A intersetorialidade entre Saúde e Educação precisa ser aprofundada e aprimorada de forma a gerar recursos humanos qualificados para o Sistema Único de Saúde (SUS) e as diversas realidades sociais que coexistem no Brasil. A conclusão é da pesquisadora Nísia Trindade Lima, vice-presidente de Ensino, Informação e Comunicação da Fiocruz. Nesta entrevista, ela destaca contribuições relevantes da rede Brasil Saúde Amanhã neste processo e aponta desafios críticos para o horizonte dos próximos 20 anos. “Segundo uma visão prospectiva, a formação e a educação permanente em saúde devem atender ao novo tipo de demanda gerada pela transição demográfica e epidemiológica, com o envelhecimento da população e o aumento das doenças crônicas. Tudo isso sem ignorar as diferenças regionais e locais características de nossos diversos brasis”, afirma.

Qual a importância da rede Brasil Saúde Amanhã para a Fiocruz e que papel caberia à instituição nos horizontes que estão esboçados para os próximos 20 anos?

A iniciativa Brasil Saúde Amanhã, resultado da colaboração entre a Fiocruz e o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), é uma das mais relevantes ações institucionais no período recente. Isso decorre da necessidade de estudos prospectivos e de tendências para o desenvolvimento institucional e, sobretudo, para o planejamento de políticas públicas. Sem dúvida, toda e qualquer ação de planejamento traz implícita uma visão de tendência e, portanto, uma interpretação de futuro possível. O que esta rede inovadora traz é a possibilidade de promover o concerto entre os atores sociais e, assim, favorecer não somente a antevisão, mas sobretudo a conquista de cenários possíveis e desejáveis.

No que tange à educação para a Saúde, historicamente a Fiocruz desenvolveu programas e adotou iniciativas pioneiras, como os cursos descentralizados e o programa de ensino a distância da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp) e a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, que hoje atua na Rede de Escolas Técnicas do SUS. Verificamos outras iniciativas inovadoras em diferentes unidades da Fundação, a exemplo do programa Caminhos do Cuidado, sob coordenação do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict); dos cursos oferecidos pelo Instituto Nacional da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF) e pelo Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INI); e das ofertas educacionais para o SUS pelas unidades e escritórios regionais.

Nos próximos 20 anos o grande desafio é, ao lado da oferta de cursos, realizar estudos prospectivos que permitam orientar a formação futura mediante a definição dos cenários que se quer atingir. Há, neste sentido, muito que avançar na promoção de convergência entre importantes iniciativas institucionais. Ao lado da rede Brasil Saúde Amanhã e do Centro de Estudos Estratégicos, destacaria a Rede de Observatórios de Recursos Humanos em Saúde, fruto de parceria do Ministério da Saúde com a Organização Pan Americana de Saúde (Opas), na qual temos quatro estações de trabalho – na Ensp, na Escola Politécnica, na Casa de Oswaldo Cruz (COC) e na Fiocruz Pernambuco.

Como está organizada hoje a força de trabalho do sistema de saúde brasileiro e quais são as tendências para o futuro?

Estudos realizados pela rede Brasil Saúde Amanhã apontam que a força de trabalho em saúde está organizada de forma muito distante das necessidades da população. Além de se aperfeiçoar e aprofundar o papel do Estado no provimento e nas políticas de formação, envolvendo não só os profissionais médicos, mas o conjunto de formações necessárias a uma sociedade em processo de envelhecimento, torna-se imprescindível repensar o sistema de regulação profissional. Hoje, esse sistema é baseado em atos exclusivos, quando o desejável é romper com a lógica corporativa e aprimorar os processos de ações compartilhadas.

Em consonância com o que vem sendo proposto pela rede Brasil Saúde Amanhã, prefiro focar no cenário desejável e possível que intencionamos alcançar. Dessa forma, devem-se construir as possibilidades para um melhor ordenamento da força de trabalho do SUS e a integração de cargos e carreiras. Esse foi um dos componentes do cenário definido como pluralismo integrado, de institucionalidade estatal, sob a égide do Direito Público, proposto em estudos realizados no âmbito desta iniciativa. Segundo os estudos, esse cenário estaria pautado por assistência integral, com ênfase redistributiva; universalidade integral com redes regionais de serviços e coordenação federativa; controle direto da maior parte dos serviços de saúde e da promoção de insumos; e efetivo controle social. Os pesquisadores observam que “não se trataria de um processo de ‘estatização’, propriamente dito, mas de inovação na institucionalidade estatal, com maior provimento e melhor aporte de recursos financeiros para o setor Saúde, além de reordenamento de processos de trabalho e maior integração de cargos e carreiras profissionais do SUS”.

No âmbito específico de quadros para o SUS, quais os desafios críticos que devem ser enfrentados para o aprimoramento do sistema?

A organização da força de trabalho e o os processos formativos em Saúde no Brasil estão muito distantes do ideal consagrado em nossa Constituição Federal. O texto constitucional promulgado em 1988 estabelece, em seu artigo 200: “Ao Sistema Único de Saúde compete, além de outras atribuições, nos termos da lei:  ordenar a formação de recursos humanos na área de saúde”.  Contudo, são os imperativos do mercado e não os interesses da sociedade que vêm prevalecendo no processo de formação para a Saúde. Assim, o papel do Estado no provimento de serviços e na formação dos profissionais e trabalhadores permanece como um desafio. Nessa perspectiva, a lei nº 12.871, de 22 de outubro de 2013, que instituiu o programa Mais Médicos, representa um marco histórico de mudança, não apenas pelo provimento em locais até então fora do mapa da atenção à saúde, como especialmente pelas mudanças na formação médica, com ênfase no papel das redes de atenção nos diferentes níveis de complexidade e no papel da atenção básica na organização do acesso e na coordenação do cuidado.

Segundo uma visão prospectiva, tal como constatam as pesquisas da rede Brasil Saúde Amanhã, a formação e a educação permanente em saúde devem atender ao novo tipo de demanda gerada pela transição demográfica e epidemiológica, com o envelhecimento da população e o aumento das doenças crônicas. Tudo isso sem ignorar as diferenças regionais e locais características de nossos diversos brasis. Ao lado de desafios mais recentes, persistem questões relacionadas ao subfinanciamento do SUS, à precariedade dos vínculos de trabalho e à necessidade de valorização dos trabalhadores através de planos de carreira adequados. Destaca-se também a necessidade de propor diretrizes e ações para o conjunto das profissões relevantes para o SUS, inclusive no que se refere aos profissionais técnicos de nível médio. Além desses aspectos, o fortalecimento de equipes multiprofissionais permanece como um objetivo a ser alcançado.

Como políticas públicas de Educação podem colaborar para o fortalecimento do SUS, em médio e longo prazo?

As políticas públicas de Educação podem colaborar em muitos sentidos. Em primeiro lugar, há a necessidade de aperfeiçoar a intersetorialidade entre a Saúde e a Educação em diferentes níveis de ensino. Isso vem ocorrendo de forma exemplar, a meu ver, no programa Mais Médicos, mas poderia e deveria ocorrer em outras áreas. No âmbito da pós-graduação stricto sensu na área de Saúde Coletiva, por exemplo, processos de formação e resultados de pesquisa poderiam ser mais e melhor apropriados pelo SUS. Tais estudos, em dissertações e teses, versam em grande parte sobre temas de interesse para o fortalecimento do sistema de saúde. Cabe também registrar a possibilidade de indução do Ministério da Saúde por meio de editais de incentivo à formação acadêmica de impacto para o SUS e maior apoio a mestrados profissionais, que tenham por objetivo promover a aproximação entre a academia e os serviços de saúde.

No que se refere a processos formativos em larga escala e à educação permanente, a Universidade Aberta do SUS (UNA-SUS), cuja secretaria executiva é exercida pela Fiocruz, cumpre importante papel ao coordenar uma rede de 36 instituições de Ensino Superior que oferecem cursos e materiais educacionais, orientados pela perspectiva generosa do acesso aberto a recursos educacionais. Trata-se de oferta pública e que busca aproximar academia e serviços. É um exemplo de política pública a ser aprofundada e aperfeiçoada. Ainda nesta linha, ao lado da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), da Associação Brasileira de Educação Médica (Abem), da Sociedade Brasileira de Medicina da Família e da Comunidade e de 26 universidades, a Fiocruz coordena uma iniciativa pioneira para realização de Mestrado Profissional em Rede para a Saúde da Família – Profsaúde. Trata-se de um programa estratégico para os objetivos do Mais Médicos, uma vez que estaremos formando profissionais para a tutoria e a docência dos novos cursos de medicina.  No momento, aguardamos a avaliação pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior (Capes) e temos certeza que a iniciativa fortalecerá o programa Mais Médicos, o diálogo entre as universidades e contribuirá para a formação em saúde, em consonância com os cenários possíveis e desejáveis prospectados pela rede Brasil Saúde Amanhã.

Bel Levy
Saúde Amanhã
24/08/2015