Brasil Saúde Amanhã aceitou como guia a inspiração de Celso Furtado para o desenvolvimento brasileiro, em que “as prioridades para a ação política devem orientar-se em função de uma nova concepção de desenvolvimento, posto ao alcance de todos os povos e capaz de preservar o equilíbrio ecológico”. Nesta perspectiva, “o principal objetivo da ação social deixaria de ser a reprodução dos padrões de consumo das minorias abastadas para ser a satisfação das necessidades fundamentais do conjunto da população; a educação seria concebida como desenvolvimento das potencialidades humanas nos planos ético, estético e da ação solidária; e a criatividade humana, hoje orientada de forma obsessiva para a inovação tecnológica a serviço da acumulação econômica e do poder militar, seria reorientada para a busca do bem estar coletivo, concebido este como a realização das potencialidades dos indivíduos e das comunidades vivendo solidariamente”.

Assim, a iniciativa Brasil Saúde Amanhã estabeleceu um horizonte temporal móvel de 20 anos para balizar seus estudos. Elegemos cinco grandes temas como eixos da modelagem do setor Saúde: Perfil Sanitário e Demográfico; Organização e Gestão do Sistema de Saúde; Força de Trabalho em Saúde; Financiamento e Gasto Setorial; Desenvolvimento Produtivo e Complexo da Saúde. A essas grandes áreas foi associada a análise do arcabouço de desenvolvimento do país, abordando os cenários macroeconômicos futuros de desenvolvimento, os rumos da gestão pública no Brasil e as tendências na dinâmica do setor empresarial da Saúde.

A iniciativa Brasil Saúde Amanhã propõe três cenários para o país: um otimista e possível, um pessimista e plausível e um inercial e provável. Quais as suas perspectivas para o futuro do sistema de saúde brasileiro na atual conjuntura?

A proposta de horizonte móvel se estrutura no sentido de garantir a atualização permanente do exercício prospectivo em decorrência de alterações conjunturais significativas tanto no campo social, econômico e político, bem como resultante de inovações e descobertas relevantes para os cuidados de saúde. Fundamentalmente,buscam-se identificar os desvios para aproximação ou afastamento do que chamamos de horizonte desejável e possível, que configuraria um olhar “otimista” para o futuro.A atual conjuntura econômica e política, a nível internacional

e nacional, indica quase uma certeza de que, nos próximos vinte anos, estaremos nos afastando de maneira significativa do que se apresentava como desejável e possível na primeira rodada do projeto. O horizonte traçado como pessimista e plausível apresenta-se hoje como o mais provável. O distanciamento das projeções iniciais de crescimento econômico do país diminui radicalmente as possibilidades de que se processem os investimentos para redução das iniquidades no acesso aos serviços de saúde e para que se atendam as necessidades correntes de custeio. Tudo isso provocará um grau importante de degradação de recursos existentes e aprofundará a estratificação social do acesso. O estrangulamento fiscal e a disputa por sua partilha comprometerá esforços de ampliação da base contributiva para o setor.

Da mesma forma, é possível prever um acirramento da competição entre os entes federados, dificultando os esforços de integração e cooperação. Consequências negativas também podem ser antecipadas nos esforços para fortalecimento da base produtiva setorial no curto prazo, que podem comprometer a capacidade de inovação e autonomia desejadas para o futuro. Entretanto, afortunadamente, embora reduzidas, não me parecem esgotadas as possibilidades de, em quatro a cinco anos, podermos redesenhar um horizonte, digamos, “mais colorido”.

O texto “Princípios do Sistema de Saúde Brasileiro”, publicado no terceiro volume do livro “A saúde no Brasil em 2030”, aponta que a classe trabalhadora, os profissionais de saúde e mesmo os servidores públicos já não são agentes estratégicos de uma política de saúde universal e equitativa. Qual seria o caminho de mobilização da sociedade pelo SUS?

De fato, a extrema segmentação da oferta e do acesso aos serviços de saúde no país erodiu de maneira importante a base sociopolítica de apoio ao SUS. Em momentos de crise econômica e fragilidade fiscal, como o que atravessamos, torna-se gigantesca a disputa no terreno fiscal e, sobretudo, na orientação do modelo econômico de desenvolvimento para o país. A luta ideológica se acentua e nos meios de comunicação, que hoje são dominados em quase sua totalidade pelas elites econômicas, não há o menor espaço para defesa do interesse público difuso, como é o direito à saúde. Igualmente, em tempos de escassez, acentua-se a disputa

entre usuários e profissionais do SUS. É politicamente inviável, na atual conjuntura, imaginar algum grau de redução de incentivos fiscais destinados a operadores privados do setor Saúde. A quimera do acesso a planos privados de saúde como solução para as dificuldades de acesso continuará a prosperar. Servidores públicos defenderão com unhas e dentes seus planos de saúde. Médicos manterão sua defesa intransigente pelo recebimento por serviços prestados discriminados na Classificação Brasileira Hierarquizada de Procedimentos Médicos (CBHPM). Os que aceitarem o serviço público exigirão salários que só lhes poderão ser pagos por arranjos privados como as Organizações Sociais de Saúde (OSS), aprofundando a segmentação da oferta também no setor público.

O que salvou o SUS no início da avalanche neoliberal dos anos 1990 e que emerge como resistência ao seu desmonte? O crescimento da consciência difusa do direito a um atendimento digno em saúde, a qual nem a mídia conservadora conseguirá esconder ou abafar. E, também, os níveis de distribuição de renda na sociedade brasileira, que fazem com que três quartos da população não tenham nenhuma opção de atendimento senão o SUS. E como isso se expressa? Com todas as deformações de nosso sistema político-eleitoral ainda dispomos do sufrágio universal direto e secreto como arma. Temos explosões de demandas não apenas nas manifestações de rua, mas nas reivindicações para que a clínica da família funcione, para que os pacientes não morram nem fiquem jogados nas emergências dos hospitais. Virão as eleições para prefeitos e vereadores, deputados estaduais e federais, senadores, governadores e Presidente da República. Poderão trair o SUS no limite de que não subtraiam direitos conquistados. Há, ainda, uma parte importante da economia brasileira movimentada integral ou parcialmente pelo SUS. Profissionais de saúde, estabelecimentos de saúde, fornecedores, farmácias e toda uma rede de negócios que gira em torno de hospitais e clínicas. Penso, portanto, que há espaços importantes de resistência e avanço: no voto, nas ruas e na agenda de governos que se comprometam e demonstrem em suas ações a importância do SUS. E na “consciência sanitária” e solidária e no ativismo de muitas lideranças políticas e civis.

A adoção da estratégia “Cobertura Universal da Saúde” como objetivo principal orientador dos sistemas de saúde, recomendada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), tem gerado controvérsias. Como o senhor avalia a proposta de a “Cobertura Universal da Saúde” ser um elemento norteador na agenda de discussões sobre sistemas de saúde?

Como expressei em artigo publicado em 2013 na revista “Cadernos de Saúde Pública”, não tenho problema algum com a proposta de que os países busquem garantir a seus cidadãos e cidadãs uma cobertura universal de saúde. O que distorceu gravemente o conceito, tão caro a tantos que lutam pelos direitos humanos e pela universalização das políticas sociais, foi a sua desvinculação em relação a esses direitos e à sua garantia e realização. Com esta proposta, a OMS vinculou “cobertura” basicamente à questão quase exclusiva do financiamento de “gastos catastróficos” e “gasto do próprio bolso”, desprezando as questões de equidade e de acesso e uso efetivos.

A OMS propôs, e continua a propalar, que a constituição de processos de agregação de fundos (“pooling”) por terceiras partes – não necessariamente governamentais; talvez preferencialmente não governamentais – para cobertura de uma cesta de benefícios restrita, ou não especificada, seria o mecanismo central para a garantia dessa suposta “cobertura universal”. Como se a agregação de fundos pelos governos através de sistemas tributários fosse inexistente e como se fosse necessária, para a atenção à saúde, a constituição de fundos específicos, ignorando ou minimizando a relação entre o montante dos fundos agregados, o número de contribuintes e beneficiários e a cesta de benefícios efetivamente à disposição dos contribuintes. Ao desprezar a questão da equidade, a proposta passa ao largo das questões de solidariedade social e de esquemas fiscais progressivos, deixando ao mercado a estratificação de benefícios para sistemas de saúde já fortemente segmentados por classe social, renda, etnia, gênero, vinculação ao mercado de trabalho, entre outras tantas dimensões da vida social, econômica e política das nações.

A Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) mitigou de maneira significativa a proposta de Genebra ao colocar na partida as questões da equidade, do acesso e do uso dos serviços de saúde e ao entender que saúde não se restringe aos cuidados de saúde e implica, também, intervenções em outros domínios, que têm consequências diretas ou indiretas sobre a saúde e o bem-estar das pessoas: “Cobertura Universal de Saúde significa que todas as pessoas têm acesso equitativo a ações e serviços de saúde integrais e de qualidade, de acordo com as suas necessidades ao longo da vida. A Cobertura Universal de Saúde reforça a necessidade de se definir e implantar políticas e intervenções intersetoriais, com o objetivo de atuar sobre os fatores determinantes sociais da saúde e de fomentar o compromisso da sociedade, como um todo, na promoção da saúde e do bem-estar, com ênfase na equidade”.

E, também, ao incorporar o direito à saúde como questão central da cobertura universal, como expresso no item 3 de sua resolução: “O direito à saúde é o valor central da Cobertura Universal de Saúde e deve ser protegido e garantido sem qualquer distinção de idade, grupo étnico, raça, sexo, gênero, orientação sexual, idioma, religião, opinião política ou outra origem nacional ou social, posição econômica, local de nascimento ou qualquer outra condição. Para promover e proteger o direito à saúde é necessário interagir com outros aspectos relacionados aos direitos humanos. O direito à saúde é protegido pela maioria das constituições nacionais, bem como por tratados de direitos humanos internacionais e regionais, inclusive pela constituição da OMS”. O Brasil teve um papel importantíssimo nessa reformulação conceitual, à qual não vejo razões de objeção. Espero que ela tenha alguma eficácia para a reorientação de Genebra.

Observatório de Análise Política em Saúde (OAPS), dezembro 2015