“Se há um tema sobre o qual é urgente se pensar na área de saúde, esse tema é o das tecnologias digitais e seus impactos sobre as formas de produzir saúde”. A afirmação é do antropólogo Leonardo Castro, pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz) e coordenador do projeto de pesquisa “Implicações das tecnologias digitais para os sistemas de saúde”, ao lado de Marcelo Fornazin, também pesquisador da Ensp/Fiocruz, e dos sanitaristas Paulo Gadelha, coordenador da Estratégia Fiocruz para a Agenda 2030, e José Noronha, coordenador executivo da iniciativa Brasil Saúde Amanhã. Dia 12 de julho, Leonardo apresentará os principais resultados da iniciativa – gestada no âmbito da Estratégia Fiocruz para a Agenda 2030 e da rede Brasil Saúde Amanhã – no seminário on-line  “O Brasil depois da pandemia: transformações do trabalho em saúde”. Com transmissão pela VideoSaude Distribuidora da Fiocruz, o evento lança mais três Textos para Discussão que estarão disponíveis em acesso aberto no portal Saúde Amanhã. Nesta entrevista, Leonardo comenta os desafios de realizar estudos de prospecção de futuro e as tendências já mapeadas para o setor Saúde no horizonte dos próximos 20 anos. “Essas tecnologias têm um potencial disruptivo grande. Nós, da Saúde Pública, precisamos nos antecipar a essas mudanças para não sermos atropelados por elas”, adianta.

Quais as perspectivas para o trabalho em Saúde após a pandemia de Covid-19?

Uma primeira pergunta a ser feita é como foi e está sendo o trabalho em saúde durante a pandemia. Segundo a Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais, houve um aumento de 25% de óbitos de profissionais de saúde entre março de 2000 e fevereiro de 2021 em comparação com o mesmo período em 2019-2020. Houve mais de 700 mortes de profissionais de enfermagem por Covid-19 confirmadas no Brasil, aproximadamente um terço das mortes de enfermeiros registradas no mundo no primeiro ano da  pandemia. As condições de trabalho dos profissionais na chamada “linha de frente” são, em muitos casos, terríveis e quem trabalha com saúde certamente já ouviu vários relatos desesperados, principalmente de médicos e enfermeiros. Por outro lado, apesar da precariedade, o SUS resistiu bravamente ao teste e, no momento em que foram disponibilizadas vacinas, o PNI mostrou mais uma vez sua conhecida eficiência.

O que vem depois? Difícil dizer, não deixa de ser curioso ler atualmente na mídia uma série de loas ao SUS e ao PNI, que evitaram uma catástrofe – o que sem dúvida é verdade – mas não necessariamente isso vai significar mais investimentos no sistema ou melhorar as condições de trabalho no pós-pandemia. Por outro lado, ainda, é impressionante a adesão de um grande número de profissionais a pseudo tratamentos e “teorias conspiração”, bem como a origem e a forma de “transmissão” desses conteúdos. É impressionante também a omissão – para não dizer conivência – de entidades de categorias profissionais, notadamente médicas, frente a essas coisas, usando como justificativa a “autonomia” do profissional. É um cenário complicado. Outro problema ainda é a influência das tecnologias digitais. Minha impressão é que, em alguns aspectos, a pandemia acelerou mudanças que já estavam em curso, mas no geral é uma evolução lenta. Por exemplo, no Brasil muitas grandes seguradoras aproveitaram a pandemia para desenvolver e fortalecer suas estratégias de telemedicina. A teleconsulta hoje é uma realidade que se impôs, por exemplo, para atendimentos psicológicos, nutrição, fonoaudiologia, orientação pós-puerperal e outros. A área de educação também será bastante impactada. Dificilmente haverá um retorno ao “status quo ante”.

Nesse cenário, quais profissões de saúde serão mais demandadas pelo sistema de saúde?

É uma boa pergunta, mas não vejo que a pandemia tenha alterado muito o quadro anteriormente existente, há um déficit de profissionais, especialmente médicos, mas é preciso acrescentar aqui a dimensão geográfica. No Brasil há grande concentração de profissionais e serviços nos grandes centros urbanos e nas regiões mais ricas, e mesmo onde a carência de profissionais é menor, nos deparamos com as limitações de um sistema de saúde privatizado, fragmentado e estratificado conforme a capacidade de pagamento. Talvez um maior investimento no Programa Mais Médicos para o Brasil, associado a uma estratégia consequente – o que também exigirá investimento – de telemedicina, indique um caminho, mas não há sinais de que estejamos caminhando nessa direção. Creio que o seminário do dia 12 de julho seja uma boa oportunidade para discutirmos este e outros pontos.

Como as recentes transformações tecnológicas, que tendem a se acelerar cada vez mais, influenciarão esse processo em médio e longo prazo?

Em primeiro lugar é preciso entender que transformações são essas, tentarei falar um pouco sobre isso no seminário. Grosso modo é um contexto de convergência de tecnologias, mas também de ampliação gigantesca de infra-estruturas, que permitem o processamento e o compartilhamento de grandes massas de dados, assim como algoritmos inteligentes, baseados em redes neurais convolucionais, capazes de aprender a partir dos dados com que são alimentados. É o que vem sendo chamado de “aprendizado profundo” (deep learning), uma evolução do machine learning, “aprendizagem de máquina”. Tudo isso é bastante recente e essas tecnologias têm um potencial disruptivo grande. Com relação ao impacto na clínica, é mais prudente falar em termos de tarefas e procedimentos do que de profissões e/ou especialidades que seriam mais ou menos afetadas. Em tese, pelo menos, o que é padronizável é passível de automação, mas o aprendizado profundo estende bastante o âmbito do que seja padronizável, desde que haja dados em grande quantidade para “ensinar” aos algoritmos.

Fizemos em 2020, através do projeto “Implicações das tecnologias digitais para os sistemas de saúde”, em parceria com o Núcleo de Estudos Prospectivos do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz, um websurvey com mais de 1,4 mil especialistas internacionais sobre impactos da inteligência artificial sobre a medicina diagnóstica nas próximas décadas e mais de dois terços dos respondentes apontaram que haverá mudanças radicais até 2030, enquanto 30% acreditam em um prazo mais estendido, mas são pouquíssimos, menos de 2% os que acham improvável que haja grandes mudanças. Medicina diagnóstica é uma área muito citada, inclusive porque algumas das primeiras aplicações bem sucedidas do deep learning foi justamente em reconhecimento de padrões de imagens. Mas as mudanças não se resumem à clínica, o uso de big data em epidemiologia e vigilância em saúde é uma tendência que já vinha sendo observada antes da pandemia e, ao que tudo indica, aumentou e vai aumentar mais.

As tecnologias têm impacto também em outros níveis e aspectos da atenção à saúde, como a organização de serviços e redes de serviços, regulação de acesso e, no limite, sobre a própria conformação dos sistemas de saúde. Precisamos, nós da Saúde Pública, nos antecipar a essas mudanças para não sermos atropelados por elas. Já existe uma preocupação grande com o compartilhamento de informações clínicas, que trazem riscos relacionados à segurança dos dados e à privacidade dos usuários, mas isso é só uma parte do problema.

Quais os resultados mais recentes do projeto “Implicações das tecnologias digitais para os sistemas de saúde”?

O principal objetivo do projeto é justamente tratar essas questões além da clínica, mas vou falar rapidamente do projeto. Ele foi gestado no âmbito da Estratégia Fiocruz para a Agenda 2030 e do Saúde Amanhã e deve muito ao interesse e à presciência do Paulo Gadelha e do José Noronha, que vêm apoiando o projeto desde seu início, em maio do ano passado, mas deve muito também ao Marcelo Fornazin, colega pesquisador da Ensp/Fiocruz que coordena o projeto junto comigo. Formamos uma equipe multidisciplinar que vem funcionando muito bem, graças principalmente à liderança do Marcelo, e temos alguns produtos interessantes saindo. Um deles é o websurvey de que falei há pouco. Já publicamos, pelo CEE/Fiocruz, um relatório com os resultados do survey e deve sair um artigo internacional em breve com as análises. Outro trabalho extremamente interessante acaba de ser publicado nos proceedings da versão de 2021 AMCIS – The Americas Conference on Information Systems e trata da evolução do campo da “informática médica” nas últimas décadas a partir de um estudo bibliométrico com mais de 100 mil artigos indexados na Web of Science no período.

Pretendo mostrar alguns resultados desse estudo no seminário, mas destacaria aqui o crescimento recente de temáticas envolvendo aprendizagem de máquina e deep learning, assim como tecnologias e dispositivos “móveis”. Outro aspecto é a provável consolidação do termo digital health como rótulo genérico para os desenvolvimentos da próxima década. É um estudo que traz algumas inovações metodológicas, usamos os artigos como uma espécie de proxy para a evolução de um campo que não se restringe, obviamente, ao que se encontra neste tipo de literatura. Temos alguns artigos metodológicos para sair também. E no momento estamos mergulhados em um estudo sobre regulação da inteligência artificial e desafios para os sistemas de saúde trazidos pelas tecnologias digitais.

Como essas questões se relacionam com a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável?

Curiosamente, a transformação digital não é um tema muito presente na formulação inicial da Agenda 2030, mas vem sendo intensamente debatida em instâncias como o Fórum de Ciência, Tecnologia e Inovação da ONU para os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, que teve participação por muito tempo do nosso ex-presidente Paulo Gadelha na condição de membro do “Grupo dos Dez” de apoio ao Mecanismo de Facilitação Tecnológica dos ODS, e outras iniciativas acompanhadas pela Estratégia Fiocruz para a Agenda 2030, como, por exemplo, The World in 2050 (TWI2050) que aponta a “revolução digital” como uma das seis grandes transformações que poderão viabilizar os objetivos da Agenda 2030 em médio prazo. Em nosso projeto buscamos olhar tanto para as oportunidades quanto para os riscos e desafios presentes nessa transformação, focando nas implicações para a saúde.

Qual a importância da realização de estudos de prospecção de futuro?

Fazer prospecção é difícil e implica assumir riscos; o que posso dizer é que se há um tema sobre o qual é urgente pensar na área de saúde, esse tema é o das tecnologias digitais e seu impacto sobre as formas de produzir saúde. Por exemplo, a tecnologia transforma também a maneira como as pessoas se informam sobre saúde e como elas se relacionam com os serviços e o sistema. Para que lado isso vai não sabemos muito bem, mas não podemos, também, ficar a mercê dos acontecimentos, e para isto é preciso pesquisar. É o que estamos tentando fazer no projeto, e o seminário do dia 12 de julho certamente vai trazer subsídios fundamentais para pensarmos essas questões em perspectiva mais ampla.