“A gestão deve ser uma prioridade para os Serviços de Saúde”. A afirmação é do médico Walter Mendes, pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz) e colaborador da rede Brasil Saúde Amanhã. Nesta entrevista, ele apresenta os resultados da pesquisa sobre investimentos sustentáveis para a expansão e reorganização da oferta de serviços de saúde, que integra a prospecção estratégica do sistema de saúde brasileiro. O estudo, coordenado por Walter, contou com a colaboração das pesquisadoras Luisa Regina Pessôa, Ildary Machado e Mariana Teresa Siciliano. Em relação às medidas necessárias para efetivar a universalidade e a equidade do Sistema Único de Saúde (SUS), Walter é categórico: “É necessário ter recursos disponíveis e, além disso, é preciso uma gestão profissional. Enquanto não tivermos a profissionalização da gestão, protegida das indicações político-partidárias e de eleições de diretores de hospitais, não acredito que conseguiremos aplicar todo o conhecimento que estamos levantando e disponibilizando”.
A rede Brasil Saúde Amanhã integra diferentes áreas do conhecimento, como Epidemiologia, Geografia e Economia, dentre outras, para investigar o futuro do sistema de saúde brasileiro. Qual a relevância desta abordagem interdisciplinar?
A interdisciplinaridade é indispensável para o planejamento da Saúde, sobretudo para que possamos ter uma perspectiva para o futuro. Essa abordagem é importante não só para atender as demandas de saúde da população de forma integral, mas é fundamental também para organizar os serviços e as redes de atenção de maneira adequada e eficaz. Resultados positivos são fruto de planejamento realizado com antecedência e, por isso, o esforço da rede Brasil Saúde Amanhã em prospectar os cenários para a Saúde nas próximas duas décadas é tão valioso.
Em nosso grupo de pesquisa eu sou o único médico, as demais componentes da equipe são arquitetas: Luisa com doutorado em Saúde Pública e Ildary e Tereza com especialização em Gestão de Recursos Físicos e Tecnológicos em Saúde. Com esse enfoque multidisciplinar, avaliamos quais seriam os investimentos sustentáveis para a expansão e reorganização da oferta de serviços de saúde no país, no horizonte dos próximos 20 anos. Reforçamos a ideia de que um hospital é necessariamente um recurso caro e, por isso, é preciso avaliar bem antes de construir um. Muitos gestores investem na construção de hospitais e depois não têm condições para sustentá-los. Municípios de pequeno porte não têm condições de contratar médicos com a especialidade necessária e sofrem com a incapacidade de comprar materiais e medicamentos de ponta. Recomendamos que hospitais que oferecem procedimentos de média e de alta complexidade tenham, no mínimo, cem leitos e sabemos que isto não é realidade em nosso país – o que aumenta os riscos para a segurança do paciente. É necessário ter expertise, infraestrutura e investimento permanente para manter estabelecimentos como esses. Por isso, o planejamento e a sustentabilidade são as questões mais importantes por trás desse tipo de investimento.
Quais as metodologias utilizadas para projetar os investimentos necessários para reorganizar e ampliar as ofertas de média e alta complexidade no país, em médio e longo prazo?
Trabalhamos primeiramente com uma base documental, a partir de muita leitura e da análise de portarias e de outros mecanismos legais. Depois, realizamos uma análise de mercado para precificar e levantar custos relacionados à atenção de média e alta complexidade. Além disso, visitamos hospitais que ofertam procedimentos de alta complexidade e entrevistamos os profissionais de saúde que os executam, a fim de nos atualizarmos em relação aos equipamentos atualmente disponíveis e à necessidade de recursos físicos para a realização desses atendimentos. Por fim, definimos o porte e a infraestrutura mínima para o funcionamento dos hospitais de média e de alta complexidade.
Nosso ponto de partida foi a prospecção estratégica de procedimentos de média e alta complexidade. Um desafio, neste sentido, é que tais procedimentos não são bem definidos: um procedimento que hoje é de alta complexidade amanhã pode tornar-se de média complexidade e vice-versa. Em relação à média complexidade, partimos de uma premissa descrita na literatura internacional que indica que um hospital deve ter, no mínimo, cem leitos. Consideramos, também, que para um estabelecimento poder oferecer todos os requisitos no módulo da média complexidade são necessárias determinadas instalações. E a partir deste mapeamento organizamos os recursos físicos necessários para tal, com o cuidado de compatibilizar tudo isso com a legislação vigente. Na abordagem da alta complexidade também trabalhamos a partir de módulos e priorizamos cirurgias oncológicas, ortopédicas e procedimentos cardiovasculares, como a angioplastia. Depois desta rodada de definições, os módulos de média e de alta complexidade foram precificados, para que no futuro seja possível avaliar com precisão o investimento necessário em recursos físicos. Assim, o gestor que atua nesses níveis de atenção poderá se planejar melhor para oferecer esses serviços com toda infraestrutura necessária.
A pesquisa sobre Recursos Físicos em Saúde, que subsidia o estudo, aponta que as demandas relacionadas à média complexidade são atendidas pelo setor privado e a atenção básica pelo setor público. Quais os desafios impostos por este quadro?
Muitos dos entraves para a atenção primária surgem pelo fato de a média complexidade estar concentrada no setor privado. Políticas de regulação são fundamentais, mas outros aspectos são igualmente importantes. É preciso efetivar a regionalização e garantir uma rede de atenção eficaz e bem organizada para que os municípios de pequeno porte não sigam construindo hospitais e possam investir em atenção primária e se articular para usufruir dos serviços de saúde de média e alta complexidade nos polos destinados a este tipo de atenção. Esses desafios, que tangem a organização do sistema, estão presentes desde a criação do SUS.
Carecemos, hoje, da rediscussão de um conjunto de medidas que possam dar conta dessa situação. Isso significa conscientizar os pequenos municípios para que não continuem investindo em hospitais de pequeno porte, sorvedouros de grandes recursos e sem nenhuma efetividade, que desorganizam a oferta de serviços da região. Precisamos regular não só o setor privado, mas o gasto que muitas prefeituras de municípios menores fazem, sem nenhum resultado. Do meu ponto de vista, o financiamento setorial é uma questão central. Entretanto, não adianta financiar o serviço público com uma gestão perdulária, não profissionalizada. Isso significa colocar recursos na Saúde sem efetividade neste gasto. Chamamos atenção para o fato de que, para termos um sistema de saúde universal, ele precisa ser gerido por pessoas que tenham capacidade de gestão. Sem dúvida, a gestão deve ser uma prioridade para a Saúde.
O que pode ser feito no presente para que no horizonte dos próximos 20 anos a atenção de média e alta complexidade possa atender aos princípios da universalidade e equidade do SUS?
Nosso estudo alerta que hoje temos precificado e organizado questões relacionadas somente aos procedimentos. Porém, todos eles precisam de uma rede de atenção bem organizada. Um procedimento cirúrgico para um transplante renal, por exemplo, não traz uma complexidade, em si, tão alta. No entanto, além de um centro cirúrgico bem montado, existe a necessidade da atuação de diversos especialistas e da integração com a rede de atenção primária e com a rede de hemodiálise. Para o investimento nesses procedimentos, portanto, é preciso levar em conta toda a estrutura e organização da rede de atenção à saúde. Essas são as dificuldades de planejar a abordagem da alta complexidade. Muitos desses procedimentos só podem ser realizados nas capitais, porque não há médicos e enfermeiros com formação adequada em todos os municípios brasileiros. Então, essa concentração em determinados polos de atendimento é necessária. E as regiões de saúde precisam trabalhar em conjunto com as capitais e os municípios-polo para enfrentar a limitação de recursos humanos e físicos.
A pesquisa, então, nos dá condições para planejar o longo prazo. Porém, precisamos de recursos financeiros para colocar em prática este planejamento. E estamos vivendo um momento econômico difícil, de retração orçamentária, que não traz uma boa perspectiva para os setores sociais, dentre eles a Saúde. É necessário ter recursos disponíveis e, além disso, é preciso uma gestão profissional. O que observamos atualmente nos hospitais brasileiros são gestões amadoras, que não conseguem compreender e se beneficiar de iniciativas inovadoras, como a rede Brasil Saúde Amanhã. Muitas vezes, os gestores de Saúde trabalham com uma visão imediatista e a imensa maioria dos dirigentes não conhece bem o funcionamento de um hospital. Enquanto não tivermos a profissionalização da gestão, protegida das indicações político-partidárias e de eleições de diretores de hospitais, não acredito que conseguiremos aplicar todo o conhecimento que estamos levantando e disponibilizando.
Bel Levy
Saúde Amanhã
10/08/2015