“Reconhecemos a Saúde como um setor promissor para a inovação científica e tecnológica e defendemos que as questões de Ciência e Tecnologia são, sim, questões de saúde pública”. A afirmação é do economista Carlos Gadelha, secretário de Desenvolvimento da Produção do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior e colaborador da rede Brasil Saúde Amanhã. Ao lado da pesquisadora Laís Costa, da Fiocruz, Carlos Gadelha assina o capítulo “A Dinâmica de Inovação e a Perspectiva do Complexo Econômico e Industrial da Saúde para a Sustentabilidade Estrutural do Sistema de Saúde Brasileiro”, que compõe o volume “Desenvolvimento Produtivo e Complexo da Saúde” da série “A Saúde no Brasil em 2030: Diretrizes para a Prospecção Estratégica do Sistema de Saúde Brasileiro”. Durante o seminário “Brasil Saúde Amanhã: horizontes para os próximos 20 anos”, realizado em setembro, na Fiocruz, Carlos Gadelha participou do painel “Desenvolvimento, Políticas Sociais e Saúde”, em que discutiu os desafios para articulação das lógicas sanitária e social no país. Nesta entrevista ele aponta os cenários futuros para o Complexo Econômico e Industrial da Saúde e defende medidas estratégicas para o fortalecimento do setor nas próximas décadas.
Quais as perspectivas para o Complexo Econômico e Industrial da Saúde no horizonte dos próximos 20 anos e quais os desafios para o alinhamento do setor a um projeto de desenvolvimento social do país?
A política de Estado para o desenvolvimento e fortalecimento do Complexo Econômico e Industrial da Saúde é recente no Brasil e não está isolada das demais áreas estratégicas do país. Todas as questões ligadas ao desenvolvimento brasileiro afetam o Complexo Econômico Industrial da Saúde e são por ele afetadas. Assim, reconhecemos a Saúde como um setor promissor para a inovação científica e tecnológica e defendemos que as questões de Ciência e Tecnologia são, sim, questões de saúde pública. Além disso, ressaltamos que a Saúde é um importante vetor de desenvolvimento, pois articula um conjunto de tecnologias portadoras de futuro, em um contexto em que a inovação é um diferencial da competitividade entre países. Portanto, urge orientar o desenvolvimento tecnológico para que tenha um caráter mais equitativo, de modo a reverter a dinâmica vigente de geração de progresso técnico não vinculado às necessidades sociais. A grande questão, nesse contexto, é saber como induzir a taxa de progresso técnico e como definir a sua direção, ou seja, como fazer com que o progresso técnico siga rumos socialmente desejáveis e sustentáveis.
Nesse contexto, os estudos prospectivos desenvolvidos no âmbito da rede Brasil Saúde Amanhã apontam para três cenários possíveis para o Complexo Econômico e Industrial da Saúde, no horizonte dos próximos 20 anos. O primeiro deles é um cenário regressivo, que consiste na perda de posição na corrida tecnológica e na falta de base adequada de financiamento da Saúde, ou seja, uma perda na demanda e na estrutura de oferta de saúde no país. O segundo cenário, mais provável, é inercial: diz respeito à manutenção do desenvolvimento do padrão tecnológico brasileiro, marcado pela lenta geração de inovação e pela baixa densidade tecnológica da indústria brasileira. Seguindo essa tendência, o país não alcançaria os demais na corrida tecnológica, o que acabaria por tornar o segundo cenário, de forma análoga ao primeiro, regressivo. Por fim, o cenário mais favorável representa uma ruptura e salto de qualidade no que se refere às assimetrias tecnológicas observadas no Brasil em relação aos países mais desenvolvidos. Esse cenário só será possível a partir de uma reforma mais ampla do Estado e de sua base fiscal. Ainda que desejável, o terceiro cenário é pouco provável, dado que a questão tecnológica ainda não está no cerne da política social brasileira, assim como a estratégia tecnológica e o desenvolvimento inclusivo também não se colocam com centralidade nas políticas públicas nacionais.
Que desafios essas tendências futuras colocam ao desenvolvimento social do país e à garantia de um sistema de saúde público, universal e de qualidade?
Verificamos atualmente no país o aumento da demanda por serviços de saúde devido, principalmente, à combinação da melhoria dos determinantes sociais, na última década, com o envelhecimento da população, acarretando mudanças nas características sociais e sanitárias brasileiras. Considerando a necessidade de desenvolvimento da base produtiva, o aumento de demanda representa grandes oportunidades, já que há indicação não só de um crescimento substantivo da demanda por serviços de saúde, não reversível e de longo prazo, mas também da criação de novos segmentos de mercado ainda não explorados nacionalmente. Por outro lado, a demanda crescente impõe riscos relevantes, uma vez que as mudanças epidemiológicas, demográficas e socioeconômicas não têm sido acompanhadas pelo desenvolvimento de uma base produtiva nacional sólida de bens e serviços de saúde. Esse descompasso entre o aumento da demanda e o desenvolvimento da base produtiva nacional pode comprometer o desempenho do sistema de saúde brasileiro.
Hoje, no Brasil, persiste o desafio de melhor articular a política social e a política de desenvolvimento econômico e industrial. Ainda precisamos avançar no entendimento de que o Complexo Econômico e Industrial da Saúde pode e deve ser um braço da política social brasileira. Do lado da indústria, precisamos superar o entendimento de que a área da Ciência e Tecnologia deve ser separada do setor Saúde. Esses são dois campos estratégicos para o Brasil, que precisam estar fortemente articulados. Se não tivermos domínio tecnológico, não conseguiremos sustentar um sistema universal de saúde.
A partir do atual momento de ajuste fiscal e de contenção de gastos com políticas sociais, quais são os cenários futuros para a Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde no país?
Historicamente o Brasil é um país que sempre se mostrou resistente no enfrentamento de crises. Nós trabalhamos com cenários estruturados em longo prazo e a aposta é que a crise passe. Este é um momento bastante difícil para uma agenda de desenvolvimento econômico e social, mas não podemos deixar de lutar e ocupar os espaços estratégicos, na academia e nas políticas de saúde – papel que vem sendo muito bem desempenhado pela iniciativa Brasil Saúde Amanhã, no apoio ao desenvolvimento da área da Saúde e de um projeto de país focado na garantia dos direitos sociais.
A oferta de serviços de saúde é profundamente influenciada pela inovação e a tecnologia tem um impacto inestimável nos sistemas universais. Observamos essa tendência na crescente interdependência entre nanotecnologia, biotecnologia, tecnologias da informação e comunicação e os formatos de prestação e organização dos sistemas de saúde. Esse fenômeno aponta para a preocupação de que o Brasil adentre neste paradigma de sociedade de serviços precocemente, ou seja, antes de consolidar um parque industrial robusto. Ao mesmo tempo, tudo isso envolve articulações difíceis com o setor produtivo e o setor empresarial e precisamos estar preparados para esses desafios. Nesse sentido, o uso de poder de compra do Estado para alavancar a tecnologia que o Sistema Único de Saúde (SUS) precisa, a articulação dos setores produtivos público e privado na direção do desenvolvimento social, o fortalecimento da infraestrutura científica e tecnológica para a inovação em saúde e um modelo mais adequado de financiamento setorial são questões centrais para a viabilidade, em longo prazo, de uma Política Nacional de Ciência e Tecnologia que responda aos interesses do SUS e às necessidades de saúde da população brasileira.
Em relação ao Complexo Econômico Industrial da Saúde, que medidas podem ser tomadas no presente para garantir um SUS mais forte no futuro?
A partir dos cenários traçados para o futuro, defendemos que as estratégias e políticas públicas para o Complexo Econômico e Industrial da Saúde devem assumir, de fato, a perspectiva de articular a proteção social do acesso universal à saúde e o potencial do setor como vetor de desenvolvimento socioeconômico para o país. Isso é fundamental na medida em que estimula o progresso técnico, o investimento e a competitividade – elementos que podem reduzir a vulnerabilidade econômica, tecnológica e social, consolidando o papel da Saúde na nova estratégia nacional de desenvolvimento. Algumas iniciativas para que a Saúde permaneça estrategicamente na agenda nacional já estão em curso, como as Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDP), que visam internalizar a produção de fármacos no país; a lei 12.401/2011, que permite o uso do poder de compra do Estado de forma mais sistêmica; a lei 12.349/2010, regulamentada pelo decreto 7.546/2011, que prevê margem de preferência de até 25% para a compra de produtores nacionais; o apoio à inovação pelos produtores públicos e à rede de laboratórios oficiais; a crescente articulação da política de assistência farmacêutica para a transformação da base produtiva nacional de medicamentos; e a realização de investimentos de grande importância para fortalecer a base nacional de conhecimento em saúde.
Além disso, é preciso que algumas ações sejam aprofundadas, como a consolidação da presença da Ciência e Tecnologia na agenda da reforma sanitária e institucional; o uso estratégico do poder de compra do Estado, do ponto de vista do desenvolvimento nacional e não apenas de forma racionalmente econômica; a regulação dos aspectos normativos da saúde de maneira que o marco regulatório consiga articular produção, inovação e acesso de maneira virtuosa; a modernização dos laboratórios públicos, por meio de alterações na estrutura de gerenciamento, tendo o Estado como alavanca da inovação e do desenvolvimento da produção brasileira; o equilíbrio entre as empresas nacionais, privadas e públicas, e as empresas estrangeiras no mercado nacional; e a regulação da incorporação tecnológica no sistema de saúde, por meio da convergência de uma agenda de pesquisa com as necessidades coletivas em saúde.
Do ponto de vista da inovação em saúde, qual a importância da realização de estudos de prospecção estratégica do futuro, como os desenvolvidos pela rede Brasil Saúde Amanhã?
Prospectar cenários de longo prazo e planejar o futuro é uma ação imprescindível para que o Estado possa atuar com efetividade e resolutividade. Quem não sabe para aonde está indo quando encontra o que estava procurando não entende o que achou. Então, sobretudo em um momento delicado como o atual, de recursos escassos, é fundamental aprofundar as questões sobre que país nós queremos, que tecnologia nós queremos, que inovação nós queremos, para que o Estado possa tomar as decisões mais adequadas e fazer as apostas mais promissoras para o país.
Para superar suas fragilidades estruturais e aproveitar a oportunidade de desenvolvimento do Complexo Econômico e Industrial da Saúde, o Brasil precisa planejar de maneira proativa as estratégias de produção e inovação, a partir da análise dos diagnósticos existentes e da realização de estudos prospectivos, como os desenvolvidos pela rede Brasil Saúde Amanhã. Nesse processo, um grande desafio para o setor consiste em vincular a consolidação e ampliação da capacidade produtiva com estratégias ativas de inovação e capacitação, sempre pautadas pela lógica social.
Bel Levy
Saúde Amanhã
05/10/2015