É preciso reverter a atual conjuntura do país, na qual mais de 80% das tecnologias disponíveis são importadas. A recomendação é dos pesquisadores Guilherme Rabello e Francismar Vidal, gerentes, respectivamente, das áreas Comercial e Inteligência de Mercado e Planejamento da Inova Incor – Instituto do Coração de São Paulo. Presentes à oficina de pesquisa “Inovação e Autonomia no Desenvolvimento e Produção de Equipamentos e Materiais para Atenção Ortopédica e Cardiovascular”, promovida no ano passado pela rede Brasil Saúde Amanhã, Rabello e Vidal defendem, nesta entrevista, as parcerias público-privadas como alternativa para viabilizar a geração interna de conhecimento aplicado. Para eles, o caminho para equacionar oferta e demanda de um sistema de saúde subfinanciado é o investimento de longo prazo em pesquisa e desenvolvimento de tecnologias e processos mais eficientes, que sejam incorporados pelo Sistema Único de Saúde (SUS), multiplicando a sua capacidade de atendimento. E, para isso, é imprescindível um Complexo Econômico e Industrial da Saúde (CEIS) forte e sustentável.

 Quais desafios precisam ser superados pelo SUS nas próximas décadas para garantir a universalidade e a equidade previstas na Constitutição Federal?

VIDAL: Em todo o mundo, o SUS é o único sistema universal de saúde que atende a mais de 100 milhões de pessoas – número que vem crescendo e tende aumentar ainda mais nos próximos anos, de acordo com as tendências demográficas e epidemiológicas apontadas pela rede Brasil Saúde Amanhã. A expectativa de vida dos brasileiros vem aumentando, a população está envelhecendo, e tudo isso traz novas e mais complexas demandas de saúde. No entanto, na direção oposta, a capacidade de resposta do sistema vem diminuindo a cada ano. Para equilibrar esta situação, é preciso repensar o modelo de financiamento setorial. Outro desafio preponderante é a nacionalização de tecnologias e da produção industrial em saúde. Hoje, 80% das tecnologias disponíveis no país são importadas, o que as torna caras e inacessíveis à maioria da população. Além disso, são subutilizadas. Uma pesquisa recente demonstrou que, em 70% dos casos, o profissional de saúde não sabe usar os recursos e equipamentos aos quais tem acesso em sua totalidade. Falta treinamento e certificação para que a capacidade de atendimento melhore.

RABELLO: Atualmente, temos uma cadeia de inovação muito dependente de importação de tecnologia e de know how. Uma das formas de revertermos essa situação é fomentando a produção local de soluções, a médio e longo prazo, por meio da formação de pessoas e da atração de indústrias. Também é importante direcionar estrategicamente os esforços empreendidos. Temos que inovar em mecanismos de comunicação, equipamentos e processos que possam segmentar quesitos de prevenção, culturas de cuidado com a saúde, em vez de apenas atacar as doenças. Esta direção será capaz de gerar resultados efetivos e grande economia para a saúde pública.

 Que caminhos o país deve tomar para promover o desenvolvimento virtuoso do CEIS?

VIDAL: Poderíamos copiar o que já existe no mercado, como fez a China, mas não temos vocação nem cultura para isso, tampouco dinheiro. Existe, também, a possibilidade de criar novas soluções do zero e, neste ponto, estamos muito longe do patamar em que o setor de inovação se encontra. Começaríamos desenvolvendo soluções no nível zero, quando o mercado já esta em uma sexta geração. O caminho mais promissor, portanto, seria buscar o compartilhamento entre os setores público e privado, estreitando o relacionamento entre universidades, que são centros de pesquisa por excelência, e empresas, que entendem muito de necessidades do mercado e de produção em escala. Se colocarmos em um mesmo cenário esses dois atores, em um primeiro momento, por meio do compartilhamento de competências, criaremos uma cultura de pesquisa e desenvolvimento de produtos, de processos e de certificações.

RABELLO: Muitos profissionais querem empreender, nas áreas da Saúde, da Indústria e da Tecnologia da Informação. Contamos com uma nova geração de pessoas que quer participar mais ativamente do processo produtivo, da inovação e da renovação da nossa plataforma de saúde. Entretanto, em um primeiro momento, compartilhar expertises e tecnologias é a maneira mais sustentável de se trabalhar, porque resulta no somatório de esforços. Assim, evitamos a que uma das partes desperdice tempo e investimento em uma área na qual não tem a mesma excelência de um parceiro. Na área de alta tecnologia, devemos aproveitar centros de excelência que existem no país e aprimorar a utilização desses recursos para reduzir os problemas de doenças crônicas prolongadas. Essas enfermidades, muitas vezes, não são tratadas e geram um custo muito longo na cadeia de atendimento do paciente. O resultado, nesses casos, costuma envolver intervenções caríssimas, que poderiam ser evitadas por uma cultura de prevenção. Também cabe aos atores da inovação buscar soluções que levem as intervenções de alta tecnologia a alcançarem o melhor efeito possível, dispensando correções posteriores. Percebemos, no InCor, o quão importante é inovar não apenas em produtos, mas no processo.

 Quais as perspectivas para o empreendedorismo na área da Saúde, nas próximas décadas?

VIDAL: A realidade, hoje, é que não temos uma cultura empreendedora na área da Saúde, voltada para o desenvolvimento de inovações, na proporção que deveríamos. Somos o sexto mercado de consumo de produtos médicos do mundo, mas somente o 29º em criação. E as maiores companhias brasileiras concentram-se na área odontológica – e não na médica. Precisamos melhorar a balança comercial, embora o CEIS ainda seja incipiente no país. Pesquisa e Desenvolvimento custam caro, especialmente na área da Saúde. Na Universidade Federal de São Paulo (USP), o InCor conta com 92 mil estudantes de Medicina e mais de cinco mil profissionais dedicados em tempo integral – um escopo que seria inviável para uma empresa privada. Neste sentido, defendemos que a iniciativa privada não precisa custear essas atividades. Poderia-se gastar muito menos – e aplicar-se muito melhor os recursos disponíveis – por meio de parcerias público-privadas com centros de excelência que busquem soluções para demandas sociais.

RABELLO: A forma como o setor Saúde é conduzido no Brasil precisa ser revista. Por muitos anos o CEIS ficou de fora do plano de desenvolvimento e do planejamento estratégico do Brasil. Como resultado, contamos com apenas uma ou duas empresas nacionais importantes de produtos médicos, na área cardiovascular. Por outro lado, melhoramos a questão da medicação por meio da política dos genéricos. Com a compra direcionada do Estado induzindo o desenvolvimento, essa categoria acabou conquistando 20% do mercado. É a prova de como o público e o privado podem atuar conjuntamente, gerando resultados benéficos para a população.

 Que arranjos institucionais e modelos de negócios deveriam ser implementados para, em longo prazo, potencializar as cooperações institucionais na Saúde?

RABELLO: A Lei de Inovação, que por meio de uma emenda constitucional traz o tema para a Constituição Federal, abre caminhos para, em médio e longo prazo, transformarmos a dinâmica de Pesquisa e Desenvolvimento no Brasil. Até então, o país carecia de um marco regulatório que funcionasse como incentivo à inovação. O modelo de negócio do país estava assentado na total dependência em relação ao dinheiro público, que hoje ainda é o principal fomento de Pesquisa. Quando o capital privado chegava, estava sempre dentro de um plano de retorno em curto prazo. Ou seja, geralmente, eram investimentos oportunistas. Assim, historicamente, não há, no país, fomentos corporativos estruturais. Eles limitam-se aos interesses comerciais. Nesse contexto, a cultura da inovação torna-se um pilar estratégico, aproximando o setor privado do público em uma sinergia virtuosa e não apenas como parte de interesses de complementação, como ocorria anteriormente. Até então, um financiava o desenvolvimento e o outro só entrava para vender. Agora, o setor privado passa a ser levado a contribuir com uma parcela relevante da criação de novas soluções, como já acontece em outros mercados maduros.

VIDAL: Neste processo, alguns grandes conglomerados estrangeiros já implementaram seus centros de inovação no país, um ato até então impensável. Assim, começamos a construir uma cultura de inovação que não seja dependente apenas do dinheiro público. Essa é uma mudança que está apenas começando e depende da ação de empreendedores. Muitas vezes, o processo é acelerado a partir do momento em que se compartilha conhecimento, quando há sinergia entre universidades e iniciativa privada.

 Quais os cenários futuros para a cooperação internacional no setor Saúde?

RABELLO: No InCor, temos estabelecido contatos com muitos países em nossa estrutura de inovação. Em países asiáticos e europeus, assim como nos Estados Unidos, houve um planejamento para que o know how da área médica se tornasse produto de exportação e não apenas de consumo interno. Enquanto isso, o Brasil, do ponto de vista estratégico, continua posicionado como exportador de commodities. Isto precisa mudar e, para tal, é imprescindível um planejamento estratégico de longo prazo. Contamos com material de pesquisa, já que o perfil da população brasileira é extremamente interessante, do ponto de vista da variedade populacional. Temos também um país com dimensão continental, o que favorece a escalabilidade. Os atributos mais requeridos no mundo estão disponíveis aqui, o que torna este o momento ideal para se repensar como trabalhá-los de um modo diferente. No entanto, se permanecermos na atual trajetória, não chegaremos muito longe.

VIDAL: Precisamos trabalhar, hoje, para daqui a 20 anos termos, pelo menos, um déficit de atendimento menor, permitindo-nos cumprir o que está na Constituição. Apesar de 9% do PIB ser aplicado na Saúde, a quantidade de leitos hospitalares disponíveis atualmente é menor do que há 10 anos. Somos o 83º país em número de leitos hospitalares por 100 mil habitantes. A conta não fecha, porque sempre teremos mais pessoas precisando do SUS e o aporte do Estado não crescerá proporcionalmente em relação às necessidades da população. Faltará dinheiro. Portanto, precisamos buscar recursos nas parcerias com o setor privado, trazendo-o para dentro das universidades. O que conhecemos das necessidades da população ajudará muito na produção das soluções, porque a lógica deixará de ser a de um empresário inventando novidades para o mercado. Será a saúde pública apontando para as necessidades da população e direcionando o investimento. Dessa forma, não precisaremos nos tornar fábricas, pois somos universidades e precisamos continuar voltados para os problemas sociais.

Renata Leite
Saúde Amanhã
25/04/2016