Como as inovações em saúde vêm sendo incorporadas pelo país? Em médio e longo prazo, quais serão os seus impactos sobre o Sistema Único de Saúde (SUS)? Essas são as questões levantadas pelas pesquisadoras Laís Silveira Costa e Ligia Bahia, colaboradoras da rede Brasil Saúde Amanhã e autoras do capítulo “Geração e Trajetórias de Inovação nos Serviços de Saúde”, que compõe o volume “Brasil Saúde Amanhã: Complexo Econômico e Industrial da Saúde”, a ser lançado no segundo semestre de 2015. Nesta entrevista, Laís Silveira Costa, que é integrante do Grupo de Pesquisa de Inovação em Saúde da Fiocruz, analisa as tendências do campo da inovação em saúde no horizonte dos próximos 20 anos. E recomenda: é preciso investir no desenvolvimento de uma base industrial nacional forte, que atenda às necessidades de saúde da população brasileira.

A rede Brasil Saúde Amanhã é uma iniciativa para a prospecção estratégica do futuro da Saúde no Brasil. Do ponto de vista da inovação em serviços de saúde, qual a importância deste tipo de abordagem científica?

Esta iniciativa é particularmente interessante do ponto de vista da inovação dos serviços de saúde, campo ainda pouco estudado no Brasil. O adensamento do conhecimento sobre o tema nos permitirá desenvolver métodos para observar como as inovações estão sendo incorporadas no sistema de saúde e quais as tendências e impactos sobre as diretrizes do SUS. Temos advogado há algum tempo sobre a importância de uma abordagem integrada, que reconheça as dimensões sociais e econômicas da Saúde. Tal abordagem favorece a superação de uma análise apolítica quando se fala de inovação em saúde. Inovações não são neutras; a escolha de uma trajetória e sua adesão e difusão determinam uma série de movimentos na estrutura de prestação de serviços. Em um país grande e desigual como o nosso, com um sistema de saúde universal, importa muito saber se as tecnologias incorporadas se colocam à disposição de todos ou de grupos restritos, ou seja, se reproduzem as desigualdades ainda observadas no sistema ou se ajudam a superá-las.

O estudo da dinâmica de inovação dos serviços de saúde gerou resultados preocupantes, ainda que não surpreendentes. Observamos o crescente movimento de polarização entre um conjunto mais dinâmico de hospitais (que ou incorporam tecnologias ou estabelecem escalas de produção mais sustentáveis economicamente) e os demais estabelecimentos de saúde. Esta concentração das especializações e tecnologias em pequeno número de estabelecimentos tem reduzido a disponibilidade de recursos físicos especializados para o SUS, como leitos e leitos de terapia intensiva. Assim, nosso estudo permitiu observar uma polarização, atualmente em curso, entre a área pública e a privada. Isto representa um importante desafio para a formulação de políticas sobre inovação e difusão de tecnologias nos serviços de saúde, porque os circuitos dos processos de decisão relacionados com a inovação encontram-se, possivelmente, relacionados a espaços e lógicas assistenciais não necessariamente voltados para o atendimento da saúde coletiva. É esta lógica que vem influenciando mudanças na base produtiva e a ampliação do acesso e do uso dos serviços de saúde.

Quais os desafios para o alinhamento do Complexo Econômico e Industrial da Saúde a um projeto de desenvolvimento social do país, no horizonte dos próximos 20 anos?

Os desafios são inúmeros. Há desde questões estruturais, referentes às desigualdades sociais e regionais do Brasil, até a fragilidade do pacto federativo; as diferentes capacidades dos diversos entes federados, tanto no que se refere à fonte de financiamento quanto à gestão; o insulamento dos fóruns participativos de decisão; a pouca efetividade da atuação do Estado; a falta de isonomia tributária; uma fonte de financiamento da Saúde incompatível com um sistema universal; a necessidade de fortalecer a política de incorporação tecnológica; e os empecilhos atrelados à composição do financiamento do sistema de saúde nacional. E, além disso, precisamos enfrentar a defasagem da base produtiva e de inovação da Saúde e a tradicional falta de convergência entre inovação e políticas sociais no Brasil – uma característica do país que se reproduz na Saúde. Além disso, o alinhamento do Complexo Econômico e Industrial da Saúde à agenda de desenvolvimento social do país demandaria, em longo prazo, a redução da dependência científica de tecnologias e a superação de fatores como a baixa taxa de conversão de conhecimento em inovação, a fragilidade do sistema educacional, as assimetrias no acesso à saúde e as desigualdades da oferta e da demanda de serviços para a população.

É importante reconhecer que os desafios relacionados aos segmentos industriais e de serviços de saúde reproduzem aqueles decorrentes da estrutura de nosso Estado Nacional. A indústria nacional – não somente a da Saúde – é pouco competitiva, não é inovadora. Isto configura uma marcante desvantagem do Brasil na arena de poder estabelecida pela economia crescentemente globalizada. A divisão internacional do trabalho é assimétrica e a distância do nosso país da fronteira do conhecimento nos leva a uma posição subordinada, ameaçando nossa autonomia e soberania. No contexto global, a estrutura industrial da Saúde é altamente concentrada e as inovações tecnológicas pertencem a grandes e poucas empresas e países. Por isso, atualmente a maior parte do esforço de pesquisa orienta-se pela necessidade da menor parcela da população. Daí a posição desfavorável de países menos desenvolvidos, em função da ausência de insumos que sejam específicos para as necessidades de saúde de sua população. Por isso o esforço científico interno de cada país é tão fundamental para alinhar o desenvolvimento da indústria às necessidades da população. Tais questões reforçam a percepção de que a autonomia nos segmentos produtivos da Saúde relaciona-se com a soberania da política social, dentre outras vertentes do desenvolvimento nacional.

Como o desenvolvimento de uma indústria nacional para a Saúde poderá impactar, em médio e longo prazo, a consolidação do SUS conforme previsto na Constituição Federal?

A Constituição Federal de 1988 consolida no Brasil a saúde como um direito de todos; um dever do Estado. No entanto, a promulgação da Carta Constitucional não é suficiente para tornar efetivo o acesso universal ao SUS. A efetivação do princípio da universalidade depende, também, de determinadas condições políticas e econômicas, apresentadas e discutidas na 8ª Conferência Nacional de Saúde, quando se ressaltou a necessidade de a política de Saúde estar integrada às demais políticas econômicas e sociais do país. Na ocasião mencionou-se, ainda, a importância da autonomia na produção de insumos, reconhecendo, desta forma, que a efetivação da saúde como um direito fundamental exige o esforço estratégico em diversas áreas. Sobretudo porque a inexistência de determinados produtos, bens e serviços, além de limitantes de ordem financeira, geográfica, social ou de gestão, impedem o acesso da população a eles.

Uma política voltada para fortalecer a capacidade da produção e inovação em Saúde, se orientada pelas condições de saúde e doença de nossa população, uma vez bem-sucedida garantiria os insumos necessários para as ações de atenção, promoção e prevenção à saúde. Por outro lado, considerando as atuais condições de saúde e doença da população, percebemos que a concentração das atividades de Pesquisa e Desenvolvimento em poucos países e empresas globais tem levado a um crescente processo de negligência às parcelas mais vulneráveis da população. Essa dinâmica precisa mudar e por isso é importante estudar as tendências para o futuro.

De toda forma, vale ressaltar que este é um dos passos sem os quais a consolidação do SUS fica ameaçada. É uma iniciativa fundamental, mas não a única necessária. A batalha a ser travada para a consolidação do SUS é uma batalha política. A Saúde é um campo que envolve uma série de interesses poderosos e articulados e as ações e políticas do setor nem sempre se orientam pelo interesse coletivo. No campo dos insumos de saúde isso pode ser observado pela crescente incorporação de tecnologias não necessariamente custo efetivas – o que reforça a importância da atuação reguladora do Estado para o fortalecimento do Complexo Econômico e Industrial da Saúde e para a orientação de sua produção.

Frente ao atual cenário político e econômico do país, quais as perspectivas futuras para a Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde? E quais as tendências de incorporação tecnológica pelo sistema de saúde nacional?

Os cenários futuros são extremamente preocupantes. Ao diminuir o investimento são reduzidas as chances de desenvolver a infraestrutura de pesquisa e produção necessárias para o fortalecimento do Complexo Econômico e Industrial da Saúde. Em um cenário de escassez, os recursos dos hospitais universitários voltar-se-ão ainda mais para o atendimento. O professor Reinaldo Guimarães chama atenção, há mais de uma década, para o fato de que, à despeito de sua importância, uma série de dificuldades de financiamento têm afastado os hospitais públicos de suas atividades de pesquisa, o que tem representado obstáculos ao desenvolvimento da pesquisa clínica no Brasil em padrões competitivos internacionais. É uma situação crítica, porque os hospitais desempenham papel central nos processos de inovação em saúde, uma vez que estabelecem fortes vínculos de pesquisa com outras instituições e também por representarem um ponto de interseção privilegiado entre os sistemas de inovação e de bem-estar social. Olhando do lado da indústria, há uma peculiaridade. Em períodos de alta de dólar, há um fôlego para o segmento industrial brasileiro. A má notícia é que isto não afeta a produção nos segmentos intensivos em tecnologia, dada a falta de escala e o estágio do desenvolvimento de capacidades na indústria brasileira da Saúde.

Também seguem as mesmas as perspectivas de incorporação das novas tecnologias pelo SUS. A transição demográfica e sócio-sanitária não sofre mudanças. O que acontece, entretanto, é que a incorporação de tecnologias (mesmo que as mesmas tecnologias) oneram proporcionalmente mais os orçamentos. Acontece, também, que as tecnologias tenderão a replicar ainda mais as desigualdades observadas no bojo do sistema, como já apontou a tendência no estudo que desenvolvemos. O quadro tende a melhorar se o país reduzir a sua dependência internacional, caso o governo consiga colocar produtos prioritários do SUS no mercado por meio das Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo ou se os laboratórios nacionais conseguirem produzir suficientemente sem a necessidade destas parcerias. De toda forma, o cenário não é bom. A escala de nossa atuação não está ainda próxima de nossa demanda e a tendência é que, em períodos de crise, esta realidade não seja alterada.

Bel Levy
Saúde Amanhã
01/06/2015