Em 7 de abril de 1948, há exatos 66 anos, foi criada a Organização Mundial da Saúde (OMS). Sua criação foi sustentada na necessidade de promover o direito à saúde no conjunto dos países das Nações Unidas e, por isso, na data de sua criação foi instituído o Dia Mundial da Saúde.

A criação da Organização das Nações Unidas, em 1944, diante do horror deixado pela II Guerra Mundial e da reconhecida incapacidade das ideias de livre mercado em conduzir ao bem-estar social, representou à época, um compromisso internacional de estabelecer princípios e medidas que propiciassem uma nova ordem econômica internacional que conduzisse ao desenvolvimento social. Diante das experiências das crises econômicas dos anos 1920/1930, ficava claro que, se deixado livre, o capitalismo da grande empresa e do capital financeiro tentaria emplacar novas experiências totalitárias. Assim, os acordos de Bretton Woods criaram entidades e regras para coordenar e regular os poderes dos grandes grupos econômicos.

A constituição da OMS representou, naquele contexto, o reconhecimento internacional do direito à saúde, em seus aspectos “ físico, mental e social”. Aos Estados caberiam implementar políticas públicas para o Bem-estar social da população, adotando uma posição central no controle dos ciclos econômicos.

Mas as coisas mudaram. Os movimentos do capital , a concentração do poder nos países centrais do capitalismo foram mudando a configuração política mundial e consequentemente das Nações Unidas e suas organizações.

A ascensão do neoliberalismo após os anos 1970 e o avanço dos interesses do capital financeiro por meio de um processo longo de desregulamentações e fragilização dos estados nacionais, tem levado a um retrocesso no que diz respeito à promoção e à garantia dos direitos sociais.

A hegemonia do pensamento neoliberal, defendido pelos Estados Unidos e pela maioria dos países desenvolvidos, alterou também a correlação de forças dentro dos organismos internacionais. No campo da saúde, os EUA escolheu defender um “direito à saúde” orientado pelos interesses do mercado e por uma lógica privatista.

Enquanto o pensamento neoliberal ganhava força pelo mundo, no Brasil , já durante o processo de reabertura política no final dos anos setenta e na década de oitenta, o Cebes inicialmente e logo depois com as demais entidades do Movimento pela Reforma Sanitária, defendiam o direito universal à saúde, a seguridade social e a criação de um Sistema Único de Saúde.

Em outubro de 1979, durante o Seminário sobre a “Política Nacional de Saúde” realizado na Câmara Federal, o Cebes divulgou um documento de referência nesse processo político. No texto “A Questão Democrática da Saúde”, o CEBES defendia o reconhecimento do direito universal e inalienável à saúde, atrelado fortemente a um novo projeto de Estado, com democracia e com um projeto de desenvolvimento econômico e social para o país, que garantisse pleno emprego, bons níveis salariais, nutrição, saneamento, habitação e a preservação de níveis ambientais aceitáveis.

Além disso, preconizava-se a criação de um Sistema Único de Saúde – universal, integral e democrático. As bases, princípios e conceitos defendidos pelo Movimento da Reforma Sanitária logrou alcançar força politica e foi cravado na Constituição Cidadã.

O SUS passa então a existir como sistema único e o significado central da unicidade é a primazia dos interesses públicos sob a regência do Estado. Assim, o SUS assume a tarefa constitucional de planejar e executar uma política nacional de saúde para o país envolvendo não apenas os serviços públicos mas também os privados, e incluindo o desenvolvimento da pesquisa em saúde e a formação de recursos humanos. No plano da atenção universal à saúde deveria ser garantido nos aspectos da saúde individual e coletiva, curativa e preventiva para atender o conjunto das necessidades da população.

Da incorporação da maioria das propostas defendidas pelo Movimento da Reforma Sanitária na Constituição Brasileira, resultou um dos maiores sistemas públicos de saúde do mundo. Ao longo destes 25 anos de SUS, o Cebes tem tido uma atuação de guardião das conquistas constitucionais.

Se a criação do SUS foi uma importante vitória conquistada pelas forças progressistas, sabe-se que para a sua consolidação há muito a fazer para que o Estado garanta, na prática, o que enuncia a Carta Magna de 1988. Os interesses no interior do Estado se tornaram mais complexos e hoje o mercado da saúde se tornou uma forte força politica no cenário nacional.

É por isso que o Cebes assume, nesse mês de abril, a iniciativa de promover um debate sobre os caminhos para a consolidação do direito universal à saúde no Brasil. Para pautar a discussão, ao longo dos próximos dias serão publicados textos de diversos personagens e ativistas comprometidos com o direito universal à saúde.

A cada dia, acompanhe o debate deixando aqui seus comentários e divulgando os desafios que estão postos para a democratização do direito à saúde.

Com a palavra, nossos convidados. Nossa pergunta:

Quais os caminhos para consolidar o direito universal à saúde no Brasil?

Ana Costa*

Em primeiro lugar, é preciso que o Estado brasileiro, toda a sociedade e os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário se convençam que a saúde é um direito humano básico que deve ser preservado pelo Estado e as políticas sociais que produzem saúde devem assumir lugar central no projeto de desenvolvimento para o país, expressando assim, na prática, o compromisso com o direito universal à saúde.

Nessa perspectiva, é necessário retomar o Sistema de Seguridade Social criado pela Constituição Federal que articula Saúde, Previdência e Assistência Social com políticas complementares financiadas pelo Orçamento da Seguridade Social. Com isso, a Saúde contaria com fonte estável e adequada resolvendo o crônico e persistente problema do sub-financiamento que acomete o SUS.

O Movimento Saúde Mais Dez, que conta com o apoio de mais de dois milhões de assinaturas de eleitores brasileiros e apresentou um projeto de Lei por mais recursos para o SUS ao Congresso Nacional, foi sumariamente desrespeitado exibindo claramente os conflitos de interesses e as prioridades naquela casa e no governo em relação à saúde.

A população está descrente no sistema público – SUS e esta construção da percepção popular conta com as experiências mal sucedidas mas, especialmente, com um desejo coletivo por uma saúde baseada nos padrões de consumo, procedimental e intervencionista que, comprovadamente, não resultam em melhora de níveis de saúde. A favor dessa corrente, múltiplas e poderosas forças.

Reverter essa cultura e apostar na consciência do direito à saúde é um caminho necessário e a primeira estratégia para isso é qualificar a assistência prestada pelo SUS, desde a atenção primária aos hospitais. As “ilhas de excelência” que hoje existem no sistema público mostram que isso é possível.

O sistema formador precisa ser cooptado pelos interesses públicos. Hoje ele serve aos interesses do mercado produzindo profissionais pautados pelo consumismo da saúde ou melhor, para o mercado da doença.

É preciso regulação autônoma, forte e efetiva do mercado privado que garanta os interesses dos usuários do direito à saúde. Efetivar o ressarcimento de forma que preserve o SUS. Eliminar os subsídios e incentivos tributários e fiscais concedidos ao mercado.

Se na próxima década o Brasil assumir estas diretrizes centrais para a saúde, provavelmente teremos chances de melhorar o cenário e as possibilidades de universalizar o direito à saúde. É um desafio posto à sociedade brasileira cuja população tem mostrado sua profunda insatisfação com a saúde.

* Ana Costa é presidenta do Cebes, docente da Escola Superior de Ciências da Saúde (ESCS). Médica com doutorado em Ciências da Saúde.

Nelson Ibañez*

As mudanças ocorridas na sociedade brasileira nas últimas décadas vêm apontando de maneira aguda para um descompasso entre o ritmo destas mudanças e as respostas políticas do sistema de saúde capazes de atendê-las de maneira eficiente e eficaz para o desenvolvimento de um sistema de corte universalista.

As principais mudanças apontadas nas análises setoriais podem ser resumidas nos seguintes aspectos: uma transição demográfica acelerada caracterizada por um grau de urbanização e metropolização da população brasileira (mais de 70% concentra-se em capitais e municípios acima de 100 mil habitantes); aumento da expectativa de vida e o consequente envelhecimento da população; a redução dos níveis de fecundidade; condições de saúde: onde à persistência de situações relacionadas às infecções, problemas nutricionais e saúde reprodutiva soma-se a crescente predominância de doenças crônicas e o forte incremento da violência e de causas externas.

Em relação às repostas políticas aos problemas apontados estas trabalham com as seguintes vertentes, entre outras: subfinanciamento do SUS; a hibridez do sistema brasileiro no qual a proposta do sistema público universal concorre e subsidia o sistema privado de planos de saúde; perda de visão de um planejamento setorial estratégico e de longo prazo; a persistência de um sistema fragmentado de assistência apesar do esforço de indução federal para as diferentes políticas que orientam para um modelo centrado na atenção básica e mais recentemente na regionalização e construção de redes temáticas.

O término da pesquisa que coordenei sobre as redes de urgência e emergência e a implantação das UPAs, realizada em sete estados brasileiros com apoio do MS e CONASS, colocam na direção da universalidade do SUS três desafios: financiamento, fortalecimento da gestão estadual e profissionalização dos recursos para a gestão e operação das redes.

A indução do financiamento via federal tem sido importante, mas tem se mostrado insuficiente para a implementação dos diferentes componentes da rede sobrecarregando os níveis subnacionais com novas demandas e com grande comprometimento orçamentário no custeio dos serviços. O estudo de alternativas de financiamento em todas as instâncias é central onde a questão da relação investimento e custeios é permeada pelas questões das políticas nesses níveis. No caso das RAUs, a concentração nas áreas urbanas com forte presença do setor supletivo merece uma agenda mais pró-ativa dos gestores.

O fortalecimento da gestão estadual na governança regional implica numa redefinição clara do papel estadual em três grandes frentes: articulação das CIRs, regulação e política hospitalar. No caso específico das RAUs, a sobrecarga de gestão dos serviços e articulação pela instância municipal reforça um modelo fragmentado e competitivo e de conflitos inter gestores nos níveis estaduais e loco regionais. A essa situação soma-se a política dada a concentração desses recursos em capitais e regiões metropolitanas. O COAP aponta para uma redefinição desses papéis, mas é ainda incipiente do ponto de vista institucional e político.

A questão dos recursos humanos para a gestão e operação do sistema necessita uma política mais clara de fortalecimento dos quadros institucionais. Desde a contratação dos apoiadores com vínculos terceirizados até a operação de funções estratégicas do SUS por organizações sociais deve ser revista, sem abandonar as alternativas existentes, mas definindo um perfil de quadros públicos e estáveis para a gestão do SUS. Em síntese, a complexidade das transformações ocorridas e a diversidade de atores políticos e de diferentes interesses no campo da saúde requerem um novo pacto social e político onde as instâncias subnacionais discutam a partir de novas diretrizes seus territórios e a sociedade tenha uma participação mais ampliada na reformulação de estratégias em busca da universalidade e de políticas sociais e econômicas menos excludentes.

* Nelson Ibañez  é Livre docente em Saúde Publica pela Universidade de São Paulo (USP), professor adjunto da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo e médico sanitarista do Governo do Estado de São Paulo.

Luis Eugênio Portela*

A Constituição brasileira define, desde 1988, o caminho do direito universal à saúde. Trata-se, primeiramente, de implantar políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos (art. 196). Em segundo lugar, trata-se de organizar os serviços de saúde em uma rede regionalizada e hierarquizada, constituindo um sistema único, baseado nas diretrizes da descentralização, do atendimento integral e da participação da comunidade (art. 198).

Nos últimos 25 anos, desde a promulgação da Constituição, muitos foram os avanços no sentido da universalização da saúde. Algumas políticas sociais e econômicas melhoraram a qualidade de vida da população, com destaque para a ampliação do emprego, a valorização do salário mínimo e a implantação do Programa Bolsa-Família, ocorridas nos últimos dez anos. Especificamente no setor da saúde, houve também várias conquistas: expansão significativa da cobertura da atenção básica e da atenção às urgências, controle das doenças passíveis de prevenção por vacinas, ampliação do acesso a medicamentos, desenvolvimento de programas eficazes nas áreas de saúde mental, saúde bucal, vigilância epidemiológica e sanitária, controle de dst/aids, etc.

Apesar dos avanços, há que se reconhecer que o Brasil está longe da garantia do direito de todos à saúde. Certas políticas sociais e econômicas têm aumentado as desigualdades e ameaçado a sustentabilidade do desenvolvimento, com a brutal transferência de renda para o setor financeiro da economia. Na área da saúde, a expansão de serviços foi insuficiente, sobretudo para os mais pobres, no que tange aos serviços de maior densidade tecnológica. A qualidade das ações de saúde, em muitos casos, deixa a desejar. As desigualdades no acesso aos serviços persistem.

Como trilhar o caminho do direito universal, hoje?

Uma agenda para a saúde em 2014 deve se estruturar em cinco eixos:

1) Desenvolvimento socioeconômico inclusivo e sustentável, o que exige políticas macroeconômicas pautadas por objetivos redistributivos (não apenas da renda, mas também da riqueza) e políticas de inovação tecnológica orientadas pelos princípios da igualdade e da solidariedade com as futuras gerações.

2) Fortalecimento da democracia e da participação social, com a utilização dos mecanismos de democracia direta, como referendos, plebiscitos e projetos de iniciativa popular, em especial em matérias atinentes ao processo eleitoral e às políticas sociais. O financiamento público de campanhas é outra estratégia importante para fortalecer a representatividade do sistema político.

3) Promoção da atenção integral à saúde, com a organização de redes integradas de serviços, coordenadas pela atenção primária. A garantia da continuidade do cuidado e a articulação de ações de promoção da saúde e de prevenção e tratamento das doenças exigem o investimento em novas tecnologias sanitárias que favoreçam a intervenção sobre os determinantes sociais da saúde, promovam a autonomia dos usuários dos serviços de saúde, reduzam os riscos de iatrogenia, facilitem o fluxo de pessoas e recursos entre os serviços e não ameacem a viabilidade econômica dos sistemas universais de saúde.

4) Aumento da eficiência da gestão da saúde, a partir da melhoria da coordenação federativa, com a consolidação das regiões de saúde, co-financiadas e co-geridas pelas três esferas de governo (União, estados e municípios) sob controle social. Uma maior eficiência exige ainda uma política de gestão da educação e do trabalho que renove o compromisso social, a conduta ética e a competência técnica dos trabalhadores da saúde. Para isso, devem-se adotar novos modelos de formação e de exercício laboral, que estimulem o trabalho em equipe, a autonomia profissional e a criação de vínculos interpessoais.

5) Garantia de financiamento adequado, com a alocação do mínimo de 10% das receitas correntes brutas da União no SUS, o fim da Desvinculação das Receitas da União (DRU) para o orçamento da Seguridade Social, a destinação ao SUS dos subsídios e dos gastos tributários com o setor privado da saúde e a efetiva cobrança do ressarcimento ao SUS pela utilização de seus serviços por pessoas com planos privados.

O alcance dos objetivos expressos nesses cinco eixos depende da mobilização da sociedade. Desde já, estão sendo perseguidos por um importante movimento social, liderado pelo Conselho Nacional de Saúde, que reúne dezenas de entidades da sociedade civil, representando usuários e trabalhadores da saúde, em âmbito nacional. A entrega à Câmara de Deputados, em 2013, de um projeto de lei de iniciativa popular, com mais de 2,2 milhões de assinaturas, propondo a obrigatoriedade da destinação à saúde de 10% das receitas brutas da União, demonstrou a força desse movimento.

Infelizmente, essa força não foi capaz ainda de vencer as resistências à ampliação do financiamento da saúde. Contudo, a mobilização cresce e o ano eleitoral de 2014 favorece o debate sobre as políticas públicas, inclusive, a da saúde. É possível, portanto, que sejam ouvidas e apoiadas pelos milhões de brasileiros que usam o SUS as propostas defendidas, em todo o país, por conselheiros de saúde, gestores, trabalhadores, acadêmicos, estudantes, lideranças populares, parlamentares, promotores de justiça, etc., comprometidos com a luta pelo direito universal à saúde.

* Luis Eugênio Portela é presidente da ABRASCO e professor do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (UFBA) com doutorado em Saúde Pública.

Maria do Socorro de Souza*

As mobilizações de julho de 2013 e pesquisas de opinião divulgadas recentemente, à exemplo da realizada pelo Datafolha por encomenda da Interfarma, confirmam que o direito à saúde ocupa lugar de destaque na agenda da sociedade brasileira, determinando que a mesma ocupe um lugar de prioridade na agenda governamental e na agenda eleitoral deste ano.

A pesquisa Datafolha/Interfarma afirma que 50 milhões de pessoas escapam das filas do SUS por meio de planos privados, mas não informa que o SUS atende, sem distinção e sem exigências, 190 milhões de brasileiros que necessitam, diariamente, de ações de vigilância sanitária, vigilância ambiental, imunizações, transplantes, tratamento oncológico, acesso a medicamentos a baixo custo, serviço de urgências e emergências, dentre tantos outros.

O fato não tem nada de inédito se considerarmos que a luta do povo brasileiro pelo direito à saúde ocorre desde a formação social brasileira e demarca, até os dias atuais, uma das faces dos conflitos e problemas sociais de uma sociedade de classes. Todavia, o ineditismo do fato está na retomada da mobilização social por novos sujeitos sociais e políticos e sua capacidade de colocar na agenda nacional um problema historicamente ainda não equacionado. Maior ineditismo, contudo, pode ainda acontecer se conseguirmos fazer deste limão uma forte limonada. Refiro-me à capacidade do povo brasileiro de transformar este fenômeno em força social, cujo objeto de disputa política seja, para além da qualidade dos serviços de saúde pública e/ou privada, a defesa de um sistema de saúde público, universal, integral e equânime.

No contexto em que realizamos a 4ª. Conferência Nacional de Saúde dos Trabalhadores e das Trabalhadoras em todo o Brasil e nos preparamos para a realização da 15ª Conferência Nacional de Saúde, este desafio está posto: ou ocupamos as ruas, politizamos esta agenda e arregimentamos forças sociais em defesa do SUS ou estamos fadados a fazer o mesmo do mesmo, permitindo, assim, que o SUS perca a credibilidade e legitimidade junto à população.

Neste sentido, é preciso fazer aqui uma distinção política: o direito à saúde restrito ao acesso a serviços públicos ou privados de qualidade é uma agenda de necessidades mínimas, tem conotação de urgente, emergencial, menor, menos, que encobre a desproteção social. Precisamos resignificá-la para uma agenda de necessidades básicas, que se traduz em algo que é fundamental, principal, primordial. Essa noção exige investimentos sociais de qualidade e permite fazer inferências que possam impulsionar o atendimento de saúde à satisfação das necessidades fundamentais da população, em direção à níveis superiores, ou seja, do ótimo.

A defesa dessa noção de direito à saúde exigirá dos militantes defensores do SUS capacidade para ultrapassar esta arena real de conflitos de interesses, inclusive de classes, e ganhar a opinião pública de que o SUS é viável.

*Maria do Socorro de Souza é graduada em Filosofia pela Universidade Católica de Pernambuco, mestre em Política Social pela Universidade de Brasília, presidenta do Conselho Nacional de Saúde (CNS), assessora da CONTAG.

Thomaz Rafael Gollop*

A pergunta que nos é feita parte da premissa segundo a qual estamos tratando de saúde pública de qualidade. Devo assinalar que não sou gestor na saúde pública mas trabalho em dois hospitais do Sistema Único de Saúde (SUS), ambos relacionados ao ensino de internos e residentes de escolas médicas. Penso também que saúde pública de qualidade não significa necessariamente envolver medicina altamente sofisticada. Torna-se aqui necessário colocar uma questão raramente tratada nesta discussão: quem se preocupa em atualizar médicas(os) do SUS? Sabemos que toda a medicina se reformula em um prazo de 5 anos. Como não há exigência formal de atualização periódica dos profissionais do SUS podemos concluir que uma grande parte deles executa uma medicina ultrapassada e, portanto, menos eficiente do que ela deveria ser, gerando resultados terapêuticos inadequados. Vou ater-me a um simples exemplo na minha especialidade, ginecologia, cujo impacto na saúde das mulheres é grande especialmente em uma população que está envelhecendo progressivamente: correção cirúrgica da incontinência urinária de esforço (IUE). Trata-se de cirurgia frequente no SUS realizada na imensa maioria das vezes com a técnica de Kelly-Kennedy cuja recorrência de sintomas é da ordem de 50%. O padrão-ouro no mundo todo e também pela Sociedade Brasileira de Urologia, desde o início dos anos 90, é a utilização de pequenas telas de polipropileno (“slings”) com sucesso superior a 90%. Sucede que a técnica com as telas não faz parte da lista de procedimentos do SUS e desta forma sua utilização é excepcional na rede pública. A técnica ultrapassada, em metade das pacientes por ela operadas, exige nova operação com custos dobrados ao SUS. Este é um exemplo entre centenas de outros. A incorporação de tecnologias de média e alta complexidade no SUS é muito lenta e, em tese, pressupõe atualização constante dos profissionais. Esta poderia ser realizada através da incorporação destes a programas de educação continuada em convênios com instituições onde os mesmos são constantemente realizados. Desta forma apresentamos uma proposta objetiva de articular serviços públicos aos privados para “o desenvolvimento da pesquisa em saúde e a formação de recursos humanos”.

Em relação ao subfinanciamento da saúde pública, há urgente necessidade de reconhecer graves problemas. Um deles trata da lei dos planos de saúde (lei nº 9.656/98) que prevê o ressarcimento ao SUS caso o beneficiário do plano privado seja atendido pelo sistema público. Pela lei cabe à Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) identificar os pacientes atendidos no SUS, notificar as empresas sobre os valores a serem ressarcidos e cobrar a devolução. Em uma única reunião, em março de 2014, a diretoria da ANS deliberou sobre 99 recursos de planos de saúde contra o ressarcimento ao SUS. (Scheffer,M e Lazzarini,M – Sinais trocados na saúde. Tendências e Debates, Folha de São Paulo, 17/4/2014). Nesta mesma matéria menciona-se que em 2009 o Tribunal de Contas da União alertou que a ANS dá prejuízo aos cofres públicos, pois não identifica corretamente o que deve ser ressarcido e é lenta para realizar as cobranças jogando os processos à prescrição. De 2001 a 2013, retornaram ao SUS apenas R$ 447 milhões. O SUS realiza por ano 11 milhões de internações, das quais pelo menos 200 mil são de planos de saúde, custo que chega a R$ 1 bilhão, sem contar os procedimentos ambulatoriais que, inexplicavelmente, não são processados pela ANS. É absolutamente imprescindível reconhecer que há problemas na gestão da Saúde Pública no Brasil que são mais evidentes do que imaginam muitos. Eles exigem solução! O exemplo acima, relativo à ANS, mostra claramente um único caso de desperdício de verbas públicas. Muitos outros haverão de existir que exigem diagnóstico preciso e tratamento adequados.

* Thomaz Rafael Gollop é livre docente em Genética Médica pela Universidade de São Paulo; professor associado de Ginecologia da Faculdade de Medicina de Jundiaí, São Paulo; e coordenador do Serviço de Cirurgia do Assoalho Pélvico do Hospital Pérola Byington – SUS – SP.

Carlos Octávio Ocké-Reis*

VIDA LONGA AO SUS

Che Guevara tinha razão.

O que define um revolucionário é o seu amor pela humanidade, pela justiça, pela verdade.

Com esse espírito, teremos força para transformar a economia, as instituições e as condições de vida da maioria da população brasileira. Teremos sabedoria para afirmar os pressupostos do SUS em defesa da vida, da democracia, da segurança alimentar, da saúde pública de qualidade e da ética na medicina.

Esse projeto estratégico precisa ser vivificado pelo Estado, precisa ser legitimado pela sociedade.

Não podemos naturalizar o pragmatismo, onde o fomento ao mercado aparece como solução para desonerar as contas públicas. Não podemos conviver com determinadas injustiças, quando recursos do governo são canalizados para o circuito de acumulação de capital. Não podemos nos calar diante da dor, da tragédia, do caos e da morte nas grandes regiões metropolitanas.

A reforma sanitária apostou na universalização, na integralidade e no equilíbrio federativo dos serviços públicos. Como direito social, nesses vinte e cinco anos, enfrentou a barbárie e ajudou a melhorar os indicadores de saúde. Entretanto, o SUS não tem financiamento estável, o mercado cresceu e a estratificação de clientela não foi superada.

Uma vez que a saúde foi também considerada livre à iniciativa privada na Constituição de 1988, além dos problemas na gestão e no controle popular, outra contradição gritante apareceu nessa caminhada: o SUS não cobre, regularmente, o polo dinâmico do mercado de trabalho, cujos trabalhadores (setor privado e setor público) possuem maior capacidade de vocalização política – a exemplo da experiência do Estado de bem-estar social europeu – para consolidar o modelo de seguridade social.

Ora, sem reconhecer essa fragilidade, não avançamos objetivamente. As diretrizes constitucionais foram e são essenciais, porém insuficientes para garantir a hegemonia do SUS e a regulação substantiva do complexo médico-industrial e dos planos privados de saúde.

Para completar esse processo, será necessário reconstruir uma expressiva base de apoio social e parlamentar, combinando mobilização de massa com luta institucional, a partir de uma agenda de ‘reforma da reforma’, a um só tempo, mediada (as relações mercantis não serão extintas por decreto) e consensual (dentro do campo partidário democrático-popular e dentro do Estado em diálogo com a ‘multidão’).

Contra o capital financeiro, esse bloco histórico deve convencer a sociedade quanto à superioridade do sistema universal de saúde no plano civilizatório, sem perder de vista a renegociação da dívida interna (redução dos encargos financeiros), a reforma tributária (progressiva), a reforma da mídia (democrática) e a reforma eleitoral (constituinte exclusiva e soberana do sistema político).

A realização dessa tarefa extraordinária tem um ponto de apoio importante na cultura socialista: o debate em torno da transição passa pela aplicação de certo capitalismo de Estado, que valorize a solidariedade entre as nações, a função social da propriedade, o planejamento e o mercado interno, desprivatizando o fundo público e incorporando a sociedade civil no processo decisório governamental.

Afinal de contas, o SUS é parte integrante de um novo modelo de desenvolvimento social na América Latina e sua implantação seguirá pari passu à redução da pobreza, da desigualdade, da violência social e dos baixos níveis educacionais e culturais no Brasil.

*  Carlos Octávio Ocké-Reis é Técnico de Planejamento e Pesquisa da Diretoria de Estudos e Políticas do Estado, das Instituições e da Democracia do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (DIEST/IPEA).

 

Portal Cebes, 09/04/2014