“As mudanças climáticas estão estreitamente conectadas às desigualdades sociais e por isso é preciso fortalecer os mecanismos de proteção das populações mais vulneráveis, como os sistemas universais de saúde”. A recomendação é do geógrafo Christovam Barcellos, pesquisador do Laboratório de Informação em Saúde (LIS) do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz) e coordenador do Observatório Clima e Saúde. Nesta entrevista, ele comenta as relações entre saúde e ambiente no contexto da pandemia de Covid-19 e explora temas em destaque na Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2021 (COP26), que acontece até 12 de novembro em Glasgow, na Escócia.

Como o debate da COP26 se relaciona com a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável?

É uma relação de mão dupla. Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) propõem um caminho para reduzir alterações climáticas e ambientais, bem como ações de proteção social em outras áreas. A COP26 discute como os países estão seguindo ou não as recomendações deste e de outros acordos globais e atualiza os compromissos assumidos visando à redução das emissões de gases de efeito estufa e medidas de adaptação às mudanças climáticas. A Agenda 2030 concentra as questões climáticas no ODS 13 – Ação contra a Mudança Global no Clima, que fala sobre medidas urgentes para combater a mudança climática e seus impactos, e o tema perpassa todos os ODS, dentre eles, ODS 2 – Fome Zero e Agricultura Sustentável; ODS 3 – Saúde e Bem-Estar; ODS 11 – Cidades e Comunidades Sustentáveis; e ODS 12 – Consumo e Produção Responsáveis. Essa transversalidade é muito clara quando olhamos para as relações entre saúde e ambiente: o desmatamento causa perda de biodiversidade, que leva à dominância de determinada espécie e, com isso, à proliferação de pragas, vetores, vírus e, consequentemente, a doenças emergentes e reemergentes. Nossa tarefa, da Saúde, é identificar os mediadores dessa dinâmica: a biodiversidade, os vetores, o uso do solo, e novos patógenos que se propagam com mais facilidade em alguns ambientes. E, como parte desse conjunto, as questões sociais: há sistema de saúde público, gratuito? Como está o acesso à educação, à renda? Por isso os ODS são tão importantes.

Quais as relações entre mudanças climáticas e saúde, especialmente no atual contexto de pandemia de Covid-19 e acentuadas desigualdades sociais?

Em resumo, a maneira como produzimos, consumimos e circulamos impacta o ambiente, o clima e pode gerar novas doenças emergentes ou piorar as condições de doenças já existentes. Sem dúvida, as desigualdades sociais agravam o quadro da crise ambiental e sanitária, pois, de acordo com as condições sociais, as pessoas vão se expor mais ou menos aos riscos. Além disso, as mudanças climáticas afetam a saúde de forma defasada no tempo e no espaço e a face mais crítica desse processo é que as gerações que provocaram a aceleração das mudanças climáticas não são as mesmas que vão sofrer as consequências. Os grupos humanos que produzem danos ao ambiente não necessariamente são os que vão sofrer os efeitos da devastação. A Covid-19 mostra como os efeitos da crise ambiental são defasados no tempo e no espaço. A  pandemia é agravada pelo atual modelo de produção e consumo, que levou um vírus a ter um salto ecológico de transmissão, de animais para humanos, e a circular em escala global. E só ganhou essa dimensão e velocidade por causa das desigualdades e da aceleração dos fluxos mundiais. Depois de quase dois anos de pandemia, é gritante como, de um lado, um grupo pequeno se adaptou, produziu bens e serviços voltados para o novo contexto, enriqueceu e concentrou renda e, de outro, a maior parte da sociedade empobreceu e sofreu todas as consequências da Covid-19. É importante entender como essas mediações sociais e ambientais acontecem – e agir sobre elas. Por isso, questões que envolvem ambiente, clima e saúde precisam de monitoramento global. No Brasil nós temos o Observatório Clima e Saúde, que reúne e compartilha  informações, tecnologias e conhecimentos para apoiar a avaliação dos impactos das mudanças ambientais e climáticas na saúde da população brasileira. E com o apoio da Organização Panamericana de Saúde (OPAS) estamos articulando com outros países da América Latina a construção de um observatório continental de Clima, Saúde e Ambiente.

Quais as alternativas para o Brasil sair dessa crise?

Operacionalmente, nós pensamos o enfrentamento das mudanças climáticas em duas frentes. Primeiro, a mitigação das alterações climáticas requer a redução da emissão de gases de efeito estufa, a desaceleração do aquecimento, a mudança das formas produção, consumo e circulação. E para isso  o país precisa rever suas prioridades. No momento, somos prisioneiros de um compromisso internacional e nacional de equilibrar a balança comercial. O Brasil tem que produzir cada vez mais bens primários – minérios, soja, gado – porque é o que atualmente sustenta a sua balança comercial. São atividades altamente danosas ao ambiente e à população, que levaram aos desastres ocorridos nos últimos anos.  Paralelamente, são necessárias as ações para adaptação da humanidade às mudanças que não conseguimos evitar. Este deve ser o centro da atenção da Saúde Pública. O Sistema Único de Saúde (SUS) é um anteparo, um escudo de proteção da população, contra os efeitos das mudanças climáticas. Quando surge uma nova doença transmitida por vetor, como a zika por exemplo, quem cuida disso? É o SUS. Que é subfinanciado e não é pensado nas COPs, infelizmente. As mudanças climáticas estão estritamente conectadas às desigualdades sociais e por isso é preciso fortalecer os mecanismos de proteção das populações mais vulneráveis, como os sistemas universais de saúde. E isso deve ser financiado, internacionalmente.

Há maneiras de se produzir que podem ser bem menos agressivas, se nos voltarmos realmente às prioridades. Para que serve a agricultura, afinal? Deveria ser para produzir alimentos, em quantidade e qualidade adequadas. Não restam dúvidas de que a agricultura em pequena escala, intensiva e com manejo integrado de culturas, é o modelo mais adequado para superar a insegurança alimentar e diminuir o impacto sobre o ambiente. E isso requer a regionalização da economia. Um mundo mais sustentável também requer um mundo mais regionalizado, considerando as condições locais de produção e consumo. Investir na produção local e na diversificação de culturas reduz vulnerabilidades. É mais seguro do que concentrar a produção em alguns lugares para atender ao mundo inteiro, como fazemos hoje, por exemplo, com a soja. Há dezenas de tipos de milhos nos Andes e estamos comendo um milho transgênico, padronizado internacionalmente. Se acontecer uma praga nos Andes, provavelmente ela vai afetar uma espécie de milho, mas não as outras. No entanto, o modelo vigente hoje é o que produz toneladas e toneladas de soja para a China, que produz porco e vende para o mundo inteiro. Uma cadeia em escala global, que produz em largas distâncias,contribui para o surgimento de doenças emergentes, como a Covid-19. Nesse contexto, novos arranjos produtivos devem ser incentivados. Modelos locais aproximam produção, circulação e consumo, consomem menos energia e insumos, retêm a renda localmente, contribuem com o desenvolvimento regional e a redução das iniquidades.

A COP 26 vai avaliar o desempenho dos países em relação ao Acordo de Paris, estabelecido em 2015. Qual a situação do Brasil em relação à redução das emissões de gases de efeito estufa e à adaptação aos efeitos da mudança climática?

O Acordo de Paris é muito bem elaborado do ponto de vista técnico e poderia de fato resultar na redução das mudanças climáticas. Exige que países soberanos se comprometam com as metas ambientais. Mas, na prática, até hoje não foram criados mecanismos internacionais de fiscalização, financiamento e avaliação dessas metas. Um organismo supranacional para executar o repasse de recursos, cobrar o cumprimento das metas, em alguns casos até punir determinado país. Outro ponto importante é que a economia mundial não é regida apenas por países, mas também por empresas e pelo capital financeiro, que são voláteis. Então, se um país restringe uma atividade econômica, a empresa pode migrar para outro país. Por isso, a regulação deve envolver países, empresas e setores econômicos. Sem uma regulação global não estamos conseguindo cumprir as metas estabelecidas. Ao contrário: estamos acelerando o desmatamento, introduzindo gado em biomas que deveriam ser preservados, como Pantanal e Sul da Amazônia, produzindo queimadas. O Brasil tem uma matriz energética relativamente limpa. Nossas grandes fontes de emissão de gases de efeito estufa são o desmatamento e a pecuária. E isso é resultado de pressões internacionais: existe um mercado global de madeira, de soja, de terras – do qual o Brasil se tornou dependente. Estamos comprometidos com a produção de soja, pelo menos, pelos próximos 20 anos. O Brasil, como um país cada vez mais periférico na economia globalizada, não tem condições de alterar como China e Estados Unidos estão fazendo; de mudar a matriz energética mundial. O que nós podemos – e devemos – fazer é identificar os mecanismos de mediação que podem aumentar ou reduzir os efeitos das mudanças climáticas. E agir sobre eles. Igualdade de gênero, educação, combate à fome, agricultura sustentável. Tudo isso são maneiras de proteger a sociedade brasileira dos efeitos das mudanças climáticas. É nesse processo que a Saúde deve atuar.

No Brasil, a expectativa é em torno do marco regulatório do mercado de carbono. Como o senhor avalia o PL 528/21, que prevê a criação do Mercado Brasileiro de Redução de Emissões (MBRE)?

Há pontos positivos, como o princípio do poluidor-pagador, que conecta a produção de gases de efeito estufa com uma compensação. Nesse modelo, quem polui mais deve fazer a restituição de danos ambientais investindo em florestas que fazem o sequestro de carbono. É uma forma de compensar a poluição com novos investimentos na conservação ambiental. Mas, como todo mercado, isso pode produzir distorções. Uma siderúrgica em Minas Gerais estaria liberada para poluir, contaminar uma cidade inteira naquele estado se ela comprar e plantar árvores num terreno na Amazônia? De certa forma, corremos o risco de criar uma “licença para poluir”. Outro risco é que essa dinâmica tende a acentuar as desigualdades regionais e os problemas de saúde. A região metropolitana de São Paulo, por exemplo, já é muito complicada do ponto de vista da geração de danos ambientais. Empresas e indústrias poluidoras que atuam em São Paulo podem investir em reflorestamento na Amazônia, mas vão continuar a poluir e a degradar a região metropolitana de São Paulo. Por isso dizemos que o problema é global, os modelos devem ser regionais e as ações locais. É no nível local que é possível agir sobre as questões ambientais e sociais. Mais uma vez, falta regulação, faltam mecanismos de controle. E infelizmente os órgãos ambientais brasileiros foram desmontados nos últimos anos, por falta de financiamento ou por cerceamento das atividades. A conversão do nosso modelo de produção depende, portanto, do fortalecimento das instituições e grupos de pesquisa, por meio de redes internacionais; da atuação do Estado visando a equidade, distribuição de renda e proteção social; e da participação popular na formulação e monitoramento de políticas públicas.

Bel Levy
Saúde Amanhã
10/11/2021