“De todas as formas, todos os dias, precisamos nos comprometer com a democracia, as políticas públicas e o desenvolvimento humano e social”, convoca o presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Gastão Wagner. Às vésperas do 3º Congresso de Política, Planejamento e Gestão em Saúde, a ser realizado pela Associação de 1º a 4 de maio em Natal, RN, o sanitarista comenta o que classifica como uma “barbárie sanitária”: estratégias de desqualificação do serviço púbico, das instituições e das equipes técnicas, a fim de inviabilizar a universalidade, a equidade e a integralidade do Sistema Único de Saúde (SUS). “Em uma época em que governos assumem posturas retrógradas, conservadoras, contra os direitos sociais, é fundamental intensificarmos a construção do sistema de saúde que desejamos para o Brasil, a partir da base. E isso se faz no dia a dia, em ações cotidianas em defesa da Constituição Federal, do direito à saúde, dos princípios do SUS”, afirma Gastão.

 

A Abrasco realiza o 3º Congresso de Política, Planejamento e Gestão em Saúde em um momento particular da História do Brasil. Para a Associação, quais são as teses e proposições viáveis para o horizonte dos próximos 20 anos?

 

Esta é uma discussão complexa. Vivemos um momento difícil para as políticas públicas: o que caracteriza a agenda governamental e boa parte da mídia é o discurso em explícita defesa dos grupos financeiros e empresariais. Qualquer ação que possa restringir – ou regular – a liberdade dos negócios é descartada. Ao mesmo tempo, tenta-se desconstruir direitos sociais, trabalhistas e previdenciários, por meio de reformas normativas e anticonstitucionais. O discurso ideológico radicalmente liberal tenta convencer a população brasileira que não há recursos suficientes para financiar políticas sociais, como o SUS. Mas cerca 40% de nossa riqueza, do fruto de nosso trabalho, retorna ao setor empresarial por meio da desoneração fiscal. Se este cenário não for revertido e os recursos direcionados ao estado de bem-estar social, não haverá desenvolvimento.

 

Neste cenário, a única estratégia viável é lutar pela consolidação do SUS, em sua plenitude, conforme descrito na Constituição Federal e na Lei Orgânica da Saúde: um sistema público de saúde, com universalidade, equidade, integralidade, centrado na Atenção Básica, disponível para toda a população. Diante de tantas ameaças, faz-se necessário repetir o óbvio: politicamente, e do ponto de vista sanitário, é inviável desativar ou privatizar completamente o SUS e o que ele representa para 80% da população brasileira. O SUS não se resume à assistência, está na vigilância em saúde, na vigilância sanitária, na promoção e prevenção da saúde, nos programas de imunização. Essa é a força do Sistema Único de Saúde.

 

Qual a avaliação da Abrasco sobre o atual modelo de gestão do SUS? Quais seriam os caminhos possíveis para o seu aprimoramento?

 

Uma das estratégias de enfraquecimento do SUS é não fazer a necessária reforma da gestão pública. O SUS é muito dependente do Poder Executivo; grande parte dos cargos é de confiança e as nomeações não envolvem critérios técnicos. Soma-se, a isso, o movimento de privatização e terceirização dos serviços, que prioriza a lógica privada – o lucro – e provoca a exclusão dos grupos da população que não têm condições financeiras de aderir à saúde suplementar. Essa prática vai além do setor Saúde. O uso inadequado do orçamento público é o que provoca a crise financeira da União, dos estados e dos municípios, numa tentativa de justificar os cortes orçamentários e o Estado mínimo.

 

Nesse sentido, a Reforma Política não deveria tratar apenas dos partidos e do processo eleitoral, mas de uma profunda revisão do Estado brasileiro, que historicamente facilita e induz a promiscuidade com o setor privado. A reforma do Estado, inclusive do sistema público de saúde e de sua gestão, é imprescindível para que o SUS tenha autonomia em relação ao Poder Executivo e seja reconhecido como um projeto da nação brasileira, com controle social, regulação e compromisso com as necessidades da população.

 

Quais serão os efeitos de longo prazo do atual ajuste fiscal, para o sistema de saúde e para a saúde da população?

 

A política de austericídio faz mal à saúde. E os seus efeitos serão severos. Um dos problemas mais graves do SUS é o seu subfinanciamento. O Brasil precisa de um projeto nacional que progressivamente aumente a proporção do PIB destinada à Saúde. Com o ajuste fiscal, a possibilidade de aumentos progressivos no investimento em Saúde desaparece do horizonte. Na atual perspectiva de transformação de direitos em privilégios, o que está sendo produzida é a desconstrução lenta e progressiva do SUS. A restrição orçamentária impede a manutenção e a expansão da Estratégia Saúde da Família, a reforma e a construção de hospitais, a aquisição de equipamentos, a qualificação das equipes, os programas de prevenção e promoção da saúde. Hoje, é preciso dobrar o gasto público com a Saúde. Caso a Emenda Constitucional 55 (EC 55) não seja revogada, nos próximos cinco ou dez anos assistiremos a uma redução absoluta do investimento do Estado no setor. É um grau de desmonte lento, gradual e perverso.

 

A Reforma da Previdência, se aprovada tal qual tramita, aumentará a concentração de renda, reduzirá os recursos de idosos e exporá milhões de brasileiros a grande vulnerabilidade econômica e social. Diversos estudos já demonstram que a maioria dos brasileiros morrerá sem se aposentar e boa parte dos que se aposentarem usufruirão por até cinco anos da Previdência Social. Todas essas reformas são claras ações de precarização não apenas do sistema de saúde, mas do direito à saúde. Em vez de enfrentar os problemas do SUS, como o subfinanciamento, a gestão, a ampliação do acesso e a melhoria da qualidade, assistimos a um movimento sistemático de desqualificação do serviço púbico, das instituições, das equipes técnicas, a fim e inviabilizar a universalidade, a equidade e a integralidade do SUS. É uma condição de barbárie sanitária

 

Como este cenário impactará os determinantes sociais da saúde? Quais as tendências para o enfrentamento ou aprofundamento das desigualdades sociais e da iniquidade em saúde?

 

Um dos principais fatores da insalubridade no Brasil é a concentração de renda e de poder, que gera as desigualdades sociais e a iniquidade em saúde. A falta de investimento público piorará o já problemático quadro da degradação urbana, a coleta de lixo será ainda mais ineficiente e a cobertura dos serviços de saneamento básico continuará mínima. Permaneceremos com grandes dificuldades em garantir o acesso ao sistema de saúde e a qualidade dos serviços. O Banco Mundial indica que, em 2017, o número de pobres crescerá de 2,5 milhões para 3,6 milhões no Brasil. Mais de um milhão de pessoas entrarão, ou voltarão, para a pobreza. Também este ano, pela primeira vez desde 2010, o Brasil manteve sua posição no ranking de Desenvolvimento Humano da ONU, sem apresentar avanços em relação ao ano anterior.

 

É um quadro que produz doenças. A postura recessiva do Governo Federal e a redução do gasto público com políticas sociais impede o investimento em áreas fundamentais para a garantia do estado de bem-estar, como Saúde, saneamento básico, transporte público. E grande parte dos brasileiros continuará morrendo por causas evitáveis. O aumento da violência, que massacra sobretudo os negros, pobres e jovens, é uma preocupação primordial. O que percebemos hoje é a absoluta incapacidade – ou a inexistente vontade política – do Estado enfrentar essa questão de forma sustentável. A solução é ampla, complexa e envolve a revisão das políticas de Segurança Pública, a descriminalização do uso de drogas, a reforma do sistema carcerário. Além disso, quase metade das mortes por causas externas está relacionada a acidentes de trânsito. São, principalmente, motociclistas e pedestres. As cidades brasileiras estão se tornando cada vez menos adequadas a pedestres. São projetadas para carros. Reduzir acidentes de trânsito requer investimento em transporte público, ações de conscientização, regulação do uso do automóvel.

 

Na visão da Abrasco, qual o papel das instituições de Ciência, Tecnologia, Inovação e Saúde neste cenário?

 

Temos o compromisso de pensar qual o papel da Saúde Coletiva, dos pesquisadores, dos professores, dos estudantes na defesa da democracia, do estado de bem-estar social, do direito à saúde. Sem dúvidas, é preciso construir blocos políticos com os interessados em construir um país mais justo e democrático, que articule o desenvolvimento humano e ambiental com o crescimento econômico. O reforço das políticas públicas e sociais e a construção do estado de bem-estar social é a prioridade política da Abrasco e demais entidades comprometidas com a saúde e a qualidade de vida da população brasileira.

 

Na Abrasco, além de pós-graduandos e docentes, somos majoritariamente trabalhadores do SUS. Sabemos que o nosso Sistema Único de Saúde vem sendo construído por um movimento muito forte e resistente, que se impõe de baixo para cima. Boa parte das políticas nacionais de Saúde são fruto da articulação de trabalhadores e usuários do SUS. Em uma época em que governos assumem posturas retrógradas, conservadoras, contra os direitos sociais, é fundamental intensificarmos a construção do sistema de saúde que desejamos para o Brasil, a partir da base. E isso se faz no dia a dia, em ações cotidianas em defesa da Constituição Federal, do direito à saúde, dos princípios do SUS.

 

Também estamos nas universidades, formando os futuros profissionais, gestores e pesquisadores da Saúde Coletiva. É preciso repensar os currículos de graduação, integrar ensino e serviço para que os alunos aprendam atuando diretamente na construção diária do SUS. E a formação dos alunos, além de todo o conteúdo técnico, deve integrar a dimensão política e social da saúde. É preciso discutir o papel das políticas públicas, trazer o debate da solidariedade, reduzir o “darwinismo social”. Na área de Pesquisa, é preciso defender, também diariamente, a Política Nacional de Ciência e Tecnologia, os órgãos de fomento que vêm sofrendo cortes orçamentários preocupantes e as universidades públicas, ameaçadas de privatização. De todas as formas, todos os dias, precisamos nos comprometer com a democracia, as políticas públicas e o desenvolvimento humano e social.

 

Bel Levy
Saúde Amanhã
10/04/2017