O chamado “rombo da Previdência”, justificativa do governo federal para lançar a Proposta de Emenda Constitucional 287 (PEC) não passa de “fetiche” na opinião da socióloga Maria Lúcia Teixeira Werneck Vianna, que participou do seminário sobre a Reforma da Previdência Social realizado pelo Sindicato dos Bancários, em Campinas, há um mês. Para a professora associada da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), a seguridade social no Brasil “foi progressivamente desmontada desde 1990. É nesse desmonte que se encontra o fetiche do ‘rombo da previdência’”. Segundo a professora Maria Lúcia, a seguridade social é superavitária. Em 2015, apresentou saldo positivo de R$ 24 bilhões. Mas o governo federal fala em deficit. Inclusive anunciou recentemente que em 2016 o deficit atingiu R$ 149,7 bilhões. Entre outras omissões, esclarece Maria Lúcia, o governo federal “só computa os valores de contribuições de empregados e empregadores”.

Para Denise Lobato Gentil, professora do Instituto de Economia da UFRJ, a PEC 287 atende quatro grupos sociais: bancos, proprietários de títulos públicos, burocratas e bancadas no Congresso. E mais: a reforma proposta pelo governo federal é pura “demolição da Previdência”, visa excluir trabalhadores. “A reforma vem para obrigar o trabalhador a contratar previdência privada”.

Em tramitação no Congresso Nacional desde o início de dezembro do ano passado, a PEC nº 287 altera várias regras referentes aos benefícios dos trabalhadores dos setores privado e público. Entre as mudanças, propõe extinguir a aposentadoria por tempo de contribuição; estabelecer uma idade mínima única para aposentadoria (aos 65 anos) para praticamente todo o conjunto dos trabalhadores (urbanos e rurais; do setor público e do privado; professores; homens e mulheres); mudança no cálculo e redução do valor dos benefícios previdenciários em geral.

A professora Maria Lúcia Teixeira Werneck Vianna coloca algumas questões para uma reflexão sobre a PEC 287:

A PEC 287, que começa a ser debatida no Congresso Nacional, expressa claramente o que vem sendo chamado de “narrativa da pós-verdade”, característica também do que os acólitos do presidente Trump designam como “fatos alternativos”. A proposta governamental se fundamenta em supostos altamente discutíveis e controversos, que longe de esclarecer a população, a confunde, funcionando como marketing de um caos que certamente não acontecerá.

Alguns dos elementos falaciosos que embasam o discurso oficial:

1. A expressão “a reforma da previdência”, que frequenta com assiduidade a mídia escrita e televisiva é uma expressão mistificadora. Não existe uma única possibilidade de reforma e sim várias. Pode-se pensar em reformas que visem ampliar a cobertura previdenciária, em reformas que reduzam as desigualdades de acesso aos benefícios, assim como pode-se propor, como é o caso em pauta, de reformas que excluam os segmentos mais vulneráveis da proteção previdenciária.

2. A previdência social não é, como também vem sendo alardeado pela grande imprensa e pelo governo, matéria técnica, meramente atuarial, de finanças públicas. Desde que foi introduzido na Europa, em fins do século XIX, o seguro social se configurou como uma modalidade de contrato radicalmente distinta do seguro privado por várias razões, entre as quais se destacam a obrigatoriedade de filiação dos trabalhadores, bem como das contribuições de empregados e empregadores, e a natureza política das decisões que o envolvem.

3. No Brasil, a Constituição de 1988, num movimento tardio em relação aos países desenvolvidos, estabeleceu, em substituição à proteção previdenciária stricto sensu, um sistema de seguridade social, nos moldes daqueles existentes nos ditos países desenvolvidos. Sistema esse que, incorporado à Declaração de Direitos Humanos da ONU, em 1948, expande benefícios, desvinculando-os, em parte, das contribuições que caracterizam o seguro social. A Constituição estabeleceu, também, um leque diversificado de receitas para fazer face às responsabilidades da sociedade e dos poderes públicos, de oferecer proteção, em caráter universal, a todos os brasileiros.

4. A seguridade social no Brasil, no entanto, embora mantida no texto da Lei Maior, foi progressivamente desmontada desde 1990. É nesse desmonte, acrescido de mecanismos redutores das receitas da seguridade, que se encontra o fetiche do “rombo da previdência”. Pois em 2015 a seguridade apresentou saldo positivo de 24 bilhões de reais (todas as receitas constitucionalmente estabelecidas para a seguridade menos todas as despesas de seguridade que incluem despesas previdenciárias, com saúde e com assistência social), um superavit inferior ao de 2014 (R$ 53,8 bilhões) mas, mesmo assim, expressivo.

5. Quando o governo apresenta o deficit da previdência incorre nas seguintes omissões: a) só computa os valores de contribuições de empregados e empregadores, deixando de mencionar a existência das demais receitas estabelecidas pela Constituição (Cofins, Contribuição sobre o Lucro Líquido das Empresas); b) não faz referência ao montante retirado da seguridade pela DRU (Desvinculação das Receitas da União), que atingiu, em 2014, 63 bilhões de reais; c) desconsidera as desonerações de impostos, contribuições sociais e folha de pagamentos das empresas, que operam como redutores das receitas da seguridade em geral e da previdência em particular; d) faz tábula rasa da distinção entre o Regime Geral da Previdência Social, que é universal ainda que atenda fundamentalmente aos trabalhadores da iniciativa privada, e os chamados Regimes Próprios, que contemplam servidores públicos, civis e militares, da União, estados e municípios.

6. Finalmente, outra falácia que sustenta o discurso oficial (com a ressalva de não encerrar a lista de elementos falaciosos presentes na narrativa do governo), é a de que existe uma unanimidade internacional no que diz respeito às tendências reformistas no campo da previdência social. As estratégias de enfrentamento dos problemas que direta ou indiretamente incidem sobre os sistemas de proteção social (problemas demográficos, orçamentários, decorrentes das mudanças no mercado de trabalho, etc.) são variadas. E, sobretudo, não são apresentadas como alternativas a uma situação imediata e aterrorizante de caos. Ao contrário, entram na agenda de debates amplos e abrangentes, resultando em medidas a serem tomadas gradativamente ao longo de muitos anos.

 

Fonte: Abrasco