A regionalização está avançando no Brasil, mas ainda muito lentamente. É o que afirma a pesquisadora da ENSP/Fiocruz, Ligia Giovanella, em entrevista à Região e Redes. Um desafio importante para acelerar o processo é encontrar uma forma efetiva de cogestão entre estados e municípios. Outro, é colocar os gestores municipais para pensarem juntos, de um modo mais cooperativo e operativo, a oferta e a organização de serviços em saúde. Segundo ela, isso melhorará a oferta pública de serviços de saúde que no Brasil é muito privatizada: 65% dos leitos hoje são particulares.
Região e Redes – Quais mudanças significativas são esperadas do processo de regionalização da saúde?
Ligia Giovanella – O processo de descentralização do SUS, com base na municipalização, produziu uma importante fragmentação do sistema de serviços de saúde e ergueu obstáculos para atenção integral das necessidades de saúde da população brasileira. Hoje, mais de 70% dos municípios brasileiros têm menos de 20 mil habitantes. Isso exige uma articulação intermunicipal para a garantia do acesso.
Nesse ambiente, a constituição de regiões de saúde é imprescindível para promover um uso mais eficiente dos recursos e contribuir para a melhor qualidade da atenção ao reduzir a fragmentação assistencial e promover a continuidade do cuidado. Por outro lado, a regionalização reduz desigualdades geográficas no acesso a serviços de saúde, permitindo maior equidade na alocação dos recursos.
A conformação de redes de atenção com abrangência territorial e população definida possibilita uma melhor organização do sistema de saúde como um todo.
RR – A constituição de regiões de saúde tem contribuído para a redução das desigualdades em saúde?
LG – A constituição de redes regionalizadas de atenção à saúde no SUS, certamente, promove a redução das desigualdades geográficas no acesso a ações e serviços de saúde. Todavia, para se efetivar essa redução, se fazem necessários investimentos importantes em infraestrutura que permita ofertar serviços conforme a necessidade das populações das regiões de saúde.
É importante lembrar que as desigualdades em saúde transcendem as dificuldades de acesso a serviços de saúde, porque as desigualdades no adoecer e sofrer têm determinações sociais mais amplas e abrangentes e implicam intervenções intersetoriais relacionadas com condição de vida e de trabalho das pessoas. Os serviços de saúde são apenas um dos determinantes de saúde da população.
RR – Como se relacionam a conformação de redes de atenção à saúde e a regionalização? Porque esses temas são discutidos sempre conjuntamente?
LG – Na dimensão de Atenção Primária à Saúde (APS), no âmbito da pesquisa Região e Redes, nós temos empregado o termo redes regionalizadas de atenção à saúde. Ou seja, a regionalização é a base para a conformação de uma rede de atenção. A alocação de recursos nessas redes deve ser orientada pelas necessidades regionais de saúde. Por isso, pensamos sempre em redes regionalizadas. Entendemos que a rede deve ser ordenada a partir da APS e que os cuidados devem ser coordenados pela equipe de APS.
RR – Atualmente, quais são os limites e desafios do planejamento e gestão regional no Brasil?
LG – A regionalização está em processo, mas avança ainda muito lentamente. A principal dificuldade está no desenvolvimento de arranjos cooperativos de governança regional, que tem como barreira um federalismo configurado por uma polarização entre o nível federal, o Ministério da Saúde e os municípios. Um desafio importante é encontrar uma forma efetiva de cogestão entre estados e municípios. É preciso encontrar esse lugar ótimo, em que o estado tenha a responsabilidade de fazer um SUS estadual, de base regional em cooperação com os municípios.
Outro desafio é colocar os gestores municipais para pensar juntos a oferta e a organização de serviços em saúde de modo mais cooperativo e operativo na região de saúde. Fazer um planejamento regional, que atenda às necessidades das pessoas em curto, médio e longo prazo. Isso significa também melhorar a oferta pública de serviços de saúde, visto que a oferta de serviços no Brasil é muito privatizada. Por exemplo, hoje, 65% dos leitos são privados no Brasil. Na Espanha, que tem um serviço nacional de saúde, 83% dos leitos são públicos. Na Inglaterra, ainda que com novas formas de gestão, cerca de 90% dos leitos são públicos.
A privatização dos serviços de saúde no Brasil é ainda mais intensa no setor de diagnose e terapia do que no setor hospitalar. Por exemplo, se temos cerca de três mil tomógrafos no país, 87% deles são privados e somente 38% são disponíveis para o SUS.
Veja, por exemplo, o caso da terapia renal substitutiva: as hemodiálises são 95% pagas pelo SUS e feitas predominantemente pelo setor privado, que faz a hemodiálise porque recebe bem, mas não oferece consulta de nefrologia… Assim, o cuidado fica sem qualidade por predomínio dos interesses de mercado. Isso tudo mostra que, de fato, há necessidade de investimentos em infraestrutura de serviços públicos de saúde, com base regional e regulação do setor privado.
Este é outro ponto fraco: a falta de regulação do setor privado e da relação público-privado. No Uruguai, por exemplo, nem todos os serviços são públicos, mas há um controle público sobre a oferta de serviços privados. A expansão da oferta privada só é autorizada se estiver dentro de um planejamento mais geral do sistema de saúde.
RR – Em um cenário de contínuo subfinanciamento, a atenção primária tem potencial para contribuir com a gestão da saúde e a otimização de recursos. Os gestores, de modo geral, já entenderam a importância de se ter uma Atenção Primária à Saúde (APS) efetiva e resolutiva?
LG – Na última década houve uma ampliação importante dos recursos para a atenção básica, ainda que os recursos para o SUS permaneçam insuficientes. O número de equipes de saúde da família tem crescido de forma contínua, ultimamente fortalecido pelo programa Mais Médicos. São, hoje, cerca de 39 mil equipes em todo o Brasil. Mas, ainda assim a insuficiência de recursos para o SUS produz uma atenção primária que nem sempre está integrada à rede assistencial especializada e hospitalar. E isso faz com que em muitos lugares a APS se constitua basicamente em um programa focalizado e seletivo, com uma oferta restrita de serviços e voltado para a população mais pobre.
Mas esse não é um problema só da atenção primária; é um problema do SUS. A ideia de uma rede organizada na região é tentar superar essa fragmentação com uma rede regional de atenção à saúde que tenha como base uma atenção primária forte, com profissionais bem formados e que exerçam a coordenação do cuidado integral.
RR – É possível um sistema universal e integral, de fato, em um país com mais de 200 milhões de habitantes, sem que seus governantes e gestores de saúde pensem adequadamente a questão da regionalização e o papel da APS nesta rede?
LG – Definitivamente, não é! Há evidências que um sistema universal deve ser orientado pela atenção primária, pois quando bem estruturada, como um serviço de primeiro nível resolutivo, integrado a uma rede de serviços de saúde, impacta positivamente nos indicadores de situação de saúde e produz aumento da eficiência e da qualidade do sistema como um todo.
A atenção primária não é barata, mas é a forma mais eficiente de alocação de recursos, reconhecida internacionalmente. Após o aumento dos investimentos e a expansão das equipes de saúde da família no sistema público brasileiro, o SUS, estudos já mostram a efetividade, por exemplo, na redução da mortalidade infantil e da mortalidade por doenças cardíacas e cerebrovasculares, e na redução das internações por condições sensíveis à APS.
Regiões e Redes, 06/09/2015