“A Constituição de 1988 foi um marco na garantia da saúde como direito e um passo importante para a universalização da cidadania, apesar de, passados 26 anos, ainda estarmos em construção”, afirma a pesquisadora do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas (NEPP), da Universidade de Campinas (Unicamp), Ana Maria Medeiros da Fonseca, uma dos idealizadoras do programa Bolsa Família e Brasil Sem Miséria. Ela lembra que, antes de 1988, existiam apenas as santas casas, os hospitais dos alienados e as instituições filantrópicas. “Saúde universal e gratuita como a que temos hoje, apesar das diferenças regionais e intermunicipais e das dificuldades que conhecemos, estava fora do nosso universo”.
Região e Redes: No campo da saúde é possível enxergar de forma transparente que o bem estar do cidadão necessita de um conjunto de ações e serviços públicos muito além do SUS. Mas em um país com as diferenças e desigualdades sociais, econômicas e políticas, qual o papel de um sistema universal de saúde, garantido na Constituição Federal?
Ana Fonseca: Quando olho para a vida das pessoas da minha geração, lembro que naquele tempo existia apenas as santas casas, os hospitais dos alienados (que eram uma espécie de internato para os portadores de transtornos mentais), e as instituições filantrópicas. Saúde universal e gratuita como a que temos hoje, apesar das diferenças regionais e intermunicipais e das dificuldades que conhecemos, estava fora do nosso universo. Na época dos institutos de aposentarias e pensões (IAPs), o acesso à saúde era diferenciado por institutos e restrito aos trabalhadores urbanos com carteira assinada.
A Constituição de 1988 foi um marco na garantia da saúde como direito e um passo importante para a universalização da cidadania em nosso país, apesar de até hoje, passados 26 anos, ainda estarmos em construção. Ampliando o olhar para além da saúde, o direito universal à educação e, a partir de 2007, a introdução do direito à alimentação e segurança alimentar entre os direitos sociais, são conquistas da cidadania. No campo da saúde, ainda temos muito a avançar, conjugando esforços para enfrentar elementos que interferem na saúde: água potável, destino do lixo e outros.
Temos que refinar o olhar sobre o que é democracia e desconstruir o discurso reducionista que trata a democracia como se direito ao voto e discussões parlamentares, políticas, ideológicas e governamentais dessem conta desse conceito. Tudo isso é importante e quem viveu os anos de ditadura sabe que não é pouca coisa. Mas democracia tem como base também a “construção” de cidadãos plenos de direitos à saúde, educação, transporte, moradia, saneamento. É impossível pensar em uma democracia verdadeira que não dê acesso a saúde e educação a seus cidadãos. Que não garanta segurança alimentar ao povo, entre muitas outras necessidades básicas. Não dá para pensar uma democracia sem o povo com as necessidades atendidas. Não existe democracia vazia de cidadãos de direitos, titulares de direitos.
RR: Essa democracia é construção contínua…
AF: Sem dúvida. O que recuperamos com a redemocratização foi a possibilidade de reativar e reiniciar esse processo de mudança em direção a um país mais civilizado e equânime. Isso leva tempo. É um processo e não um evento, com data marcada. Desde a aprovação da Constituição temos avançado, ora mais lenta, ora mais rapidamente. O que jamais poderemos aceitar é a interrupção desse processo de empoderamento dos cidadãos.
Por isso, um país do tamanho do Brasil, com todas as suas diferenças e suas desigualdades profundas, não pode aceitar receitas prontas, fáceis ou sacrificantes. O papel dos governantes é realizar o que a Constituição nos garante e não reclamar e limitar nossas possibilidades de futuro. Afinal, quando se jura a Constituição ao assumir qualquer cargo político não é um ato banal nem retórico, é algo muito sério. Tem que cumprir.
RR: Nesse momento de crise, de dificuldades econômicas e políticas, como manter e até ampliar os avanços nas políticas pró-cidadania e no enfrentamento das diversas faces da desigualdade brasileira?
AF: Não tem segredo. Isso tudo tem um preço e, por isso, é preciso fazer o país retomar a trajetória de crescimento da economia para conseguir financiar o gasto social, e não adequar o gasto social ao orçamento menor que a crise nos impõe. Não dá só pra ficar administrando a crise e esquecer que temos um país por construir.
Mas para retomar com maior vigor ao processo de crescimento, precisamos enfrentar algumas questões que estão na base das desigualdades no Brasil. Precisamos de uma reforma tributária que seja mais justa: quem tem mais deve pagar mais tributos. Hoje temos o inverso: os mais pobres pagam mais do que os mais ricos. Essa é uma necessidade de décadas, nunca enfrentada. Tratar dos impostos sobre as grandes fortunas, sobre as heranças. Precisamos rever o pacto federativo, uma reforma urbana que torne nossas cidades mais civilizadas. Pra ficar em apenas três exemplos. Mas antes disso tudo, precisamos de uma ampla e profunda reforma política para que o país eleja representantes de fato preocupados com as necessidades da população e com a soberania do Brasil. Aqui o assunto do financiamento privado das campanhas é crucial. Político que não nos envergonhem, mas que saibam de suas responsabilidades na construção de um país menos desigual. A reforma política é a primeira, a mãe de todas as reformas. Senão, corremos sérios riscos de ter cada vez mais políticos comprometidos com interesses particulares, de bancadas, partidos e financiadores de campanha. Como falei, avançamos muito, mas acelerar e consolidar as conquistas passa por essas reformas.
RR: Nesse enfrentamento das desigualdades, qual o papel das políticas sociais focalizadas?
AF: As políticas sociais colocadas em prática no Brasil foram importantíssimas para o país avançar em várias frentes. Em algumas, como enfrentamento à miséria, à pobreza e à fome, temos reconhecimento internacional pela excelência e sucesso dos programas de transferência de renda e de segurança alimentar. Não foi pouco o que se fez nas últimas décadas.
As políticas universais, como o SUS, têm um papel central para melhorar a vida dos brasileiros. Mas, para atingir os que mais precisam, foi preciso direcionar um esforço específico. Foi assim, por exemplo, com o Bolsa Família; o Minha Casa Minha Vida; o Luz Para Todos; o Brasil Sorridente; o Um Milhão de Cisternas; as cotas nas universidades para negros, índios, estudantes de escolas públicas; além dos programas de qualificação profissional, acesso a medicamentos e a serviços médicos. Tudo isso tem o seu papel e trouxe ao país avanços significativos.
Mas há uma discussão na sociedade entre a universalidade versus a focalização. Acho que deveríamos mudar essa lógica e entender que, até para oferecermos e consolidarmos as políticas universais, é preciso compreender as especificidades de cada local, região ou comunidade. Assim garantimos um acesso mais equânime ao que é ofertado por essas políticas.
Na criação do Plano Brasil Sem Miséria, observamos com base do Censo 2010 do IBGE que não era possível que o Programa Bolsa-Família continuasse a pagar por um número máximo de crianças, pois na região Norte do Brasil, as famílias eram mais numerosas quando comparadas às demais regiões. Apenas tirando esse limite, conseguimos incluir cerca de 1,3 milhão de crianças no programa. Para conseguirmos universalizar, temos que ter um farol: a equidade. Mais uma vez, não se faz nada disso sem recurso e a disputa por esses recursos são muito intensas. Quando o Ministério da Saúde mudou os critérios do Piso da Atenção Básica (PAB), que era de um único valor para todo o Brasil, e criou faixas de repasse, introduziu a equidade no plano dos territórios. Nas decisões sobre onde construir, ampliar ou reformar os postos de saúde, o olhar estava voltado aos chamados vazios assistenciais em relação a população residente nas localidades.
RR: A senhora acredita que as políticas sociais universais ou focalizadas estão consolidadas no Brasil, ou ainda correm riscos de interrupção ou fragmentação?
AF: Com certeza esse risco existe. Aquilo que está na Constituição como direito (SUS, educação, alimentação) corre um risco um pouco menor, mas os programas sociais certamente correm um risco sério. No ano passado, o relator da Lei Orçamentária Anual (LOA), que estabelece as diretrizes para o uso dos recursos do Orçamento da União, sinalizou com um corte de 18 milhões de famílias no Bolsa Família para diminuir o gasto com o programa. Não passou porque foram muitos os protestos e os argumentos.
Vivemos uma política de ajuste contínuo e de cortes em orçamentos que põem em risco programas essenciais para os cidadãos atendidos por essas políticas. Recentemente, um partido político lançou um documento chamado “Uma ponte para o futuro” que deixa claro qual seria uma proposta para o Brasil sair crise. O foco seria ampliar o ajuste fiscal e controlar a inflação. Para isso, propõe o fim das vinculações (obrigatoriedade) de gastos dos governos com saúde e educação. Fala-se também em acabar com a vinculação das aposentadorias com os aumentos do salário mínimo, que foi o grande fator de distribuição de renda e ascensão social nas últimas décadas.
Quer dizer, querem gerir a crise à custa da pequena parte do orçamento (em proporção a outros gastos) que é destinada aos mais pobres. Esse discurso da necessidade de ajustes permanentes, superávits, cortes sociais tem uma penetração forte na mídia e, através dela, na sociedade, principalmente entre aqueles que dependem menos desses benefícios. Concordo que temos que controlar a inflação e reequilibrar a economia, mas não à custa dos direitos e das políticas sociais. Sufocar financeiramente é a melhor maneira de se destruir uma política.
Nós temos que fazer outras escolhas para trazer mais recursos para as políticas sociais. Taxar as grandes fortunas, diminuir a taxa de juros, deixar de transferir mais de 45% dos recursos do país para os rentistas. Há caminhos que não são fáceis. A sociedade precisa estar consciente para reafirmar que país ela quer construir e deixar para as futuras gerações.
RR: Olhando para o futuro, depois das conquistas de inclusão e distribuição de renda que o país experimentou nas últimas décadas, quais os próximos passos para consolidar todas essas conquistas e garantir uma maior inclusão pela cidadania?
AF: Em primeiro lugar o Brasil precisa fazer um esforço para realizar aquelas reformas das quais já falei, com destaque para a reforma política. O Brasil reduziu bastante a pobreza e a miséria, mas a diminuição na desigualdade foi mais acanhada. Exatamente porque requer mudanças estruturais. Só vamos seguir avançando se atacarmos esse cerne que dá sustentação à nossa histórica desigualdade.
Enfrentar as desigualdades requer ações ainda mais amplas de educação, saúde, saneamento, moradia, acesso à terra com apoio técnico e financeiro e muito mais. Por exemplo, quando do lançamento do Pronatec, nas regiões mais carentes, o desafio foi preparar as instituições de excelência do Sistema S e dos Institutos Federais para receberem pessoas que tinham apenas o letramento inicial. Como adaptar isso a esse público que agarrava a oportunidade com as duas mãos?
Precisamos de um Estado que tenha como orientação o desenvolvimento político, econômico e social. Caso contrário, as políticas sociais não caberão no orçamento, principalmente em governos que pregam a mínima presença do Estado na economia e na sociedade. No Brasil, falar em Estado mínimo é desrespeitar a Constituição logo de saída para qualquer debate. É uma proposta incompatível com os ideais da democracia.