Até 2030, o planeta Terra enfrentará um déficit de 40% no abastecimento de água. A previsão da Organização das Nações Unidas (ONU) alerta para a dimensão dos desafios a serem enfrentados pelos 193 países signatários da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, que propõe como uma de suas metas o acesso universal e equitativo a água potável e segura para todos. O Brasil não escapa desta realidade e, de acordo com pesquisa da Confederação Nacional das Indústrias (CNI), só universalizará o acesso à água potável em 2043 – o que coloca o país bem longe do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável nº 6 (ODS 6): “assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todas e todos”. O tema esteve em debate durante o seminário “Saúde, Ambiente e Desenvolvimento Sustentável”, promovido pela rede Brasil Saúde Amanhã, em setembro, na Fiocruz.

Assista à síntese do painel “Saúde, Ambiente e Sustentabilidade”

 

 

“Do ponto de vista da Saúde Coletiva, não podemos falar em desastres ambientais sem tratar da questão das cidades ou sem considerar o desafio do abastecimento de água. Para construir um outro futuro possível, é preciso identificar cenários viáveis que respeitem princípios fundamentais como a sustentabilidade, a equidade e a proteção social”, sintetizou o pesquisador Carlos Machado, coordenador do Centro de Estudos e Pesquisas em Emergências e Desastres em Saúde da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), durante o painel “Saúde, Ambiente e Sustentabilidade”. Moderado por Ricardo Dantas, pesquisador do Laboratório de Informação em Saúde do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz), o debate também contou com a participação dos pesquisadores André Monteiro, da Fiocruz Pernambuco, e Luiz César Ribeiro, do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

 

Eficiência em xeque

 

Para André Monteiro, que discorreu sobre o tema “Saúde, Água e Saneamento”, o caminho para o ODS 6 é o planejamento de longo prazo. Diante do compromisso assumido pelo Brasil em assegurar a disponibilidade e a gestão da água e do saneamento para todos até 2030, o pesquisador analisou as políticas públicas do setor e chamou atenção para a iniquidade na distribuição e no uso da água. “A ineficiência na gestão da água leva ao desperdício de 40% deste recurso indispensável à vida – percentual que chega a 70% em cidades do Nordeste, como Jaboatão dos Guararapes, em Pernambuco”, exemplificou.

 

O pesquisador também criticou a privatização de aquíferos e companhias estaduais de saneamento. “O problema é ainda mais grave no contexto de gestão precária e de baixa cobertura no qual se inserem muitos dos estados brasileiros, uma vez que uma das características do processo de privatização é melhorar apenas a manutenção e a distribuição de água, para minorar custos e aumentar o lucro”, alertou Monteiro, que citou o caso de Pernambuco, onde cinco anos após a concessão do serviço de esgotamento sanitário à iniciativa privada sequer um metro da rede de esgoto fora instalado. “No caso da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), a abertura de capital da empresa na bolsa de Nova York fez com que fossem minimizados os investimentos em manutenção e operação e, também, em ampliação do acúmulo de água, levando ao colapso do abastecimento. Apenas o regime pluviométrico não explicaria o fenômeno”, complementou.

 

Desafios inéditos

 

Ao problematizar as relações entre mudanças climáticas, desastres ambientais e saúde, Carlos Machado chamou atenção para o ineditismo das transformações pelas quais o clima do planeta vem passando. Segundo o pesquisador, nos últimos 60 anos, as sociedades mudaram os ecossistemas em que estão inseridas mais rápida e extensivamente que em qualquer outro período da História. “A variabilidade climática sempre existiu. Mas estamos diante de cenários futuros nos quais esta variação será potencialmente muito maior que tudo o que nós já conhecemos. E estamos pouco preparados. Não temos memória histórica para enfrentar essa situação”, afirmou. Nesse sentido, alertou que é cada vez mais provável a ocorrência de alterações abruptas na qualidade da água, de colapso na produção de alimentos, de mudanças irreversíveis no clima regional e global e de desastres de origem hidrológica, meteorológica e climatológica, além do surgimento e do reaparecimento de doenças.

 

Machado lembrou que, embora o fenômeno das mudanças climáticas ocorra em escala global, seus impactos são sentidos de forma desigual pelas populações – e de forma muito mais severa pelos mais vulneráveis. Para defender esta tese, o pesquisador apresentou uma análise da vulnerabilidade dos municípios brasileiros a eventos como deslizamentos e enchentes e ressaltou que, se por um lado, as cidades maiores estão mais propensas a serem atingidas por esses desastres, as de menor porte têm menos capacidade de resposta, o que pode amplificar riscos.

 

“Embora possam envolver processos da natureza, os desastres ambientais não podem ser classificados como ‘naturais’, pois não se realizam sem condições de vulnerabilidade social ou sem capacidade de resposta do Estado – e isso inclui o setor Saúde. Quanto menos a Saúde estiver preparada para lidar com esses desafios, maior será o risco de doenças e agravos provocados por desastres ambientais”, avaliou.

 

O direito à cidade

 

O tema “Cidades inclusivas e sustentáveis?” encerrou o painel, com reflexão de Luiz César Ribeiro, coordenador do Observatório das Metrópoles, Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) formado por 159 pesquisadores de todo o país. O urbanista apresentou propostas para uma nova agenda urbana, na direção do desenvolvimento sustentável, com assentamentos humanos justos, seguros, saudáveis, acessíveis, resilientes e sustentáveis. Em outras palavras, cidades para todos, com igualdade de oportunidades. Em contraposição a essa “cidade do bem-estar”, com regulação social, sistemas de proteção social e planejamento urbano redistributivo, Ribeiro destacou a “cidade do capital especulativo”, marcada pela financeirização e a mercantilização, para onde caminham os centros urbanos brasileiros, de acordo com o pesquisador.

“O título interrogativo de minha exposição nos convida refletir sobre o que está acontecendo e o que poderá ocorrer daqui para frente nas cidades brasileiras. Em nosso grupo de pesquisa, a leitura que fazemos sobre a inflexão ultraliberal e conservadora e sobre a hegemonia financeira que estamos vivendo é que o Brasil está atrelado, talvez definitivamente, a uma lógica capitalista cada vez mais financeirizada e rentista, que coloca um modelo de desenvolvimento bastante regressivo para o país. Essa tendência já se apresenta claramente na ordem urbana das metrópoles brasileiras e se acentuará nos próximos anos, caso o país siga na mesma direção”, concluiu Ribeiro.

 

Natanael Damasceno
Saúde Amanhã
09/10/2017