Protagonistas do processo de descentralização do sistema público de saúde brasileiro na década de 1980, os municípios passaram de opositores do planejamento regional a grandes apoiadores da regionalização como caminho para atender aos princípios de equidade, integralidade e universalidade. Para tratar da importância do papel dos municípios nesse debate e tentar desvendar o melhor traçado desse caminho, Região e Redes ouviu o presidente do Conselho Nacional de Secretários Municipais (Conasems), Fernando Monti. Ele explica nesta entrevista que grande parte dos avanços do SUS foi conquistada graças aos gastos e investimentos dos municípios, mas adverte que esse modelo chegou ao seu limite. O arranjo regional é a alternativa para a oferta de melhores ações e serviços, com mais agilidade e resolutividade. Contudo, ainda nos falta cultura colaborativa.
Região e Redes – Se a regionalização é o caminho, para onde esse caminho nos leva?
Fernando Monti – Nos leva para uma melhor organização dos serviços, com a finalidade de conseguir prestar assistência integral de forma mais eficaz, organizar o sistema em rede e garantir o acesso das pessoas ao que elas necessitam do SUS.
A regionalização ainda é muito abstrata. É muito mais fácil falar do que fazer, especialmente em razão da configuração que nós temos do Estado brasileiro. Em 1988, fizemos a opção por uma República Federativa, construída com governos da União, estados e municípios. Casar a regionalização com esse modelo é um grande desafio. Mas, na minha visão, e na da maioria dos que estão na gestão municipal hoje, a regionalização é fundamental para o funcionamento adequado do serviço.
RR – Quais os principais entraves que você vê hoje para a consolidação de um processo de planejamento e gestão regional?
FM – Às vezes pensamos no modelo final desse arranjo, mas a regionalização está muito no começo. É muito incipiente. Eu falo muito que vivemos a piora da melhora. Antes as pessoas nem acessavam um sistema de saúde. Com o SUS, isso mudou. Elas têm acesso, conseguem diagnóstico, medicamento, encaminhamento para consultas e exames especializados. Embora adentrem o sistema, nem sempre os usuários têm tudo o que precisam, no tempo que precisam. Mas se tem muita gente esperando por consultas especializadas e exames é porque conseguiu passar por um profissional. Teve acesso. Essa é a melhora. Antes nem se chegava ao pedido de exame.
Mas a percepção de piora é porque as pessoas ainda param em outros pontos do sistema. Existem muitas regras burocráticas e isso é um calvário para os usuários. As redes não têm um funcionamento fluído.
Em relação à regionalização, cada avanço coloca um novo desafio. Um avanço foi darmos autonomia aos municípios para assumirem o setor saúde. Muito do que se fez no SUS foi graças aos municípios. A questão do financiamento prova isso.
O desafio e o entrave são de mesma natureza, porque os municípios no Brasil não têm uma cultura colaborativa. Ao contrário, têm até uma tradição concorrencial. Isso coloca uma dificuldade para que trabalhem juntos e tenham uma sinergia para obter o mesmo objetivo.
RR – Os municípios foram os últimos entes federados a aceitar a regionalização, em grande parte por temer perder autonomia e recursos. Mais recentemente essa barreira diminuiu. O que mudou para que os municípios passassem a aceitar esse modelo de gestão e até trabalhar por ele?
FM – Eu não sei se mudou. Existem fundamentos do Estado brasileiro que devem ser preservados. E por isso os municípios brigam. Eles são entes federados autônomos. É um valor importante para o município que quer preservar isso.
Eu penso que os gestores municipais estão percebendo cada vez mais que há uma insuficiência de recursos, principalmente, porque temos uma rede muito grande de pequenos municípios. Por melhores que sejam seus sistemas de saúde, estarão incompletos para oferecer tudo o que seus munícipes necessitam. Então, eles estão mais dispostos a fazer essa discussão.
O modelo de regionalização não está finalizado. Quando entramos na questão da governança regional pode ser que ainda tenhamos conflitos, dependendo do formato que se queira dar. Nós teremos que pensar em processos de regionalização e interligação de serviços que preservem a autonomia municipal.
Nesse ponto entra um ente que tem ficado omisso: o estado. Afinal, se tem alguém que pode discutir regionalização é o estado, pois a sua dimensão territorial permite uma subdivisão em regiões. Os estados podem ter esse papel de organizar todo o processo.
Aí também pode ter conflito. Se o estado entrar como um ente hierárquico superior, não vai dar certo. Tem de entrar de forma horizontal. Nós temos que fazer a regionalização sem transgredir a Constituição.
RR – Se a forma ideal ainda está em discussão, quais características, adequadas à realidade do Brasil, não podem faltar na construção desse processo?
FM – Está claro que temos apenas um esboço. Mas acredito que essa rede deve ser formada por adesão voluntária dos municípios, que terão que ter vantagens operativas para aderir. Ou seja, é preciso preservar a autonomia na formação da rede e ofertar serviços regionais de forma colaborativa.
Outro ponto é a junção dos municípios, que poderá ter o comando do estadual para arbitrar possíveis conflitos e dar auxílio técnico e financeiro. Seria esse o desenho. A partir dos municípios, estimula-se a aglutinação.
Um problema que eu não vejo como resolver é que, tanto nas propostas de criação de autarquia como nas de consórcios, seria dado poder a um ente não eleito e, com isso, se afasta o debate do processo democrático. Nos municípios existem prefeitos e vereadores com mandatos. Nos estados é a mesma coisa. Esse é um processo difícil de ser construído.
RR – O país passa por profundas mudanças populacionais, demográficas e epidemiológicas que, ao longo das próximas décadas, devem se intensificar. De que modo a regionalização pode contribuir para minimizar os impactos sobre o SUS?
FM – A principal mudança é a relacionada com o envelhecimento, que produzirá um contingente de pessoas que demandará cuidados mais complexos. Esse tipo de assistência tem mais tecnologia incorporada e, nesse sentido, será preciso um processo de regionalização para garantir integralidade.
Por exemplo, se um idoso estiver em um município pequeno e sofrer um acidente vascular cerebral, ele pode não receber a melhor atenção. Mas se estiver em uma região, com uma rede bem consolidada, esse paciente poderá ter um atendimento mais ágil. Esse é só um exemplo, mas a regionalização serviria para solução de vários problemas semelhantes.
Hoje, o lugar que trata o AVC não tem nenhuma relação com o posto de saúde que trata a hipertensão. São universos paralelos. O paciente é usuário da unidade de saúde e não da rede. Mesmo porque essa rede não existe ainda.
RR – Hoje a regionalização é, praticamente, um consenso. Porque, ainda assim, não se avança mais rapidamente nas discussões e definições sobre uma estratégia regional?
FM – Acredito que por ser muito difícil mesmo. A regionalização requer uma arquitetura muito complexa. Mas tem uma segunda questão: todo mundo concorda porque ainda é uma ideia abstrata. Não estamos discutindo como fazer. Quando avançarmos para esse debate mais construtivo esse grau de concordância vai diminuir. Conflitos de interesse vão aparecer. Esse não é um indicativo para que não persigamos a regionalização, mas quando surgirem os desafios teremos que saber superá-los.
RR – É possível avançar numa estratégia de regionalização com um sistema público subfinanciado, em que os municípios são os entes com maior gasto proporcional em saúde?
FM – Com a estrutura de financiamento como está, dada a divisão entre estados, municípios e União, não tem como prosseguir, porque temos hoje muito desequilíbrio. Os municípios ficam com 17% da arrecadação nacional e estão financiando 30% do gasto em saúde. O ente mais fraco fica com a maior responsabilidade do financiamento.
Entretanto, a regionalização tem o poder de ajudar a resolver o problema de subfinanciamento, de refazer o equilíbrio. É possível viabilizar que os recursos transitem entre os entes federados, com responsabilidades definidas e claras dentro de um processo de governança.
Do ponto de vista de financiamento, o SUS chegou ao seu limite. Muito do que avançamos nos últimos tempos foi por causa dos municípios. Esse processo se esgotou, pois os gestores municipais não conseguem colocar mais recursos do que colocam hoje. Por isso, a região será importante já que definiremos, em cada uma delas, as responsabilidades, a oferta de serviços, as atribuições e quem paga a conta. Desse ponto de vista, a regionalização pode ajudar muito no processo de construção e uma nova estrutura de financiamento da saúde no Brasil.
(Foto de Emerson Marques / Abrasco)
Portal Regiões e Redes, agosto de 2015