“Os limites entre o público e o privado tendem a ficar cada vez menos nítidos na Saúde, já que há muita interação entre os dois segmentos e não se tem vislumbrado uma mudança significativa nesse cenário”. A previsão é da pesquisadora em Saúde Pública Juliana Machado, especialista em Regulação da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e colaboradora da rede Brasil Saúde Amanhã, em que participou da pesquisa “Internações hospitalares e serviços ambulatoriais no setor privado”. Neste contexto, vem analisando as internações e os procedimentos ambulatoriais realizados no setor privado de saúde e os fluxos entre os municípios de residência e atendimento dos pacientes. Nesta entrevista, ela discute as relações público-privadas na Saúde, os seus impactos para o Sistema Único de Saúde (SUS) e as tendências para as próximas décadas. “Em nossas pesquisas, buscamos indicar o direcionamento das políticas de Saúde para a redução de riscos, seja subsidiando tomadores de decisões com informações que orientem investimentos para a qualificação do SUS, seja impulsionando a regulação dos investimentos privados para torná-los mais compatíveis às necessidades da população brasileira”, aponta.

Como as interações entre os setores público e privado de Saúde vêm sendo estudadas pela rede Brasil Saúde Amanhã e quais são os cenários para os próximos 20 anos?

A proposta da rede Brasil Saúde Amanhã é prospectar os cenários futuros da Saúde, de forma a subsidiar ações e políticas que fortaleçam o SUS. Neste sentido, nosso grupo de pesquisa, coordenado pelo professor Francisco Viacava, tem trabalhado com as bases de dados disponíveis no país, agregando informações entre os sistemas existentes e discutindo a complementariedade entre os dados referentes ao serviço privado e ao SUS. Para isso, utilizamos as bases do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), do Registro de Planos de Saúde (RPS) e do Sistema de Comunicação de Informação Hospitalar e Ambulatorial (CIHA).É preciso reconhecer que, muitas vezes, os problemas das bases de dados são usados para justificar a abordagem exclusiva sobre o SUS, frequentemente deixando de lado a realidade do setor privado – tão significativa no sistema de saúde brasileiro.

Para contornar essa situação, selecionamos para análise os temas em que os dados do setor privado são mais consistentes e aplicamos recortes temporais e geográficos com informações fidedignas. Também buscamos referências mais recentes relacionadas à qualidade das bases de dados, para conhecer melhor os limites dos resultados encontrados. Avaliamos que assim impulsionaremos não apenas análises mais integradas dos setores público e privado, como também contribuiremos para a melhor qualidade das informações. Como os dados do setor privado não permitem a construção de séries históricas muito longas, trabalhamos com cenários trienais, com a expectativa de utilizar informações para o próximo triênio assim que forem disponibilizadas. A rede Brasil Saúde Amanhã vem aplicando os resultados encontrados para ampliar a discussão sobre o mix público-privado na Saúde do ponto de vista político e da gestão. Podemos dizer que os limites entre o público e o privado tendem a ficar cada vez menos nítidos, já que há muita interação entre os dois segmentos e não se tem vislumbrado uma mudança significativa nesse cenário. Como exemplos, há prestadores privados que atuam com financiamento do SUS; prestadores públicos ou privados sem fins lucrativos que são geridos pela iniciativa privada; muitos profissionais atuam nas duas frentes; e muitos pacientes utilizam serviços de ambos os setores.

Qual a situação atual das internações e procedimentos ambulatoriais realizados no setor privado de saúde e quais as tendências para as próximas décadas?

O serviço privado concentra a maior proporção de procedimentos cirúrgicos do país, se comparamos à população coberta por planos de saúde. Este cenário indica ou uma sobreutilização desses serviços por beneficiários de planos de saúde ou a necessidade de ampliação da oferta desses serviços aos pacientes do SUS. Alguns serviços parecem concentrar pacientes no SUS, independentemente de sua cobertura por planos de saúde, como é o caso da cirurgia oncológica e dos transplantes. Possivelmente isso se deve à especialização de alguns prestadores públicos e ao seu reconhecimento pela população. Ainda assim, não se deve descartar a questão do custo desses pacientes para as operadoras de planos de saúde – e o fato de que tal custo pode influenciar o acesso dos beneficiários aos serviços que necessitam. Quanto aos serviços ambulatoriais analisados, observamos grande predominância de uso do SUS nos casos de quimioterapia, radioterapia e mamografia. Já a realização de ressonância magnética e de tomografia computadorizada parece mais frequente no segmento privado, em comparação à população coberta por planos de saúde, que teria acesso a esses procedimentos por meio de seus convênios. Para ambos os segmentos, tanto público como privado, observamos a concentração de ocorrências nos mesmos municípios, indicando que possivelmente os centros de referência são comuns entre eles.

Portanto, as políticas para as próximas décadas devem observar as características desses centros, de forma a identificar fatores relevantes para a manutenção do acesso dos pacientes e para a qualidade dos serviços prestados. Esses fatores podem, inclusive, subsidiar a implantação de novos centros, em localidades identificadas por sua carência. Podem envolver a presença de profissionais especializados, a existência de equipamentos ou instalações específicas. Além disso, as políticas de saúde relacionadas à construção dos centros de referência devem direcionar-se não apenas ao SUS, como também preocupar-se com a regulação da implantação de serviços privados.

Observa-se que a concentração espacial da oferta de serviços de saúde aumenta de forma proporcional à complexidade do atendimento. Quais os desafios que esta dinâmica coloca à equidade do SUS e o que deve ser feito para transformar este quadro?

Tal concentração também ocorre em países reconhecidos pela excelência de seus serviços de saúde. Ela, em si, não deve ser considerada prejudicial ao sistema de saúde, pelo contrário, um sistema organizado pressupõe a maior especialização dos serviços em prestadores limitados, pois além da logística de funcionamento, essa forma de organização é benéfica para a qualidade e excelência dos serviços. A literatura indica que o maior volume de realização de procedimentos está relacionado a melhores resultados. Assim, não faria sentido implantar equipamentos, construir instalações físicas e contratar profissionais especializados para a manutenção e operação desses equipamentos em áreas com baixa demanda.O investimento em novos recursos deve, então, privilegiar a sedimentação de serviços já instalados em áreas com demanda de uso e com oferta de profissionais, localizados em municípios de fácil acesso e centrais para um grupo de outros municípios. Nesse sentido, a rede Brasil Saúde Brasil também tem abordado o desenvolvimento urbano e a identificação de centros de referência em serviços diversos, trabalho que vem sendo desenvolvido em parceria com pesquisadores do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Em longo prazo, que desafios a transição demográfica e epidemiológica que o Brasil vivencia trará para a organização do sistema de saúde, o financiamento setorial e a regulação do setor privado?

Em relação à organização do sistema de saúde, precisamos nos preparar, no âmbito hospitalar, para o aumento da demanda por leitos de UTI e leitos de longa permanência, assim como para a maior necessidade de procedimentos mais recorrentes em adultos em faixas etárias mais avançadas e em idosos, como os ortopédicos e cardíacos. No contexto ambulatorial, são prementes os esforços na formação de generalistas e na reestruturação dos serviços para o melhor acompanhamento de pacientes crônicos e com múltiplas morbidades. Esta reorganização do sistema, com o redirecionamento de esforços à assistência de baixa e média complexidade e maior concentração dos serviços especializados, é essencial para tornar viável o financiamento setorial. Esta é apenas uma faceta da discussão relativa ao financiamento do sistema, que vem sendo desenvolvida por outro grupo de pesquisa da rede Brasil Saúde Brasil.

Especificamente sobre a regulação do setor privado, esta deve incentivar a oferta de redes integradas de assistência pelos planos de saúde, capazes de gerenciar a utilização de serviços pelos seus beneficiários, controlando os altos custos envolvidos e qualificando o atendimento dos pacientes. Nesse campo também se destaca a necessidade de regulação da implantação de novos serviços e da oferta de acesso aos serviços já existentes via planos privados de saúde. Diante da rede de atenção atualmente disponível no país, que sobrepõe interesses públicos e privados com pouca ou quase nenhuma organização, esta regulação é fundamental para evitar “leilões” dos serviços existentes entre os beneficiários de planos privados ou, ainda, a venda de promessas de acesso de melhor qualidade – que possivelmente não se concretizarão (por exemplo, por meio da continuidade da venda de planos com redes saturadas ou incompletas).

Como a manutenção do mix público-privado na Saúde, por meio de medidas como o orçamento impositivo e a abertura do setor ao capital estrangeiro, impactará a organização da oferta de serviços de saúde e a equidade do SUS, em médio e longo prazo?

Essas medidas potencializam o mix público-privado na Saúde, já que os investimentos privados tendem a direcionar-se para a atuação em áreas com maior retorno financeiro, não necessariamente aquelas com maior necessidade da população, deixando para o SUS esta cobertura. Assim, cada vez mais se amplia o emaranhado em nosso sistema de saúde, tornando complexas sua gestão e regulação. Nas discussões propostas pela rede Brasil Saúde Amanhã, nosso posicionamento tem sido no sentido de identificar os riscos que essas relações impõem ao sistema de saúde, sobretudo o risco à equidade, à efetividade e à sustentabilidade do SUS. Em nossas pesquisas, buscamos indicar o direcionamento das políticas de saúde para a redução desses riscos, seja subsidiando tomadores de decisões com informações que orientem investimentos para a qualificação do SUS, seja impulsionando a regulação dos investimentos privados para torná-los mais compatíveis às necessidades da população

Bel Levy
Saúde Amanhã
26/10/2015