O desenvolvimento de políticas de longo prazo para a Saúde e para a Educação será inviabilizado pela Emenda Constitucional 55 (EC 55), por esta representar um engessamento – também de longo prazo – no orçamento federal e, portanto, nos investimentos para essas áreas. A análise é da professora Sulamis Dain, do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), que participou, em dezembro de 2016, do seminário “Desenvolvimento, Espaço Fiscal e Financiamento Setorial”, realizado pela rede Brasil Saúde Amanhã, em parceria com o Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz (CEE/Fiocruz). Também participaram do evento os economistas Daniel Conceição e Carlos Pinkusfeld Bastos, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e Pedro Rossi, da Universidade de Campinas (Unicamp).

Leia a transcrição da palestra de Sulamis Dain:

“Concordo inteiramente com o diagnóstico de que não há crise e que nós deveríamos trazer muito mais bem-estar [aos brasileiros] do que estamos fazendo e pretendemos fazer, já que estamos engessados por vinte anos aí nesse austericídio. Na verdade, o que é muito instigante nessa discussão – em que os colegas estão mais afeitos ao debate macroeconômico – é trabalhar nos silêncios, nos interstícios, naquilo que não foi dito, mas que nos acompanha há muito tempo. E nesse ponto de vista, eu vou centrar as minhas observações.

A primeira questão, que eu nem pretendia trazer por ser um pouco autorreferente, é que, nos anos 80, o [economista Carlos] Lessa e eu escrevemos um artigo chamado “Estado e Capitalismo na América Latina”, em que tratávamos da questão da periferia latino-americana, mostrando que havia ali uma especificidade, o fato de que tínhamos um Estado nacional na época da industrialização, Estado capaz de pactuar entre interesses.

Por trás desse fenômeno que é a manifestação da crise fiscal, há uma questão mais estrutural, que é a existência de um Estado patrimonialista, em que, secularmente, o capital financeiro foi protegido, os setores de indústria pesada foram protegidos e os setores de construção civil foram protegidos. Isso permitiu que fossem trazidos capitais internacionais para Brasil, porque o “filé mignon” estava garantido. Eles cresceram à sombra do Estado Brasileiro e se mantiveram até agora.

De certa maneira, o desvelamento dessas relações apareceu de forma policialesca, pseudojudicial, com a operação Lava-Jato. De certa maneira, isso traz à tona essa teia enorme de relações promíscuas entre o Estado e os setores patrimonialistas. Quando criamos a Constituição de 1988, eles estavam lá. Mas a força da sociedade foi tão relevante no processo de abertura e redemocratização do país, que conseguimos alguns avanços – imperdoáveis do ponto de vista dos interesses dominantes – em termos da constitucionalização de um Estado de bem estar.

Isso era contrário a todo o processo de privatização que vivia América Latina naquele momento. Fomos inteiramente contra a maré. No momento em que o Chile privatizou, o México privatizou, a Argentina privatizou, nós constituímos o estado de bem-estar. Isso é uma afronta a esses interesses patrimonialistas que cercam o Estado brasileiro, porque eles, de certa maneira, perderam grandes orçamentos e grandes áreas em que foi possível avançar e utilizar recursos públicos.

Em 1990, começa o primeiro projeto de Reforma da Previdência, assim que acabamos de constituir a Seguridade Social, de conseguir estabelecer recursos – equivocados, do meu ponto de vista, porque não tinha nada que fazer tributação sobre faturamento –, contra toda tendência internacional de modernização e constituição dos impostos sobre valor adicionado, no qual o Brasil foi pioneiro, nos anos 1960.

De certa maneira, a ofensa a esses interesses começou a ser cobrada no início dos anos 90. Quando se fala em Reforma da Previdência, agora, há uma dissociação desse tema e o do ajuste fiscal. Foi dito aqui [no seminário] que não há necessidade de ajuste fiscal porque não temos crise fiscal. Também digo que não há crise da Previdência e que nem a Reforma da Previdência de que eles falam vai resolver o problema da crise fiscal ou seja lá do que for. Precisamos entender que há um interesse constituído, de longo prazo, cercando as decisões a favor do estado de bem-estar.

O segundo elemento dessa briga por recursos e pela apropriação do Estado foi o mito do superávit primário. Criou-se um superávit primário que tem nos acompanhado ad nauseam também desde a metade dos anos 90. E o que resultou disso? Rigorosamente nada. Nós fomos de desajuste fiscal a desajuste fiscal sucessivamente, o que prova que fazer superávit fiscal não tem nada ver com ajuste. Chegamos a ter mais dois pontos percentuais do PIB, e isso foi uma enorme agressão à Seguridade Social porque, estruturalmente, metade dos recursos que seriam para lá destinados foram para o superávit primário e a outras despesas da União que nada têm com a questão do bem-estar social.

Um dos silêncios que eu quero discutir é o do longo prazo das políticas sociais. A EC 55 é um engessamento. Não só é inviável engessar o gasto durante vinte anos – o que não vai acontecer de maneira nenhuma –, como acaba-se também com os recursos para a Saúde e a Educação, desvinculando-os da receita e criando-se uma nova regra de vinculação, referida à inflação, que nada tem a ver com isso. A situação é particularmente dramática porque a política de Saúde, assim como a de Educação, é de longo prazo. Nós temos uma descontinuidade a vencer, que também remete a um outro problema, do déficit. Na verdade, estamos falando de dois déficits: um que se refere a um ciclo conjuntural e um de longo prazo, associado ao investimento. Nesse debate, conversam duas métricas: a de consumo, ou de gasto corrente do governo, e a de investimento. Para a Saúde e para a Educação, a questão do investimento – que não conseguiu ser implementada até agora – é absolutamente decisiva. Não há como promover bem-estar em um país desigual, heterogêneo, fracionado.

No Brasil, há rejeição àquilo que não é patrimônio, riqueza financeira. E há rejeição a tudo que significa avanço da população. Myrdal [economista sueco Gunnar Myrdal – 1898-1987], já nos anos 80, falava não em custo social, mas em investimento social, quando ele se referia às políticas de Saúde e Educação. Ele sabia que isso é essencial. Está claro, como mostram recentes trabalhos do Ipea [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada], que os gastos em Saúde e em Educação – e em políticas sociais em geral – provocam efeito enorme sobre o crescimento do PIB, da renda e sobre a redução das desigualdades.

Fiz um trabalho recente – com [o sanitarista] José Noronha e o [economista] Carlos Ocké-Reis – para a ANS [Agência Nacional de Saúde Suplementar] sobre a renúncia da arrecadação, no qual trabalhamos também com a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) para mostrar que efetivamente o gasto em saúde é redutor de desigualdades, seguindo o Geiger, que trabalhou também nessa pesquisa. [Leia a íntegra do estudo]

A realidade é totalmente contrária ao discurso veiculado, mas tantas vezes você vê a mentira, que os argumentos desaparecem. Não há um debate lógico. Nós somos aqueles que insistimos em fazer um debate técnico, em nome da nossa lucidez. Entretanto, é como você [referindo-se ao economista Daniel Conceição] falou: pelo visto, nós precisamos aprender a mentir. A mentir e a ser oportunista, mais do que oportuno. Temos que aproveitar todas as brechas que existem para avançar.

Em 1984, estava dando uma palestra no Espírito Santo, e o [então] senador Fernando Henrique Cardoso me convidou – porque ele era do PMDB, antes de surgir o PSDB – para organizar um grupo e fazer um projeto de reforma tributária para o Senado. Como a juventude é audaciosa e brincalhona, juntamos um grupo de amigos, todos bem intencionados, e perpetramos o tal do imposto sobre grandes fortunas. Foi aprovado. Não adiantou, porque nunca foi regulamentado. Mas ele está lá, desde antes da Constituição de 1988.

Por outro lado, houve debates sobre Reforma Tributária, feitos com prefeitos e estados brasileiros, que são absolutamente irracionais. E nós precisamos lidar com essa irracionalidade e não esperar que a razão técnica predomine sobre as paixões e os interesses. Desde os anos 60, existe o terrível Fundo de Participação [transferência, prevista na Constituição Federal, da União para os Estados e o Distrito Federal, para distribuição aos municípios, de recursos compostos de 22,5% da arrecadação do Imposto de Renda e do Imposto sobre Produtos Industrializados]. Todo ano, vai o prefeito pedir mais um ponto percentual. Os municípios ganhariam muito se, em vez de o cálculo ser sobre o Imposto de Renda, que está caindo, ou sobre o IPI, que praticamente inexiste, fosse sobre um percentual menor de toda a arrecadação tributária. Essa foi a proposta que fizemos para a Constituição de 1988. Adivinhem se foi aceita?

Propomos cobrar no destino e não na origem, porque o Nordeste e a maioria dos estados do Brasil ganhariam com isso. No entanto, o cálculo da tributação na origem é mais fácil, então, em nome da facilidade, todos os estados, inclusive os que iriam ganhar com a nossa proposta, mantiveram o status quo. Existem questões muito enraizadas, valores e práticas equivocadas, entre os gestores brasileiros, com os quais temos que aprender a lidar para passar nossas ideias.

O segundo silêncio com o qual eu gostaria de me preocupar coletivamente é o referente à questão da federação. Foi dito pelo economista Carlos Pinkusfeld Bastos que, com a EC 55, o Governo Federal vai se ausentar, o poder dos estados e dos grandes municípios vai aumentar, como de fato tem aumentado na participação da saúde, e que voltaríamos à República Velha. Discordo. Acho a especulação interessante, mas gostaria de lembrar que, no momento, temos oito ou nove estados brasileiros aceitando acordos de ajuste fiscal do Governo Federal. Isso acabará ainda mais com a autonomia federativa municipalista. É um engodo que a Saúde não consegue enfrentar por estar lidando com mais de 5 mil municípios. Eles estão baseados numa ficção de que, se for dada uma renda per capita igual a todo cidadão brasileiro em relação à saúde, vamos prover saúde a todos os munícipes brasileiros, o que é uma ficção. É possível fazer isso em país desenvolvido, onde a infraestrutura já está resolvida. Nesses casos, o per capita que é simplesmente a manutenção. Mas, onde há uma política que é diferenciada intencionalmente porque ela depende das vias de descentralização, isso é absolutamente impossível.

Seja qual for a lógica, eu diria que o SUS é a experiência federativa mais avançada do Brasil. Isso está sendo discutido no momento porque, assim como o longo prazo, a questão federativa fica extremamente comprometida. E o Governo Federal precisa ter papel descentralizador e equalizador, como no caso da Educação, muito mais simples que o da Saúde. Se não há recursos no nível local, o governo central cobre o valor.

O Dieese mostra uma retrospectiva do que a Educação e a Saúde gastaram e, a partir disso, foi feito um cenário pessimista sobre o quanto seria a perda desses setores, caso a EC 55 tivesse sido aplicada. A Saúde teria perdido R$ 290 bilhões e a Educação, R$ 384 bilhões.

Essa situação é extremamente grave, porque o Brasil tem potencial para alavancar o bem-estar da população, mas no caso dessas duas políticas, elas são federativas. Portanto, elas precisam de uma solidariedade entre os três níveis de governo. Além disso, elas são de longo prazo. Então nada disso é garantido com a EC 55.

Concordo que essa história da dívida seja absolutamente infundada. A Grécia tem praticamente o dobro da dívida brasileira em percentual do PIB. Entretanto, gasta metade em termos de custo da dívida. Lá custa 5% do PIB, aqui quase o triplo. É fictício falar sobre o tamanho da dívida. A questão da taxa de juro é escamoteada sistematicamente porque ali há essa clientela que é constitutiva do estado contemporâneo patrimonialista brasileiro.

Ocorreu uma queda de receita em torno de 12%, levando em conta essas principais rubricas. Isso é renúncia de arrecadação. Se recuperarmos todos os itens da renúncia de arrecadação, da desoneração da folha, que é um desonericídio, os créditos do BNDES, a simplificação do sistema tributário, mais os R$ 10 milhões que a receita perde em renúncia de arrecadação por conta dos planos de saúde, somamos R$ 170 bilhões.

Na verdade, o que ocorre são disputas por quinhões, e está demonstrado que esse falso debate esconde uma apropriação real dos gastos do governo. Uma alocação, uma privatização, e mais do que isso, a renúncia fiscal se faz à sombra, sem o escrutínio da revelação orçamentária, porque estão deixando de recolher. Dessa forma, o cenário é mais sombrio ainda, subterrâneo. É uma desmercantilização que se faz às custas do Estado e com o clamor de que estão defendendo a economia brasileira, quando, na verdade, a apropriação continua.

Essa é a carga tributária brasileira entre 2010 e 2015: tudo bem, realmente caímos um pouco, mas, ainda assim, está em 33%, uma das mais altas do mundo. Não há crise no comportamento da carga tributária.

Objetivamente, a questão tributária tem várias subquestões diferentes. A principal delas é que os ricos são subtributados no seu patrimônio e na sua renda. Os lucros não são tributados tanto quanto. A questão da tributação dos dividendos simplesmente inexiste. Portanto, quem paga a maior parte da carga tributária? Nos impostos indiretos são os pobres, porque eles são blindados com uma tributação sobre faturamento, que é em cascata – as POF mostram isso –, e nós servidores públicos.

A ideia infundada, maluca, de que é possível arrecadar mais criando mais alíquotas é self-infliction [autoimposição], porque aumenta para quem já paga mais de 40% de imposto de renda de pessoa física, quando, na verdade, a questão da integração entre pessoa física e pessoa jurídica não é tratada. Além disso, há um movimento que possibilita que a pessoa física se torne jurídica, dependendo do seu regime tributário – com a mesma renda há níveis de carga tributária totalmente diferenciados.

Existem possibilidades de tributar os dividendos, mas eu, pragmaticamente, penso que isso deveria vir junto à retomada da discussão sobre tributação das grandes fortunas, que é uma vertente da discussão sobre tributação. Contudo, esses seriam elementos caso esse governo fracassasse e houvesse eleições diretas. Nesse caso, teríamos de trabalhar com muita severidade para introduzir esses elementos, que são essenciais, numa nova agenda para um novo presidente com eleições diretas e antecipadas. Se isso acontecesse, teríamos força política para promover propostas em torno da nova agenda.

Não sou contra a Contribuição Provisória sobre Movimentações Financeiras (CPMF), e que, em curto prazo, talvez em momento de transição, poderia também ser usada. No entanto, todas essas questões se sustentam por uma questão de justiça tributária, de tentativa de promover um sistema federativamente mais equilibrado e progressista. Se não há crise fiscal, precisamos discutir se o novo sistema tributário é simplesmente uma questão de recurso, enquanto existem alternativas, como acabar com a desoneração e baixar taxa de juros. São questões que fazem parte desse entorno mascarado de perpetuação dessas relações promíscuas entre Estado e segmentos que regem o patrimônio brasileiro”.

Fonte: CEE/Fiocruz