Em entrevista ao Sáude Popular, Jairnilson Silva Paim, professor da UFBA e militante da reforma sanitária, analisa os 25 anos do Sistema Único de Saúde e os desafios postos para a área.
Da Redação
O Sistema Único de Saúde (SUS) completou 25 anos no dia 19 de setembro. Conquista da Constituição de 1988, o SUS foi regulamentado na lei 8080/1990 e desde então já atendeu milhões de pessoas. Apesar disso, as críticas à saúde pública sempre estão presentes na imprensa.
O professor titular do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia Jairnilson Silva Paim reforça a importância do sistema nesse um quarto de século e os avanços que ele representou na sociedade brasileira, como a ampliação da atenção básica, redução da mortalidade infantil e aumento da expectativa de vida da população.
Paim critica, porém, que o SUS tenha sido usado politicamente como “moeda de troca para articulações políticas.” “ Os governos foram mais adversários do SUS que outras instâncias da sociedade brasileira.”
No atual cenário de crise político, Paim também criticou a possibilidade de alterações na condução do Ministério da Saúde e os nomes cogitados para assumir a pasta:
Acompanhe a entrevista na íntegra:
– Qual era o cenário da saúde pública brasileira antes do SUS?
Basicamente, o país enfrentava uma crise do sistema de saúde, na medida em que ele era insuficiente, mal distribuído, inadequado, ineficiente e ineficaz.
Ele era centralizado, autoritário e corrupto. Esse sistema foi sendo estruturado ao longo do século 20, que na realidade não era um sistema, mas uma organização caótica, que de um lado tinha os serviços estatais, principalmente por parte do Ministério da Saúde e secretarias municipais de saúde, e a previdência social, mediante o Inamps (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social) e de outro lado tinha um sistema de saúde privado, baseado em medicina de consultório, com médicos particulares, mas também com o crescimento do empresariamento da medicina mediante empresas médicas, clínicas particulares que faziam convênios com o Inamps e viviam mediante pagamento por unidade de serviços, que para alguns que estudavam o sistema na época era um fator incontrolável de corrupção.
O sistema privado na época dependia muito do setor público, porque vendia serviços pra ele. Eram poucas as clínicas privadas que podiam sobreviver sem vender serviços pro Estado. E nesse período já estava começando a se desenvolver o que chamamos de planos de saúde.
– O que significou a garantia de saúde para todos na Constituição?
Essa conquista não veio dos políticos eleitos para elaborar a Constituição. Ela vem da sociedade civil, dos movimentos sociais que combateram a ditadura, defenderam o direito à saúde como um direito vinculado à cidadania, que propunham um sistema de saúde de caráter público, sob a responsabilidade do Estado. Daí a ideia de que “saúde é um direito de todos e um dever do Estado”.
Esse sistema devia ser descentralizado, integral e participativo. Esse sistema estar na Constituição é resultado de um amplo movimento que chamamos de reforma sanitária brasileira, que se organizou nas décadas de 70 e 80.
Muitas pessoas pensam que o SUS é obra de um governo, partido ou mesmo do Estado. Sempre reitero que, historicamente se demonstra que essa ideia surgiu da sociedade civil, não do Estado.
– Quais as principais conquistas desses 25 anos?
Conseguimos ampliar a atenção básica para praticamente 100% da população brasileira; garantimos imunização e controle de um conjunto de doenças transmissíveis, reduzimos drasticamente a mortalidade infantil, aumentamos a expectativa de vida da população, há uma oferta de serviços mais complexos, como transplantes para cirurgias cardíacas (quase 90% feitos pelo SUS), ampliamos ciência e tecnologia na área da saúde, formamos milhares de recursos humanos para gestão e atenção do sistema.
Há muitos fatos que podem ser registrados nas conquistas do SUS. Entretanto, muitas derrotas ocorreram nesse período, mediante ações dos sucessivos governos que sabotaram a Constituição de 1988, no que se refere ao direito à saúde.
– Que derrotas foram essas?
Particularmente no que diz respeito à implosão da concepção de seguridade social que se encontra na Constituição, e a forma com que os governos trabalharam a questão do financiamento, subfinanciando o SUS, e nas relações públicos privadas, onde os governos privilegiam muito mais a organização e estruturação do setor privado do que o estímulo ao SUS.
Os governos tem sucessivamente usado o SUS como moeda de troca para articulações políticas, cargos de comissão, mas não como política de Estado. Em outras palavras, os governos foram mais adversários do SUS que outras instâncias da sociedade brasileira.
– O SUS tem sofrido diversos ataques políticos e econômicos nos últimos meses. Ele já está consolidado ou corremos o risco de retrocessos?
Os riscos de retrocessos sempre existem, mas não acredito que tenham como perspectiva a extinção do SUS. O que pode ocorrer é um SUS completamente distinto do que está assegurado na Constituição e nas leis. É um SUS tão desidratado, tão desfigurado, que é possível que as pessoas nem o identifiquem como SUS.
– Quais os próximos desafios do SUS? Como você vê o SUS daqui a 25 anos?
Tudo depende muito das lutas da sociedade brasileira. Eu imaginava que depois de 2013, nós pudéssemos retomar muitas das bandeiras e teses, porque muitos dos jovens que foram para as ruas defendiam serviços públicos de saúde e educação de qualidade. Mas de 2013 pra cá o país passou por um processo muito complexo, e muito do que foi apresentado então foi diluído dentro desse Congresso que foi eleito, e dentro da situação da instabilidade política pela qual passa o país.
O SUS, para se desenvolver e ter um caráter que atenda às necessidades da população, requer desenvolvimento econômico, social e ambiental sustentável. Se o Brasil enquanto um país entra em recessão e não cresce, isso vai rebater no SUS.
A questão de um financiamento estável e de organização de uma instituição como o SUS protegida de interesses partidários e imediatistas criaria um cenário mais favorável ao SUS.
Nenhum país do mundo tem um sistema de saúde decente se as forças da sociedade não lutarem por ele. Não basta ter uma lei, uma Constituição se a sociedade não se mobilizar pelo serviço público.
– Como os grandes conglomerados de saúde e planos de saúde afetam o SUS?
Esses planos são estimulados pelo Estado através de políticas de liberação de pagamento do imposto de renda para quem usa plano de saúde e subsídios de renúncia fiscal. Essas empresas não foram estruturadas só pelas leis do mercado, tiveram contribuição do Estado para crescer e se manter.
Enquanto o Estado reduz o financiamento público, ele não regula o setor privado. Então vivemos o pior dos mundos: subfinanciamento do público e subregulação do privado.
Esse é o caos que vivemos hoje, que faz com que a população sofre tanto no atendimento público como no privado.
– Como você avalia esses programas mais recentes, como o Mais Médicos, a alteração que vem sendo feita no currículo dos cursos de medicina e a Saúde da Família?
São iniciativas defensáveis, mas extremamente insuficientes diante da complexidade do perfil epidemiológico da população, e da própria estrutura do sistema de saúde em uma sociedade tão desigual como a nossa.
São medidas que tem um certo sentido, mas inteiramente aquém dos grandes desafios e obstáculos postos pelo SUS.
– Existe a possibilidade de mudanças na condução do Ministério da Saúde, com o governo entregando a pasta ao PMDB. Como avalia isso?
Vivemos um dia que expressa muito do que estamos conversando. O governo, diante das negociações com o Congresso, resolve rifar o Ministério da Saúde justamente para forças conservadores que tem comprometimento com o setor privado e não com o desenvolvimento do SUS.
Esses candidatos a ministro que estão sendo cogitados não têm história nem o compromisso com o SUS.
Portal Saúde Popular, setembro 2015