Eugênio Vilaça Mendes é um incansável estudioso de sistemas de saúde de todo o mundo. Autor de livros que tratam da necessidade de promover mudanças tanto no modelo de atenção à saúde, quanto nos modelos de gestão e de financiamento do sistema, Vilaça é responsável pela consultoria e acompanhamento em diversos estados e municípios que resolveram arregaçar as mangas e deixar para trás as amarras históricas e conceituais que os impediam de lidar com os problemas e de enxergar soluções para o sistema público de saúde brasileiro.
Para ele, as principais mazelas da saúde devem ser resolvidas com a devida organização do SUS em Redes de Atenção à Saúde (RAS) coordenadas pela Atenção Primária à Saúde (APS) e, para tanto, “é preciso ressaltar as conquistas do SUS, o que éramos e onde chegamos, sabendo que as circunstâncias que nos trouxeram à atual situação da saúde pública brasileira justificam uma nova atitude. É grande o esforço para se fazer o que é feito e para conseguir resultados com o recurso existente, o que não quer dizer que não temos de perseguir a eficiência.”
Consensus Quais os grandes desafios que são colocados para o SUS neste momento de crise?
Eugênio Vilaça – O SUS vive uma grave crise. Em parte, como reflexo da conjuntura nacional em que se combinam crises econômica e política; em parte, em função de problemas estruturais que não foram solucionados ao longo de sua existência.
A crise econômica gera crescimento negativo do produto interno bruto (PIB), o que determina uma crise fiscal que atinge, ao mesmo tempo, a União, os estados e os municípios e leva ao aumento do desemprego e à queda da renda média do trabalhador. Por outro lado, a crise política expressa, de forma aguda, o esfacelamento dos processos de representação política, o que dificulta a formulação e aplicação de uma agenda mínima sobre o futuro de nossa nação, incluindo solução de consenso sobre o sistema público de saúde.
Diante de uma crise como a atual, impõe-se inicialmente assumi-la e fazer um correto diagnóstico para, a partir dele, definir estratégias de enfrentamento. Também há que se compreender que as crises são, também, momentos de oportunidades. Mudanças que não são possíveis de serem feitas em momentos de bonança podem ser implantadas em momentos de crise.
A superação da crise atual convoca um diagnóstico correto e uma estratégia de ações de curto, médio e longo prazo. É comum perguntar-se se os problemas do SUS são de gestão ou de carência de recursos financeiros. Certamente que há um subfinanciamento crítico, mas, também, há problemas de gestão.
O SUS apresenta três grandes problemas estruturantes: no plano da organização macroeconômica, a segmentação que conduz ao dilema entre a universalização e a segmentação; no plano da organização microeconômica, a fragmentação do sistema e seu modelo de gestão; e no plano econômico, o seu subfinanciamento.
A solução desses problemas implica mudanças que se devem dar, concomitantemente, no modelo de atenção à saúde, no modelo de gestão e no modelo de financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS).
Consensus Em relação ao modelo de atenção à saúde, como o país pode avançar na definição de um modelo ideal que seja viável de ser colocado em prática e que seja menos suscetível às distorções de interpretação que afligem o SUS? Qual a importância das Redes de Atenção à Saúde nesse processo?
Eugênio Vilaça – A crise, no âmbito do modelo de atenção à saúde, manifesta-se pelo descompasso temporal que ocorre entre a evolução muito rápida e profunda dos fatores contingenciais do SUS (transições demográfica, nutricional, tecnológica e epidemiológica) e a baixa capacidade desse sistema em adaptar-se oportunamente a essas transformações por meio de reformas internas (cultura organizacional, arranjos organizativos, modelos assistenciais, sistemas de incentivos e liderança). Estabeleceu-se, então, uma incoerência entre uma situação de saúde que combina transições demográfica, nutricional, tecnológica e epidemiológica aceleradas e tripla carga de doenças, com forte predomínio relativo das condições crônicas, e uma resposta social estruturada por um sistema de atenção à saúde que é fragmentado, que opera de forma episódica e reativa e que se volta, principalmente, para a atenção às condições agudas e às agudizações das condições crônicas. O sistema de saúde fragmentado que se pratica no SUS não é capaz de responder socialmente, com efetividade, eficiência e qualidade, à situação de saúde vigente.
A resposta a esse desafio está em restabelecer a coerência entre a situação de saúde vigente e a forma de organização do sistema de atenção à saúde, acelerando as mudanças necessárias que levem à conformação de um sistema integrado que opere de forma contínua e proativa e que seja capaz de responder, com eficiência, efetividade, qualidade e de modo equilibrado, às condições agudas e crônicas. Assim, o SUS deve-se estruturar em Redes de Atenção à Saúde (RAS) coordenadas pela Atenção Primária à Saúde (APS).
Felizmente o SUS construiu uma base normativa forte e definiram-se algumas RAS prioritárias. É preciso continuar o processo de construção dessas redes na prática social que, conforme atestam as evidências de outros países, é complexo e demorado.
Consensus Quais são as mudanças a serem promovidas na gestão da saúde visando à maior eficiência, à melhor qualidade dos serviços prestados e à redução do desperdício?
Eugênio Vilaça – As mudanças substantivas na gestão do SUS implicam o trânsito do modelo de gestão da oferta vigente para o modelo de gestão da saúde da população e da busca de um equilíbrio entre a gestão dos recursos (a gestão de meios) e a gestão da clínica (a gestão dos fins).
O modelo de gestão que se opera no SUS é o da oferta. Esse modelo caracteriza-se por responder a demandas de indivíduos isoladamente, por basear-se em parâmetros construídos por séries históricas e por enfrentar os desequilíbrios entre oferta e demanda com um viés de aumento da oferta. Há evidências na experiência internacional de que esse modelo esgotou-se e, por esta razão, deve ser substituído pelo modelo da gestão da saúde da população.
O modelo da gestão da saúde da população opera com uma população vinculada a redes de atenção à saúde no nível dos cuidados primários, funciona com parâmetros de necessidades e enfrenta o desequilíbrio entre oferta e demanda dos serviços buscando racionalizar a demanda, racionalizar a oferta e, somente se necessário, aumentar a oferta.
Além da mudança no modelo de gestão há que se buscar um equilíbrio entre a gestão dos meios (a gestão dos recursos humanos, materiais e financeiros) e a gestão dos fins (a gestão da clínica).
A introdução da gestão da clínica decorre das singularidades organizacionais e econômicas e dos princípios e das leis que regem as instituições de saúde. A gestão da clínica é um conjunto de tecnologias de microgestão da clínica, destinado a prover uma atenção à saúde de qualidade: centrada nas pessoas e nas famílias; efetiva, estruturada com base em evidências científicas; segura, que não cause danos às pessoas e aos profissionais de saúde; eficiente, provida com os custos ótimos; oportuna, prestada no tempo certo; equitativa, de forma a reduzir as desigualdades injustas; e ofertada de forma humanizada.
As tecnologias de gestão da clínica mais comumente utilizadas são as diretrizes clínicas baseadas em evidências, a gestão das condições de saúde, a gestão de caso, a auditoria clínica e as listas de espera. O impacto da gestão da clínica na eficiência e na qualidade dos serviços de saúde é enorme, especialmente pelo aporte que dá à incorporação e ao uso racional das tecnologias médicas. Estudos feitos nos Estados Unidos da América mostraram que o descontrole no uso de tecnologias médicas (excesso de tratamentos, excesso de diagnósticos e reversão médica) gerou desperdício de 30% a 50% do gasto total em saúde e esses procedimentos injustificados têm sido responsáveis por 30 mil mortes a cada ano. Observações feitas no SUS e no sistema privado de saúde brasileiro mostraram que somente 35% a 40% das cirurgias ortopédicas indicadas tiveram suporte de evidências científicas registradas em diretrizes clínicas. Estudos de curva ABC realizados no SUS, em alguns municípios brasileiros, indicaram que, por falta do uso rotineiro de diretrizes clínicas baseadas em evidências, não se observaram associações entre os medicamentos prescritos e os exames complementares solicitados e as situações epidemiológicas prevalentes, o que gera ineficiência e baixa qualidade.
Consensus Quais são os pilares para a implantação de agenda de eficiência no SUS? Que tipos de eficiência devem ser consideradas nessa agenda?
Eugênio Vilaça – Uma agenda de eficiência tem um valor intrínseco, além de ser um componente essencial da qualidade em saúde. Em um momento de crise do SUS, em que novos recursos dificilmente serão incorporados em prazo mais ou menos curto, ela se impõe.
Uma agenda de eficiência no SUS deve envolver ações nos campos da eficiência técnica, da eficiência de escala e da eficiência alocativa, porque ocorrem problemas significativos de ineficiências em todas elas.
A eficiência técnica diz respeito à relação quantitativa entre insumos utilizados e produtos gerados. Nesse campo há muito que fazer no SUS. Tome-se o exemplo da atenção hospitalar: os hospitais brasileiros utilizam, em média, 50% mais funcionários por leito que os hospitais da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE); a taxa de ocupação média dos hospitais do SUS gira em torno de 37%; a maioria dos hospitais é muito ineficiente: escore médio de 0,34 em relação ao valor máximo de 1,0; o hospital médio brasileiro produz 1/3 do que poderia produzir com os recursos que já dispõem; e o valor médio das taxas de cirurgia é de 0,6 cirurgia por sala por dia. Muitas medidas para aumentar a eficiência dos hospitais podem ser tomadas sem um incremento significativo de recursos. Pesquisas demonstraram que, quando se utilizam tecnologias leves de gestão de fluxos de pacientes em um hospital de 300 leitos, com taxa média de permanência de 5,2 dias e com taxa de ocupação de 85%, cada 1 dia de redução no tempo de permanência equivale a incorporar virtualmente 49 leitos, sem novos investimentos em capacidade instalada.
A eficiência de escala está associada ao tamanho da planta de uma unidade produtiva. Os equipamentos de saúde são muito sensíveis às economias de escala. Em função disso, no SUS, há deseconomias de escala significativas, por exemplo, na atenção hospitalar e nos laboratórios de análises clínicas. Pesquisas em diferentes países demonstraram que hospitais de menos de 100 leitos são ineficientes. Não obstante, no Brasil, 58% dos hospitais têm menos de 50 leitos e 80% dos hospitais têm menos de 100 leitos. Os hospitais brasileiros de menos de 25 leitos apresentam uma relação de funcionários por leitos de 3,9, superior à média nacional e à média dos hospitais de tamanho intermediário. Da mesma forma, a escala média de exames produzidos pela rede de laboratórios de análises clínicas vinculada ao SUS é muito baixa, o que gera grande desperdício. Além disso, a escala nos serviços de saúde está associada à qualidade. Os serviços de maior escala apresentam menores custos e maior qualidade da atenção. Estudos feitos no Brasil evidenciaram que o risco relativo de uma criança morrer após parto realizado em hospitais de pequeno porte é muito maior que após partos realizados em maternidades que fazem um número grande desses procedimentos.
A eficiência alocativa é a combinação dos insumos de forma que o custo monetário de se produzir uma dada quantidade de produto é o menor possível. Nessa perspectiva, no SUS, o que mais chama atenção é o baixo investimento em atenção primária à saúde em que os investimentos são mais custo/efetivos. Os dados demonstram que os gastos do Ministério da Saúde em alta e média complexidade têm permanecido em um patamar de 2,5 vezes superior aos gastos com cuidados primários. O subfinanciamento da atenção primária, mesmo dentro de um quadro de subfinanciamento total do SUS, pode ser um dos fatores que explicam certas ineficiências, como, por exemplo, as reinternações hospitalares em curto prazo e as internações por condições sensíveis à atenção ambulatorial. As internações por condições sensíveis à atenção ambulatorial, ainda que apresentem tendência de queda, são muito altas e revelam o desperdício de recursos muito expressivos. Esse fenômeno é muito preocupante em pequenos municípios em que as internações por essas condições chegam, em hospitais de pequeno porte, a um valor de quase 50% das internações totais. Um recursos que seria mais efetivo se aplicado na melhoria da atenção primária à saúde desses municípios.
Consensus Essas mudanças são, de fato, viáveis sem o incremento de recursos financeiros?
Eugênio Vilaça – As dificuldades de financiamento, aprofundadas neste momento de crise econômica, não devem paralisar as ações dos gestores do SUS em busca de maior eficiência e qualidade dos serviços. Há espaços significativos de melhoria da eficiência e da qualidade dos serviços que podem ser trabalhados sem o aporte de recursos substantivos. Esses ganhos de eficiência podem ser feitos, em geral, com a utilização de mudanças no software do sistema por meio de tecnologias leves. Contudo, há gargalos de eficiência em que serão mais difíceis de superar sem um incremento dos recursos financeiros. Por exemplo, os problemas de eficiência de escala nos hospitais.
Mas há que se reconhecer que o subfinanciamento do SUS é um fato inquestionável e isso pode ser atestado por uma visita às estatísticas de saúde da Organização Mundial da Saúde (OMS) de 2015. O Brasil não gasta pouco em saúde, porque nosso gasto total é de 9,5%, valor muito próximo ao de alguns países ricos. O que é insuficiente é nosso gasto público, que é de 4,5% do PIB, ou seja, 47,5% do gasto total em saúde. Todos os países que desenvolveram sistemas públicos universais apresentam um gasto público como percentual do gasto total em saúde igual ou superior 70%. Como resultado, o gasto público per capita em dólar corrigido pelo poder de compra é de apenas US$ 659,00 ao ano. Esse valor é inferior ao de países como Argentina, Chile, Panamá e Uruguai. A razão é a baixa participação da saúde nos orçamentos públicos totais, somente 7,9% em relação a 22,5% na Argentina, 14,9% no Chile, 12,7% no Panamá e 19,3% no Uruguai. Em função da crise econômica, esse panorama tende a piorar no momento. Os dados mostrados atestam a necessidade imperiosa de aumentar os gastos públicos em saúde no Brasil, especialmente os gastos federais. Esse aumento de gastos deveria ser pensado no quadro de novo federalismo que incremente, relativamente, o protagonismo dos entes estaduais e municipais, no contexto de uma reforma tributária. Nesse sentido, mesmo que o momento de crise não seja favorável, é preciso apoiar firmemente a PEC 01-A/2015 que tramita no Congresso Nacional, até porque ela propõe prudente incremento gradativo dos recursos.
Essa agenda de aumento dos gastos públicos em saúde no Brasil será legitimada se for discutida juntamente com uma agenda de melhoria da eficiência e da qualidade do SUS.
O imprescindível aumento dos gastos públicos em saúde deve vir junto com mudanças no sistema de pagamento aos prestadores de serviços pelo SUS. Isso está intimamente relacionado ao incremento da eficiência.
A forma predominante de pagamento aos prestadores do SUS é o pagamento por procedimentos que expressa um sistema de pagamento por volume de recursos que leva a que se prestem mais serviços de maior densidade tecnológica, mas não os serviços de maior necessidade para as pessoas usuárias. O pagamento por procedimentos incentiva a gastar mais, mas não a gastar corretamente, porque não traz incentivos para a atenção primária à saúde, nem para os procedimentos promocionais e preventivos, nem para o uso de outras tecnologias mais custo/efetivas. É preciso mudar esse modo de pagamento superando as anacrônicas tabelas do SUS e substituindo-as por um sistema de pagamento baseado na geração de valor para as pessoas e que envolvem pagamento por capitação ajustada, por um ciclo completo de atendimento a uma condição de saúde ou por uma população. Essas novas formas de pagamento aos prestadores de serviços permitem alinhar os incentivos econômicos para a implantação das RAS.
Conass, maio 2016