Nem só de Covid-19 adoecem as populações. O mundo, no entanto, encontra-se diante de uma crise sanitária que parece acabar deixando em segundo plano outras necessidades de saúde – algumas delas, inclusive, se não atendidas, podendo mesmo agravar um possível quadro da Covid. Acomodar rotina e emergência, no entanto, vem sendo um desafio para os sistemas de saúde, mesmo os mais estruturados. Para o SUS brasileiro, fragilizado, em especial, nos últimos anos, por medidas como a Emenda Constitucional 95/2016, que congelou os gastos governamentais com saúde por vinte anos, o desafio é ainda maior.

Levantamento da Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgado em 1º/6/2020, em 155 países, sobre doenças não transmissíveis, apontou que mais da metade ​​interrompeu parcial ou completamente os serviços de tratamento da hipertensão; metade o de diabetes e complicações relacionadas; 42%, o de câncer e 31% o atendimento a emergências cardiovasculares. No Brasil, não é diferente. Entre outros dados, 50 mil brasileiros com câncer estão sem acompanhamento, como mostrou reportagem do jornal O Estado de S. Paulo.

Para analisar esse quadro, o blog do CEE-Fiocruz entrevistou o ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão, membro titular da Academia Brasileira de Medicina, e o ex-diretor do Instituto Nacional do Câncer e do Centro Colaborador da OMS para o Controle do Tabaco Luiz Antonio Santini, pesquisadores associados do Centro. Eles coordenam a pesquisa O Futuro das Tecnologias de Atenção ao Câncer, conduzida pelo CEE, voltada à percepção de médicos especialistas em Oncologia a respeito da possibilidade de acesso da população a tecnologias de diagnóstico e tratamento do câncer nos próximos trinta anos, um tema aparentemente distante do estado emergencial em que o país se encontra, mas fundamental para que o sistema de saúde se prepare e se fortaleça.

“O que estamos vivendo não cabe nem na medicina nem na saúde pública. Tem impacto em todas as dimensões da vida, política, econômica, social ambiental”, analisa Temporão. “Essa pandemia é, realmente, o maior evento sanitário em mais de um século”, destaca Santini, lembrando que só viemos a ter sistemas de saúde organizados no mundo a partir da Segunda Guerra Mundial. “Portanto, até hoje, nenhum sistema de saúde que conhecemos sofreu um impacto da dimensão do provocado por essa pandemia”.

Os pesquisadores analisam o duplo papel da Covid-19, que, ao mesmo tempo em que vem ocupando toda a agenda da saúde, acabou por trazer à tona a relevância dos sistemas universais, dos quais o SUS brasileiro é único na garantia de saúde pública e gratuita como direito de todos, em um país de proporções continentais. A pandemia evidenciou, ainda, a pertinência de a atenção e o cuidado à saúde estarem fora do mercado, bem como a importância de um Estado presente, para regular, fiscalizar, fazer vigilância e coordenar ações. “A Covid traz uma necessidade de resposta articulada, e essa é a grande capacidade do setor saúde no Brasil. Apesar das dificuldades, esse modelo de direção organizacional do sistema, com gestão tripartite, com definição de planos de ação e acompanhamento de gestão contribuiu muito para um primeiro nível de resposta que o sistema de saúde do Brasil conseguiu dar à pandemia”, observa Santini.

 

Leia a seguir a entrevista.

 

Em edição especial sobre o novo coronavírus, publicada em fevereiro de 2020, a revista The Economist observa que uma pandemia é mais do que uma doença, representando um teste para os sistemas de saúde, governos, economia e política. Como podemos analisar, hoje, o desempenho do mundo e do Brasil, em especial, nesse ‘teste’?

José Gomes Temporão – O que estamos vivendo não cabe nem na medicina nem na saúde pública. Tem impacto em todas as dimensões da vida, política, econômica, social ambiental. É uma doença nova, desconhecida, ainda sabemos pouco sobre ela. Há mais de 15 mil papers sobre a Covid-19, dos quais, como indicam alguns especialistas, se sobrar uma dezena, vai ser muito. Essa doença encontra um estágio de desenvolvimento do capitalismo que, nas últimas décadas, vem fragilizando em termos globais o sistema de proteção social. Isso é perceptível na Europa, na América Latina, nos Estados Unidos. Hoje, a questão mais importante a ser enfrentada é a da desigualdade estrutural. Os trabalhos do Thomas Pikkety [economista francês, autor de o capital no século XXI) discutem isso. E os sistemas de saúde fazem parte desse processo, sofrem essas influências. O vírus que provoca a Covid-19 tem três características importantes. Primeiro, a alta capacidade de transmissão de pessoa a pessoa; segundo, em um percentual de pessoas desenvolve-se de forma muito grave exigindo duas a três semanas de internação e cuidados intensivos; terceiro, não há tratamento, nem vacina, ainda. Isso expõe as fragilidades e vulnerabilidades dos sistemas de saúde, claramente documentadas no número de óbitos e no número de casos. A doença envolve questões éticas e sociais. Já podemos perceber, três, quatro meses após o início do processo, que, na Europa, ela aparece de forma mais grave nos muito idosos, pessoas acima de 80 anos, e naqueles que estão na escala social mais vulnerável. Nos Estados Unidos, incide sobre os negros. Na Inglaterra, em minorias, migrantes, negros e de outras etnias que não os brancos.

E em relação ao Brasil?

Temporão – Em relação ao Brasil, observa-se um rejuvenescimento da pandemia, no sentido de que nossa estrutura demográfica é diferente daquela dos países europeus; somos uma população predominantemente mais jovem – embora as maiores taxas de mortalidade se apresentem entre os idosos. O problema das comorbidades tem dados muito preocupantes no país: 40% da população adulta brasileira acima de 18 anos tem pelo menos um fator de risco – hipertensão, diabetes, obesidade, doença renal. E é preciso destacar a questão das vulnerabilidades, as diferenças entre taxas de mortalidade em bairros mais pobres e mais ricos, de São Paulo, Rio de Janeiro; a questão racial, que também explicita-se de maneira importante. Violência doméstica, contra a mulher, contra a criança, uso abusivo de álcool e outras drogas, depressão também estão nesse contexto.  Enfim, essa doença evidencia diversas dimensões da vida em sociedade, fragiliza mais um sistema de saúde já frágil, além de afetar profundamente a economia – que tem efeito importante sobre a saúde. Então, estamos diante de um cenário extremamente complexo que, como disse, transcende a medicina e transcende a saúde pública.

Luiz Antonio Santini – Essa pandemia é realmente o maior evento sanitário em mais de um século; temos a gripe espanhola, entre 1918 e 1919 e, agora, a Covid-19, com mesma dimensão e mais rapidez de transmissão. Chamo atenção, nesse sentido, para o fato de que só viemos a ter sistemas de saúde organizados no mundo a partir da Segunda Guerra Mundial; os sistemas de saúde se consolidaram a partir dos conceitos beveridgianos [relativos ao Relatório Beveridge, do governo britânico, concebido pelo inglês William Beveridge, orientador do Estado de bem-estar social no Reino Unido]. Portanto, até hoje, nenhum sistema de saúde que conhecemos sofreu um impacto da dimensão do provocado por essa pandemia. Um impacto em todas as dimensões do sistema – organizacional, de oferta de serviços, de capacitação profissional, recursos tecnológicos, entre outras.

De que forma isso se dá?

Santini – Vamos tomar um caso específico, o da atenção ao câncer. A mortalidade por câncer no mundo é de mais de 8 milhões por ano. A Organização Mundial da Saúde reconhece o câncer como uma epidemia global. No entanto, essas mortes ocorrem ao longo do período de um ano e com uma previsibilidade capaz de ser suportada pelo sistema de saúde – sempre lembrando que o índice de mortalidade não precisaria alcançar essa dimensão, se houvesse mais eficácia e organização, e, sobretudo, prevenção. De qualquer forma, ainda era possível organizar o sistema para isso. A pandemia de Covid-19 acescentou, onde já existia dificuldade, mais dificuldades ainda. No caso do câncer, principalmente, a dificuldade se dá em relação ao acesso, seja aos recursos tecnológicos, hospitalares, de que os pacientes de câncer necessitam e que hoje já estão reduzidos em sua oferta; seja em relação à detecção precoce de certos tipos de câncer, como câncer de mama, de colo de útero, colo retal ou de próstata, cuja oferta existe, mas é baixa a procura. E há ainda a dificuldade de acesso pela redução – necessária – da mobilidade das pessoas, como forma de enfrentamento da pandemia. Isso está causando, e vai causar, certamente, um impacto poderoso e negativo no sistema de saúde, especialmente, em relação ao retardo do tratamento, com perda de oportunidade de melhores resultados.

O levantamento da OMS sobre doenças não transmissíveis, em 155 países, divulgado no dia 1º/6/2020, aponta para isso, em nível mundial. Como podemos enxergar o lugar dessas outras demandas de saúde no contexto da pandemia, uma vez que não é só de Covid-19 que a população adoece – embora a doença esteja dominando toda a agenda da saúde?

Santini – Temos aqui estudos recentes, preliminares, como o da Sociedade Brasileira de Cirurgia Oncológica, que já mostram redução de realização de procedimentos muito significativa. Em São Paulo, houve redução em alguns hospitais, em torno de 70%. E há, ainda, os casos de câncer que necessitam de atendimentos emergenciais, que não são percebidos como tais, como alguns cânceres hematológicos, as demandas de transplantes de medula óssea e complicações clínico-cirúrgicas, como hemorragias, metástase em coluna vertebral com compressão de medula, que podem demandar uma radioterapia de urgência. Enfim, o impacto no sistema de saúde é sem precedentes. Ainda não temos a dimensão desse impacto, mas, certamente, a perda de eficiência e qualidade do sistema de saúde, sobretudo para aqueles que já têm dificuldade, como é o caso do Brasil, será muito grande.

Temporão – Creio que nenhum país no mundo está dando conta desse cenário. Ainda não temos evidências, só deveremos ter nos próximos meses, indicadores que demonstrem o que o Santini traz com muita clareza. Pacientes com doenças crônicas que deixaram de fazer acompanhamento de sua situação, quantidade de óbitos que ocorrem em casa, não necessariamente por Covid-19, mas por receio de se procurar um serviço de saúde, para controle de rotina de hipertensão ou diabetes, ou de ir fazer um exame agendado para aquele período. Desconheço que exista algum país que conseguiu dar conta de enfrentar o número dramático de casos graves por Covid-19 e, ao mesmo tempo, manter totalmente íntegra a estrutura de acompanhamento dos problemas de saúde cotidianos e corriqueiros. O que tenho percebido é exatamente o contrário. O mundo todo vivendo o mesmo problema. Imagine o paciente que faz uso de medicamento crônico para tuberculose ou hanseníase, que tem que buscar mensalmente esse produto no posto de saúde, ou aquele que precisa fazer uma avaliação com o cardiologista, ou mesmo um acompanhamento laboratorial. Como isso está se passando? Como está se dando o impacto esses procedimentos? Ainda não temos levantamentos epidemiológicos que nos demonstrem isso em números. Na verdade, os únicos procedimentos não afetados foram as cirurgias eletivas, que podem aguardar um outro momento para serem realizadas. Para qualquer outro problema de saúde, agudo ou crônico, minha impressão é que o impacto é grande, e em termos globais. Essa série de indicadores indiretos mencionados reforça essa compreensão. Seria para mim uma surpresa ser apresentado agora a algum sistema de saúde que comprove que não só deu conta da demanda causada pela Covid-19, como manteve de maneira absolutamente regular o atendimento às outras demandas de saúde.

Como proceder diante disso? ‘Cobrar’ dos sistemas de saúde que atendam as demais demandas, os casos de câncer, hipertensão etc., sugeriria levar para ‘segundo plano’ a pandemia, que, afinal, está matando mais imediata e emergencialmente? Como idealmente, os sistemas de saúde poderiam lidar com essa espécie de demanda ampliada pela Covid-19?

Santini – É uma pergunta pertinente. Tenho uma reflexão sobre isso. Em uma primeira aproximação, o que a gente vê é isso mesmo: fomos pegos de surpresa, por uma situação que a maior parte dos países não estava preparada para enfrentar, fora os que já não enfrentavam suas demandas já previstas. Ou seja, em muitos casos, já não havia preparação adequada mesmo para aquilo que não era surpresa. O caminho seria distribuir prioridades, de acordo com a demanda emergencial, mas com uma demanda dessa dimensão é muito difícil. É o que eu chamaria de componente catastrófico da pandemia. Mas há uma outra dimensão, mais profunda, que se refere à inadequação dos sistemas de saúde, tal qual foram estruturados e concebidos até agora, no que diz respeito à questão organizacional e à compreensão da relação saúde-doença. Há anos temos buscado criar uma cultura de convencimento sobre a importância dos determinantes sociais da saúde. Isso agora se apresenta como questão fundamental a ser resolvida; não é mais uma tese de sanitaristas, de especialistas em saúde pública, mas um dado de realidade. Essa pandemia vem concretamente mostrar que a abordagem exclusivamente médica, biológica da doença é totalmente insuficiente para dar conta do impacto social e econômico que provoca Sem deixar de considerar que o conhecimento biológico, o conhecimento profundo da ciência seja componente muito importante. Mergulhados nos impactos da pandemia, temos dificuldade de elaborar sobre tudo isso, conceber um olhar mais global sobre a situação, até para verificar que, dentro desse contexto, existem grandes desafios e existem grandes oportunidades do ponto de vista do desenvolvimento tanto da estrutura organizacional quanto da área tecnológica e de pesquisa.

Temporão – É evidente que uma política de saúde que só olha para a sua dimensão médica, assistencial, é completamente frágil. Está escancarado para a nação que o desemprego estrutural, a questão urbana, do transporte público, do acesso a saneamento e água, a questão da renda, da qualidade da moradia têm impacto direto no risco de adoecer e de morrer, de quaisquer patologias. O Brasil que vinha bem, com Saúde da Família, com um olhar para a prevenção e promoção, nos últimos anos, foi perdendo muito. Mudanças estruturais foram feitas pelo governo, em especial, a aprovação da Emenda Constitucional 95/2016, que congelou os gastos sociais por vinte anos e precisa ser trazida para essa discussão. Isso retirou do orçamento do Ministério da Saúde, só no ano de 2019, 20 bilhões de reais. Nosso sistema de saúde, portanto, já vinha sendo fragilizado estruturalmente. A degradação estrutural é construída ao longo dos anos. Perda de qualidade, fechamento de leitos, demissão de funcionários, regimes de contratação inadequados aos profissionais de saúde, tempo de espera mais longo. É nesse contexto de degradação do sistema público e do SUS que o país recebe essa demanda nova da Covid-19.
Tínhamos em tese todas as condições para dar uma resposta para o mundo, em relação à pandemia. Mas essas fragilidades, sobretudo de 2015 para cá, aliadas à conjuntura atual, com ausência total da presidência da república, com prefeitos e governadores enfrentando a pandemia apesar do governo federal, nos distanciaram disso. A presença tóxica e irresponsável do presidente, essa perda total de coordenação, de liderança, de condução política é parte importante do que está acontecendo em termos de número de casos e de mortes no país.
Aspectos como a questão que estamos discutindo nesta entrevista, sobre as outras demandas da saúde que não a Covid-19, tudo isso fica afetado pela postura do presidente, que fragmenta, fragiliza o eixo central da política de saúde brasileira que é interfederativa, tripartite, envolvendo União, estados e municípios, em uma pactuação, uma construção conjunta de políticas. Tudo isso se perdeu nesse contexto. É importante entrar na ordem do dia uma rediscussão sobre as relações federativas no país.

Santini – Num momento em que o país, para enfrentar a pandemia, tem necessidade de conhecimento técnico, recursos, liderança e confiança, isso é tudo que está nos faltando, no nível das autoridades responsáveis. Tenho tido contato com outros colegas da América Latina e o que estamos vendo é que a ausência do Brasil como líder está causando uma perplexidade. Gostariam de saber o que está acontecendo no país, o que o enfrentamento da pandemia está trazendo de contribuição. Em vez disso, o Brasil passou a representar uma ameaça no continente. Essa posição nos coloca mais uma vez diante de um quadro em que temos capacidade, temos reflexões organizadas sobre a questão da segurança na saúde em diferentes dimensões, e estamos paralisados por uma política governamental destrutiva. Nossa capacidade, nosso conhecimento, nossa possibilidade de enfrentamento da situação está sendo obstaculizado politicamente. Isso é que é dramático, é o que causa maior perplexidade e revolta, para quem está querendo contribuir para essa discussão.

As conquistas alcançadas ao longo dos anos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) nem sempre foram percebidas e apropriadas pelo conjunto da população. Nesse sentido, a Covid-19 veio desempenhando um ‘duplo papel’: ao mesmo tempo em que está tomando toda a agenda da saúde, trouxe à tona uma valorização dos sistemas universais como o SUS, que alcança a todos sem distinção, em seu entendimento da saúde como bem comum, e de um Estado presente, regulador. Como podemos olhar para esse aspecto da Covid-19 e nos apropriarmos desse destaque que a pandemia, de alguma forma, trouxe para os sistemas públicos e universais?

Santini – De fato, houve uma compreensão mais ou menos disseminada da importância do Sistema Único de Saúde, que enfrenta setores que tradicionalmente se colocam críticos ao sistema, como setores da mídia, o sistema privado de saúde, basicamente, no que diz respeito à eficiência e à efetividade das ações. Geralmente, críticas muito superficiais, na maioria das vezes, ideológicas muitas delas, algumas por falta de compreensão, outras pelo senso comum. A Covid traz uma necessidade de resposta articulada, e essa é a grande capacidade do setor saúde no Brasil. Apesar das dificuldades, esse modelo de direção organizacional do sistema, com gestão tripartite, com definição de planos de ação e acompanhamento de gestão, isso tudo contribuiu muito para um primeiro nível de resposta que o sistema de saúde do Brasil conseguiu dar à pandemia.
Esse reconhecimento é muito importante. Mas é preciso, a seguir, dar a esse reconhecimento sua dimensão de futuro. Levantando aqui uma bola para o Temporão desenvolver, no campo do conhecimento, da ciência, da produção, temos enorme oportunidade e enorme desafio. Em relação à produção de insumos, tecnologia, medicamentos, vacinas, o Brasil desenvolveu uma grande capacidade para ocupar espaço nessa agenda e ser um agente importante. Isso, no entanto, como já destacamos, veio, ao longo dos últimos anos, sendo desmontado, desqualificado. Precisamos retomar! Essa dimensão técnico-científica é um pilar para sustentar o futuro do sistema de saúde. É uma capacidade que o sistema tem e que precisa ser impulsionada, alimentada, ao lado da formação profissional, hoje anacrônica e ultraespecializada, do financiamento do sistema e de sua dimensão estrutural. São os pontos a serem enfrentados em direção ao futuro.

Temporão – Queria acrescentar a questão ambiental. Existe muita gente séria que avalia que o homem está no centro do processo, no que diz respeito a essa nova doença. O ataque à biosfera, o desequilíbrio ambiental, a criação intensiva de animais para consumo humano, questões culturais, desmatamento, levaram, no limite, a esse salto de espécie do coronavírus – e teme-se o que pode acontecer no futuro. Olhando-se retrospectivamente, tivemos algumas epidemias importantes, como a gripe espanhola já citada, a gripe asiática. Mas neste século agora tivemos muitas mais! A síndrome respiratória no Oriente, a síndrome respiratória asiática, zika, H1N1, ebola. E agora, a Covid-19. Esses eventos estão se acumulando. E o Brasil é um dos países mais importantes na manutenção do equilíbrio global.

Temporão – A questão do papel do Estado é muito importante na pandemia. Vivemos uma conjuntura em que o mercado virou paradigma para a solução de todos os problemas. Ficou bastante evidente que, sem um Estado forte, regulador e provedor, não se conseguem enfrentar situações como essa. Em relação ao SUS, foi perceptível que, não só setores que costumavam ter certa reticência, mas também setores dentro do próprio campo progressista, passaram a compreender com mais clareza a importância estrutural do sistema para o desenvolvimento do país, e como é importante protegê-lo, qualificá-lo e aperfeiçoá-lo. Esse é um grande ganho. Temos pelo menos três dimensões importantes a destacar no SUS: a dimensão econômico-financeira; a dimensão política, de sustentabilidade do sistema, como desejo da sociedade, como pensamento hegemônico de que o SUS é o melhor caminho – e isso se ganha na luta política, na mobilização, no debate; e a terceira, que é a sustentabilidade tecnológica, que neste momento de pandemia, se mostrou frágil. De um dia para o outro, percebemos que não produzimos insumos farmacêuticos, importamos 90% dos princípios ativos dos medicamentos, não produzimos respiradores, não produzimos sequer material de proteção individual para os profissionais, como luvas, aventais, máscaras. As barreiras tecnológicas para isso não são intransponíveis. Na verdade, o Brasil teve uma política voltada ao fortalecimento do complexo econômico e industrial da saúde, com internalização de capacidade produtiva, parcerias entre laboratórios públicos e empresas privadas, empresas de capital internacional. Mas, a partir de 2016, fragiliza-se essa visão estratégica, extremamente importante, de usar o poder de compra do Estado, fazer parcerias público-privadas, definir políticas que nos permitam produzir aqui no Brasil essas tecnologias. O Brasil tem uma ciência forte, tem um sistema universal, tem um sistema produtivo que é o mais estruturado e organizado da América Latina, tem um sistema regulador de qualidade reconhecido internacionalmente. Temos todas as condições para retomar essa agenda desenvolvimentista e as relações entre saúde, ciência e política industrial no campo da saúde.

Esses são caminhos que ‘acomodariam’, ainda que em médio e longo prazo, as demandas de saúde da população, sem que se torne mais necessária uma ‘disputa de espaço’ com a Covid-19…

Santini – É preciso levar em conta que ainda se toma como modelo de organização da atenção à saúde o pensamento de que cada doença, cada situação de saúde demanda uma estrutura de combate. Tenho sido bastante crítico a essa visão, que deriva de um paradigma pasteuriano, de luta contra as infecções. É compreensível o sistema estruturado assim, mas o desafio colocado pela Covid, e pelas pandemias de maneira geral, nos obriga a mudar isso. Se imaginarmos que a estrutura dos serviços de saúde tem que se organizar a partir de cada evento sanitário, estruturando uma força de combate específica, como foram as campanhas de saúde pública no passado, no próprio Brasil, o caminho se complica. Existia um serviço para malária, para lepra, febre amarela, cada doença tinha uma organização específica para seu enfrentamento, sob a estrutura do Ministério da Saúde. Esse modelo foi parcialmente superado pelo SUS, que passou a ter uma visão mais abrangente dos problemas de saúde. Estamos novamente diante de situações endêmicas, epidêmicas e poderosas, e a solução certamente não vai ser o enfrentamento localizado de cada uma delas. A estrutura organizacional não poderá ser uma estrutura de combate, mas uma estrutura complexa, que já incorpore ações capazes de permitir atender as diversas demandas de saúde, na dimensão da importância dessas demandas, em determinado momento histórico. O modelo de organização do serviço de saúde a partir de necessidades e especialidades está completamente superado. E gera grande desperdício de recursos. O que é um novo modelo, ainda não sabemos, mas seguramente haverá de ser um que não tenha por base a estratégia de luta contra isso ou aquilo.

Temporão – Nessa necessidade – em que todos concordamos – de repensar o sistema de saúde brasileiro, colocada na agenda dos países, chamo atenção de que temos um aliado importante, que é a própria ciência. Há novas perspectivas, como inteligência artificial, big data, telemedicina, novos métodos de diagnóstico, que terão impacto positivo na maneira como organizar e pensar o sistema de saúde. Isso tem que entrar na agenda. Estamos, no Centro de Estudos Estratégicos, trabalhando em uma pesquisa de percepção da sociedade civil sobre novos métodos de diagnóstico de câncer e possíveis barreiras de acesso [ver aqui]. Neste momento, observa-se grande esforço na busca de medicamentos e de métodos para diagnóstico mais rápido. É uma questão a pensar.

Temporão – Voltando à pergunta quanto a acomodar demandas, temos que separar o que é estrutural do que é conjuntural. Vou dar um exemplo concreto. Já vivemos várias epidemias de dengue e de outras doenças, tivemos surto de zika, de febre amarela. Isso, no entanto, não afetou, em praticamente nada o sistema de saúde, no que diz respeito a atender as demandas regulares da população. Cirurgias continuaram a ser feitas, o câncer continuou a ser tratado, diagnosticado. Outro exemplo é o da epidemia de H1N1, de 2009, que teve início muito parecido com a de Covid-19, um vírus da família influenza, descoberto no México, que causava uma doença nova. Rapidamente, percebemos ser possível fazer uma vacina e, em 2010, vacinamos metade da população, 100 milhões de pessoas. Era uma doença que causava quadro muito semelhante, em termos de gravidade, ao das doenças respiratórias sazonais. No início da H1N1, também uma pandemia global, o impacto no funcionamento do sistema de saúde foi zero. Não dá para comparar com o que está acontecendo nos últimos três meses, uma doença muito mais grave, em dimensão muito maior e que inevitavelmente afeta o funcionamento do sistema de saúde.

Como olhar a possibilidade de novas epidemias nas mesmas proporções? Diversos especialistas já apontaram que a emergência de uma epidemia como essa estava de certa forma prevista, dada a forma como os seres humanos relacionam-se com o planeta. Como nos prepararmos para outros cenários como esse, de modo que sejamos menos surpreendidos?

Temporão – Algumas lições ficam. Temos que melhorar nosso sistema de vigilância epidemiológica. Já temos evidências de que esse vírus já estava circulando no Brasil, pelo menos um mês antes da divulgação dos dados iniciais. Provavelmente, no carnaval já estava circulando no Rio de Janeiro. Isso vem junto com a necessidade de investirmos na capacidade de acompanhamento e diagnóstico. E o último ponto é fortalecer a governança global em saúde. A Organização Mundial da Saúde está sob ataque dos Estados Unidos. Isso é uma contradição dramática. Todos sabemos que uma pandemia como essa não se enfrenta de maneira isolada, com cada país olhando para si próprio. É preciso uma capacidade de coordenação e enfrentamento coletivo do conjunto de países. Tudo bem que se repense a OMS, que se fortaleça a OMS, mudar o que tem que mudar, mas jamais abrir mão desse organismo, que é fundamental para se coordenar, articular, integrar, apoiar os países mais pobres, estimular o desenvolvimento de métodos de diagnóstico e tratamento. Então a governança global é extremamente importante também neste momento.

Santini – Vários autores, pensadores, gestores, como Yuval Harari, Bill Gates e Jared Diamond, entre muitos outros, previram a possibilidade de novas epidemias e pandemias, com espaço cada vez menor entre elas. Enquanto isso é uma palavra de um filósofo ou de um biólogo, não tem muita repercussão. Desta vez, aconteceu o que esses teóricos previram. A dimensão é do tamanho previsto, uma dimensão catastrófica. A partir de uma catástrofe, se pode imaginar que, ou ela vai se resolver por si, e deixar um rastro de destruição, que o mundo não vai ser capaz de responder – essa é a visão mais catastrofista –, ou se tem uma visão mais otimista, de que o mundo vai ser capaz de ler esta tragédia, e, a partir dessa leitura, pensar em reestruturar seus sistemas, sociais, econômicos, de proteção. É isso que está em discussão, hoje. Temos ferramentas para isso, temos ciência para isso. É uma questão de decisão da sociedade global. Temos grandes desafios para que isso aconteça. O mundo não é favorável para isso, do ponto de vista de suas lideranças, como a norte-americana e a brasileira. Mas isso pode mudar. Temos que trabalhar politicamente, no sentido dessa mudança.

 

Fonte: CEE Fiocruz

Autora: Eliane Bardanachvili