Aconteceu nos dias 29 e 30 de novembro, o seminário “Alimentação e Nutrição: Perspectivas na Segurança e Soberania Alimentar”, última edição da série “O Brasil depois da pandemia”, promovida pela iniciativa Brasil Saúde Amanhã no contexto da Estratégia Fiocruz para a Agenda 2030. Estiveram em pauta assuntos como as transformações na agricultura brasileira e os desafios para a segurança alimentar e nutricional no século XXI; os desafios para a transição de sistemas alimentares rumo à sustentabilidade e à promoção da alimentação adequada e saudável; as políticas públicas para soberania e segurança alimentar no Brasil; o sistema agroalimentar global face a uma nova fronteira tecnológica e a novas dinâmicas geopolíticas; as externalidades dos sistemas alimentares no Brasil; a variação do consumo alimentar e o impacto ambiental e econômico no Brasil; e evolução da má-nutrição na população brasileira.
No primeiro dia, o debate contou com a participação de John Wilkinson, daUniversidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Georges Gérard Flexor , da mesma universidade, e Silvia Zimmermann, daUniversidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), No segundo dia, participaram Rosângela Alves Pereira, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Renato Maluf, da UFRRJ, Rosely Sichieri, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), e Gustavo Souto de Noronha, do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). A abertura foi conduzida pelo sanitarista Paulo Gadelha, coordenador da Estratégia Fiocruz para a Agenda 2030, e a moderação ficou a cargo de José Carvalho de Noronha, coordenador da iniciativa Brasil Saúde Amanhã.
As mesas estão disponíveis no canal da VideoSaude Distribuidora da Fiocruz no YouTube, aqui e aqui.
Tranformações no sistema agroalimentar global
“O foco não é mais a agricultura, mas o alimento”. A afirmação de John Wilkinson resume a tendência de mudanças no sistema agroalimentar que têm impactos, inclusive, sobre as suas dinâmicas geopolíticas. “As inovações que vêm transformando o setor seguem dois caminhos: a substituição das cadeias convencionais de proteína animal e a transformação da agricultura em sistemas de cultivo que contribuem com o controle do clima, na cidade e no campo. Essa inovação é impulsionada por atores e interesses que até então não integravam o sistema agroalimentar. Pela primeira vez em 150 anos, as multinacionais que dominavam o setor, como Nestlé e Unilever, estão sendo contestadas por uma nova geração de empresas e produtos, um ecossistema de startups ligado ao capital de risco, com um fundo financeiro global enome”, descreveu.
Wilkinson apontou a China como pivô da reestruturação do sistema agroalimentar global e destacou as implicações para o futuro da agricultura de exportação no Brasil. “A China está fazendo uma verdadeira revolução em sua agricultura para diminuir a dependência global nas cadeias de proteína animal. Com o maior mercado doméstico do mundo, o país mantém a sua estratégia de segurança alimentar, que, junto ao crescimento econômico, é o que mantém a legitimidade do Estado. E, diferentemente do que se imaginava, vem se alinhando às metas do clima e da sustentabilidade. Essa pressão por modelos mais sustentáveis chega também para o Brasil, que parece estar na contramão de todas as tendências de médio e longo prazo. De celeiro do mundo, o país passou a produtor de carne e soja. Essa dinâmica deve perder fôlego antes do previsto, o que trará grandes impactos para os setores de pecuária e grãos”, explicou.
Em seguida, Georges Gérard Flexor traçou um panorama dos principais mercados agroalimentares globais e discutiu os desafios para a segurança alimentar e nutricional no século XXI. “Para analisar as perspectivas de segurança alimentar ao redor do mundo é preciso olhar para a evolução do mercado de commodities nos últimos 20 anos e pensar os possíveis desdobramentos para as próximas décadas. O que percebemos é a tendência crescente nos preços das principais commodities do setor agroalimentar – soja, milho, trigo, arroz, açúcar, frango, carne bovina e suína – o que certamente terá implicações sobre a insegurança alimentar. Além do aumento de preços dos alimentos, que passam a ser inacessíveis para grandes parcelas da população, paíse dependentes da exportação de commodities tendem a ser mais voláteis econômica e politicamente, o que pode trazer dificuldades na institucionalização de políticas e programas voltados à segurança alimentar”, afirmou o professor da UFRRJ.
Completando a programação, Silvia Zimmermann analisou as trajetórias de políticas públicas para soberania e segurança alimentar no Brasil, como por exemplo o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), o Programa Bolsa Família e, durante a pandemia de Covid-19, o Programa Auxílio Emergencial. “Percebemos claramente o desmonte das estruturas que conformam o sistema de segurança alimentar e nutricional do país e apontamos três recomendações para o futuro: a recomposição do Estado Social, a criação de políticas de desenvolvimento inclusivas e a produção de comida de verdade e a democratização do debate sobre segurança alimentar e nutricional, com a devida participação social”, indicou a pesquisadora. Para Zimmermann, as ações prioritárias nesse sentido são a abolição do Teto de Gastos, instituído pela Emenda Constitucional nº 95 (EC 95), a implementação da Renda Básica da Cidadania (lei nº 10835/2004) em 2022 e o resgate e aprimoramento do Programa Bolsa Família.
Impactos para a saúde e o ambiente
Na segunda parte da programação, dia 30 de novembro, Rosângela Alves Pereira (UFRJ), Renato Maluf (UFRRJ), Rosely Sichieri (Uerj) e Gustavo Noronha (INCRA) apresentaram diferentes perspectivas sobre os impactos dos sistemas alimentares sobre a saúde e o ambiente e discutiram desafios nacionais, globais e caminhos para o futuro. Rosângela iniciou a sessão com uma exposição sobre a evolução da má-nutrição na população brasileira e as tendências desse fenômeno para o futuro. “Todos os países são afetados pela má-nutrição, que atinge de uma a três pessoas no mundo. É um grande problema de saúde pública, que combina desnutrição, excesso de peso e deficiência de vitaminas e minerais. É resultado de uma complexa interação de processos que envolvem transição demográfica, epidemiológica e nutricional e ocorrem de forma mais acelerada em países em desenvolvimento”, resumiu a professora da UFRJ.
O estudo analisou a situação da má-nutrição no Brasil a partir de dados do Sistema Nacional de Vigilância Alimentar e Nutricional (SISVAN), do Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (SISNAC), da pesquisa Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel) e de sete inquéritos nutricionais que utilizaram informações sobre estado geral da população, realizados entre 1974 e 2019. Os resultados mostram a persistência de manifestações da subnutrição, como déficit de estatura para a idade e baixo peso ao nascer, e a tendência de incremento das já elevadas prevalências de obesidade. “As condições para o crescimento da subnutrição no Brasil vem sendo colocadas pela crise política e econômica que nos atravessa desde 2016, com o aumento da pobreza e o agravamento da insegurança alimentar. Além disso, nosso sistema alimentar favorece a alimentação inadequada, a obesidade, as doenças crônicas, a mudança climática e aumenta a probabilidade de doenças emergentes, como a Covid-19”, informou Rosângela.
Renato Maluf discutiu os desafios da transição para sistemas alimentares sustentáveis e ressaltou a disputa de concepções e propostas de ação nesse campo, sobretudo em relação às maneiras de se enfrentar as desigualdades. “Integrando o debate internacional sobre a transição justa em direção a sistemas alimentares sustentáveis no contexto das mudanças climáticas, o trabalho se volta a transições articuladas com a ampliação do acesso à alimentação adequada e saudável, considerando as desigualdades sistêmicas e aspectos de equidade e justiça. A relação entre os problemas ambientais e as questões de saúde e nutrição nos mostram que não há uma resposta única. Buscamos sugerir caminhos possíveis, ainda que envolvendo conflitos e antagonismos, para a transformação das práticas de produção, comercialização e consumo de alimentos na direção de sistemas alimentares sustentáveis, equitativos e saudáveis”, afirmou Maluf. Para o pesquisador, a politização da alimentação é fundamental para ampliar a visibilidade dos problemas de saúde e nutrição condicionados pelos sistemas alimentares. “Vejamos os dois paradoxos brasileiros. Primeiro, um dos maiores exportadores de alimentos do mundo não consegue assegurar a segurança alimentar e nutricional de sua população. Segundo, as famílias rurais, que deveriam ter as condições de ao menos assegurar o seu próprio alimento, têm os indicadores de insegurança alimentar mais elevados”, concluiu.
Em seguida, Rosely Sichieri explorou a evolução e as tendências dos padrões de consumo alimentar no Brasil, incluindo as mudanças ambientais e climáticas associadas ao atual modelo. “Nós estamos vivendo a tempestade perfeita do ponto de vista do sistema alimentar e das doenças a ele associadas, com o aumento expressivo de condições como a obesidade, a desnutrição e, também, alterações metabólicas importantes. Hoje, além de nos nutrir, os alimentos nos trazem pesticidas. O modelo de produção produz fome, violência. Tudo isso impacta o indivíduo, o ambiente e o conjunto da sociedade”, iniciou a pesquisadora.
Dentre as recentes mudanças na forma de se alimentar, Rosely destacou o delivery, que representa importante expressão dos hábitos alimentares contemporâneos. “Na perspectiva do sistema alimentar e de seu impacto para a Saúde Pública, a escolha de pedir comida preparada fora de casa envolve toda a sociedade e perpassa questões que vão além da qualidade nutricional do alimento. Durante a pandemia de Covid-19, quase 4 milhões de brasileiros trabalhavam com aplicativos de entrega de comida, atravessando a cidade de estômago vazio para alimentar consumidores”, lembrou a pesquisadora.
Encerrando a programação, Gustavo Souto de Noronha abordou as externalidades na produção de alimentos e propôs caminhos para a construção de um amanhã. “O conceito de externalidades diz respeito aos efeitos colaterais provocados pelas ações de alguns que afetam a todos. Nos sistemas alimentares, essas externalidades podem gerar danos ao capital humano e ao capital natural. O uso de agrotóxicos é um exemplo: traz consequências para a saúde das pessoas e do ambiente; está relacionado a novas epidemias e pandemias e às emergências climáticas”, esclareceu o pesquisador, destacando que o Brasil é o terceiro maior consumidor de agrotóxicos, em toneladas, e o quinto em toneladas por hectare.
“Para haver um amanhã é necessário proibir determinados tipos de agrotóxicos, instituir maior fiscalização das normas existentes para uso desses produtos, incrementar o uso de tecnologias, como a agricultura de precisão e a biotecnologia, diminuir o uso do óxido nitroso, trabalhar com modelos de agricultura climaticamente e ecologicamente inteligentes, encurtar as cadeias produtivas, valorizar a agroecologia e a produção orgânica e desenvolver modelos agrário e agrícola compatíveis com as transformações necessárias”, concluiu.