Como você percebe a saúde? Essa foi a pergunta norteadora da pesquisaInterdisciplinaridade e intersetorialidade na construção do conhecimento em saúde em escolas públicas do território de Manguinhos, no RJ, coordenada pela pesquisadora do Departamento de Saneamento e Saúde Ambiental da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz) Marta Velloso. A metodologia, desenvolvida em 2011, foi adaptada, ajustada e replicada em 2014 em uma escola de ensino fundamental localizada no Complexo de Manguinhos, por meio de uma parceria com o Teias-Escola Manguinhos e o financiamento da Fundação para o Desenvolvimento Científico e Tecnológico em Saúde (Fiotec). A pesquisa-ação foi dividida em duas etapas e contou com uma série de encontros. No primeiro momento, os alunos demonstraram uma visão assistencialista e higienista sobre a saúde. Na segunda fase, quando participaram de uma oficina de audiovisual em saúde coletiva e discutiram o tema com diversos profissionais, expressaram uma visão crítica da realidade que vivem e demonstraram ampliação de seu conhecimento sobre saúde.

O que a escola faz para melhorar a saúde dos alunos? O que ela poderia fazer para tanto? Orientados por estas duas perguntas os alunos apontaram aspectos positivos e negativos, que, com a análise dos dados das redações, foram distribuídos em três categorias: visão higienista, visão assistencialista, e bem-estar.

Na visão higienista, explicou Marta, os aspectos negativos foram identificados como condições físicas e sanitárias inadequadas no ambiente escolar: temperatura, alimentação, falta de higiene, barulho, água poluída e lixo. Quanto aos aspectos positivos, os alunos mencionaram a presença de uma enfermaria na escola, a distribuição de kits odontológicos e palestras sobre doenças transmissíveis.

Os aspectos positivos da visão assistencialista foram associados a melhoria das condições físicas e sanitárias, que atendem às necessidades de higiene e segurança: ar condicionado ou ventiladores nas salas de aula, bebedouros, alimentação saudável, e higiene nos banheiros, nas salas e no refeitório. Os aspectos negativos dessa categoria foram a falta de medicamentos e de assistência médica; falta de investimento do governo solicitando mais médicos e hospitais; unidade de pronto atendimento próxima à escola; medicamentos; e profissionais de saúde como psicólogos, nutricionistas e dentistas.

A terceira e última categoria analisada, que diz respeito ao bem-estar, apontou como aspectos negativos a falta de acesso às atividades culturais e exercícios físicos. O ponto positivo foi associado ao estado de bem-estar no cotidiano.

O objetivo deste estudo foi subsidiar o processo de construção do conhecimento entre alunos do ensino fundamental com a participação de professores, famílias e líderes comunitários, articulando diferentes disciplinas e, instituições, como a Secretária de Educação, de Saúde, a escola pública, universidades e a Fiocruz. Marta explicou que, para a construção da pesquisa, os espaços institucionais – inclusive as escolas – foram analisados como componentes da interação saúde e ambiente, que constitui um complexo de possibilidades de intervenção e de produção do conhecimento.

A pesquisa teve como um pano de fundo determinante o território de Manguinhos. Ele, atualmente, apresenta o quinto pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da cidade do Rio de Janeiro. Segundo o cadastro realizado pelas Equipes de Saúde da Família, vivem no complexo mais de 13 mil famílias que somam cerca de 37 mil pessoas. O território possui 14 unidades escolares com cerca de três mil alunos. “Portanto é necessário potencializar a visibilidade do Programa de Saúde na Escola (PSE) e refletir sobre os determinantes sociais e de saúde nesta localidade.

Os encontros e a inserção no tema da saúde

Marta contou que foram realizados diversos encontros com os alunos e também dinâmicas de grupo e entrevistas com professores, pais de alunos e líderes comunitários. “Todos os dados coletados foram analisados e categorizados por meio da técnica de análise de conteúdo e encaminhados como propostas sugeridas pelos alunos para discussão no conselho político pedagógico da escola, com o intuito de fomentar o processo de transformação da realidade em que estão inseridos”, disse ela.

“Inicialmente um grupo de oito alunos se mostrou interessado em participar das atividades e debates que eram realizados semanalmente. Com o decorrer da pesquisa, outros alunos se integraram ao grupo que participou da Oficina de Audiovisual em Saúde Coletiva. Ao longo dos meses foram realizados diversos encontros e os alunos foram despertados a refletirem sobre a saúde e os fatores objetivos e subjetivos que podem interferir na saúde individual e coletiva”, complementou a pesquisadora.

Durante os encontros, os alunos foram incentivados a produzir um olhar crítico sobre a escola e seu entorno. Para tanto, foram apresentados a três tipos diferentes de câmeras utilizadas pelo mercado de trabalho. “Com o auxílio de um profissional da área Maria Luiza Lastres, eles aprenderam a operar as câmeras e, de posse do equipamento e com conhecimentos básicos de operação, os alunos realizaram entrevistas com os colegas e registraram, dentro da escola, o que na percepção deles se relacionava à saúde. Da mesma forma, eles também foram estimulados a fazer registros fora do espaço escolar com seus celulares e câmeras pessoais para que produzissem uma visão crítica também da comunidade e do ambiente onde vivem”, contou Marta, relatando ainda que, a partir daí eles começaram a filmar e fotografar coisas do cotidiano e a expressarem, mesmo que de forma inibida, seus sentimentos.

Segundo ela, eles começam a perceber a doença como um processo associado à interação de vários e diferentes fatores, presentes tanto no ambiente físico da comunidade como àqueles veiculados às emoções. Paralelamente à oficina de audiovisual, foram realizadas dinâmicas em grupo e entrevistas com diretoras e professores da escola, que abordaram questões de saúde de naturezas diversas.

Um aspecto ressaltado por todos os participantes da pesquisa – alunos, pais, diretores, professores, líderes comunitários, entre outros -, é que a violência gerada pelo confronto dos policiais das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) com a comunidade é um grave fator de risco à saúde dos moradores como um todo. Outro grave fator de risco para a saúde e a educação dos adolescentes percebido durante as entrevistas foi a ausência da família, dos pais ou responsáveis.

Durante o desenvolvimento do estudo, relatou Marta, foi percebido um processo de construção do conhecimento em saúde entre os alunos. “Isso foi muito satisfatório para nós. A princípio, os alunos apresentavam uma visão restrita, muito higienista e assistencialista sobre a saúde. Com o tempo, os encontros e as discussões propostas no projeto eles ampliaram a visão – do ambiente escolar ao ambiente da comunidade”, disse ela.

Na segunda etapa de análise, foram utilizados os dados de registrados durante as atividades na oficina com alunos (entrevistas, debates, fotografias, desenhos e filmagens) assim como os obtidos nas entrevistas e dinâmicas em grupo com professores e líderes comunitários. Estes, foram analisados no seu conteúdo e nomeados, segundo os fatores de risco à saúde, em cinco categorias: Aspecto físico e emocional, Desamparo, Aspecto sanitário e ambiental do entorno da escola, Violência, e Políticas públicas e cidadania.

A categoria sobre aspectos físicos e emocionais apresentou o maior índice nas falas entre os alunos. Eles identificam o barulho excessivo na escola durante as aulas e na comunidade como um fato que prejudica o aprendizado. “A música e os ruídos intensos prejudicam o sono e o aprendizado, que por sua vez, também é dificultado pela falta de concentração nas aulas. Gravidez, ausência de lazer e de atividades físicas na comunidade também aparecem entre os fatores. Para os alunos, a categoria Desamparo representa o sofrimento causado pela ausência de apoio e de afeto da família, que se encontra desestruturada e sem capacidade de orientar seus filhos. Além do descaso da sociedade pelas condições de vida precárias na comunidade.

Sobre os Aspectos Sanitários e Ambientais, a pesquisa aponta a grande quantidade de lixo na comunidade como a pior característica. “Os alunos jogam lixo no chão das salas e nos corredores. Os objetos desprezados são jogados no rio que fica no entorno das residências, causando aparência de abandono e de sujeira no local onde vivem. No entanto, simultaneamente, focalizam a falta de recipientes armazenadores de lixo e a problemas na frequência na coleta de resíduos no território”, destacou Marta.

A categoria Violência ocupa o quarto lugar na percepção dos alunos. “Vale ressaltar”, falou Marta, “que, durante a oficina, o processo de pacificação da comunidade foi questionado diversas vezes e a percepção foi unânime. Para eles, a violência permanece a mesma, semelhante àquela ocasionada pelo tráfico de drogas. Os participantes também identificam a violência contra a mulher, tanto sexual como moral”.

A quinta e última categoria estabelecida – Políticas Públicas e Cidadania -, está diretamente associada à inadequação do ambiente escolar e do seu entorno. Marta explicou que os jovens, revoltados com a qualidade de vida carente, costumam depredar bens públicos na escola e na comunidade onde vivem. Contudo, identificam fatores positivos importantes para transformar a sociedade. Eles percebem que é preciso a união entre eles, para reivindicarem possíveis mudanças objetivas e subjetivas na sociedade”. Outro fator enfatizado é a busca pela profissionalização.

A pesquisa Interdisciplinaridade e intersetorialidade na construção do conhecimento em saúde em escolas públicas, na qual foi elaborada a metodologia aplicada em Manguinhos, foi desenvolvida em 2011 com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), e teve como desdobramento a publicação do livro Interdisciplinaridade na construção do conhecimento em saúde: uma experiência em escola pública. Já os resultados do estudo feito no território de Manguinhos foram publicados no artigo Construindo conhecimento em saúde nas escolas públicas, que integra o livro de Atasdo I Congresso da Associação Internacional de Ciências Sociais e Humanas em Língua Portuguesa, publicado no início de 2015. O artigo está disponível para acesso livre e pode ser conferido na íntegra na página 957.

Este projeto ainda prevê outros desdobramentos. A intenção, segundo Marta, foi trabalhar com uma escola piloto para depois reproduzir a metodologia em rede nas escolas públicas do território de Manguinhos. “A meta é que o projeto seja referência para o desenvolvimento de novas tecnologias sociais, incorporando a participação de não-especialistas, que são os atores sociais das situações problematizadas, como alunos moradores da comunidade, neste caso, a fim de tornar o espaço escolar menos estressor, promovendo um ambiente apropriado ao desenvolvimento da criatividade. E ainda articular os diferentes saberes que se encontram dispersos em várias disciplinas e religando-as em sua complexidade na construção do conhecimento em saúde”, detalhou ela.

Portal Fiocruz, 10/07/2015