“É preciso uma mudança cultural sobre o que é saúde e sobre qual o papel do Estado em nossa sociedade”. A avaliação é do sanitarista Paulo Duarte de Carvalho Amarante, pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz) e vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). Referência em Saúde Mental, Amarante defende nesta entrevista a substituição definitiva do modelo biomédico, institucionalizante e hospitalocêntrico de internação compulsória pela Atenção Psicossocial, com financiamento público adequado. Sobre a viabilidade, em médio e longo prazo, de um sistema de saúde público com universalidade, equidade e integralidade, afirma: “É imprescindível retomar a prática do controle social como um dos princípios fundamentais do Sistema Único de Saúde (SUS)”.

O 3º Congresso Brasileiro de Política, Planejamento e Gestão em Saúde, promovido pela Abrasco de 1º a 4 de maio, reafirmou o compromisso da Associação com o direito à saúde e a construção do SUS. Durante o evento, quais foram os cenários vislumbrados para a Saúde Pública nos próximos vinte anos?

Vivemos um momento de muita incerteza, de muita transformação, em um país que sofreu um impeachment ilegítimo e caminha, possivelmente, para mais um afastamento presidencial. O que ocorre, hoje, é o enfrentamento de diferentes visões políticas sobre o que seria o Estado. De um lado, defende-se o Estado mínimo, atuando apenas como mediador de interesses; de outro, o Estado protetor e provedor, como está expresso na Constituição Federal de 1988. Nós, da Fiocruz, da Abrasco, estamos deste lado, na luta pela garantia da saúde como direito de todos e dever do Estado.

Eu acredito que a sociedade brasileira resistirá e conseguirá, em médio ou longo prazo, reverter o quadro atual, extremamente desfavorável para a Saúde Pública e a qualidade de vida da população. Vamos superar esta crise, retomando o projeto do SUS com universalidade, equidade e integralidade. Para isso, precisamos fazer uma séria autocrítica em relação a um dos mais importantes pilares do SUS: o controle social. Nesses quase 30 anos desde a criação do Sistema Único de Saúde, avançamos pouco, de forma limitada e muito burocrática neste sentido. Temos os conselhos e as conferências de Saúde, mas a expectativa de a sociedade contribuir efetivamente com a construção e a avaliação do sistema de saúde não se cumpriu. Superando a crise atual, é preciso retomar efetivamente o controle social do SUS.

Hoje, quais as estratégias viáveis para a preservação do SUS e a atenção à saúde da população com universalidade, equidade e integralidade?

O primeiro passo é fazer a autocrítica e fortalecer os movimentos sociais, para que o controle social do SUS seja efetivo. A crise que vivemos hoje é, sem dúvidas, resultado do enfraquecimento dos movimentos sociais.  Ao meu ver, se há uma saída para o quadro atual em que o Brasil e o SUS se encontram, ela é pelas ruas, pelas diversas estratégias que os movimentos sociais podem e devem adotar, por meio de mobilizações, com a mídia alternativa, com as redes sociais on-line. A participação ativa da sociedade em defesa do SUS é o único caminho para garantir um sistema de saúde público, universal, de qualidade, com financiamento público adequado, pautado pela Estratégia Saúde da Família e não pelo modelo biomédico, especialístico, institucionalizante, hospitalocêntrico.

É preciso uma mudança cultural sobre o que é saúde e sobre qual o papel do Estado em nossa sociedade, qual o papel do médico e da equipe de saúde, qual deve ser a sua conduta. O controle social, organizado democraticamente por meio dos movimentos sociais, é fundamental neste processo, porque os interesses da sociedade estão além do Estado. Por mais progressista, moderno e comprometido com o bem-estar da população que o Estado seja, ele sempre estará aquém dos anseios da sociedade. Para garantir um sistema de saúde com universalidade, equidade e integralidade, é imprescindível retomar a prática do controle social como um dos princípios fundamentais do SUS.

A população brasileira está envelhecendo e, em 2037, o país abrigará 37 milhões de idosos. Quais os desafios para o sistema de saúde, especialmente em relação à Saúde Mental?

Envelhecimento não é doença. É um processo natural da vida, que pode levar à perda de capacidades e habilidades e, por isso, requer atenção especial do sistema de saúde. No entanto, isso não significa centrar o cuidado à saúde do idoso na resposta a doenças. Para além dos serviços especializados, das clínicas de Neurologia, das cirurgias e de todos os procedimentos, são necessários serviços de saúde, comprometidos com a qualidade de vida das pessoas mais velhas. Esses serviços precisarão substituir os cuidados domésticos e acompanhar as pessoas que já não podem realizar, sozinhas, as atividades cotidianas mais básicas. Precisarão, também, promover estratégias de interação social, grupos de convivência, passeios culturais, atividades desportivas. Tudo isso está diretamente relacionado à saúde.

A solução para o sistema de saúde brasileiro aprimorar não apenas o cuidado aos idosos, mas a abordagem da Saúde Mental como um todo, passa, portanto, pela auto-organização comunitária em torno dos problemas que precisaremos enfrentar. Algumas experiências mostram que isso é possível. Trieste, na Itália, é referência mundial em Saúde Mental e nos traz algumas inspirações também no cuidado à saúde do idoso. Lá, depois da transformação do modelo psiquiátrico e do fechamento dos hospitais de internação compulsória, os pacientes passaram a ser atendidos em um sistema de saúde aberto e não são mais submetidos ao processo de deterioração moral imposto pelos manicômios. Com isso, os profissionais de saúde que atuavam nas antigas instituições psiquiátricas passaram a cuidar de idosos, não apenas tratando doenças, mas estando presentes em suas vidas, em suas casas, ajudando com as tarefas do dia a dia. Este trabalho faz parte do sistema de saúde, do que eles chamam de “microrregião”, que seria o equivalente à nossa Estratégia Saúde da Família. A iniciativa inclui, também, jovens que optaram por não prestar o serviço militar, substituindo-o por outras contribuições à sociedade, por meio de diferentes tipos de trabalho voluntário, dentre eles, o cuidado a idosos.

Quais as ações necessárias no presente para chegarmos, nas próximas décadas, ao cenário de futuro desejável e viável para a Saúde Mental?

É urgente radicalizar o processo de desinstitucionalização. Fechar os manicômios existentes, que não são espaços de tratamento, mas de violência. Eu não acredito que instituições onde determinadas pessoas têm poder sobre a liberdade de outras sejam democráticas. É preciso promover amplamente a Atenção Psicossocial, com serviços que substituam o modelo de internação, segregação e isolamento dos pacientes. Nesses quase 30 anos de SUS, o investimento em Saúde Mental foi mínimo, com a implantação de pouco mais de 2.500 Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), enquanto nossa expectativa era ter, a esta altura, mais de dez mil unidades em todo o país. Além de ampliar, é preciso qualificar os serviços. E este processo tem início na gestão. Hoje, a grande maioria dos CAPS é administrada por Organizações Sociais (OSs), que priorizam a produtividade em detrimento da qualidade do atendimento.

A Atenção Psicossocial não deve ser pautada pela produtividade, mas pelo cuidado, pelo acolhimento. Eu tive a honra e a possibilidade histórica de participar da construção do modelo de Atenção Psicossocial, que tem um papel muito forte no resgate dos profissionais de saúde que saem das universidades programados para entender as condições de saúde mental a partir da genética e da bioquímica, acreditando que elas precisam ser corrigidas, padronizadas e que isso deve ser feito por meio de internações e medicamentos, se necessário, à força. No entanto, garantir a saúde – um dever do Estado, segundo a Constituição Federal – não é apenas prover assistência médica, realizar consultas e exames, prescrever medicamentos. Antes de tudo, é qualidade de vida. E é este bem que está ameaçado hoje, no Brasil, pelo entendimento perverso e equivocado de que planos de saúde privados, agora chamados de “planos populares”, promoverão a universalidade, a equidade e a integralidade. Sem o efetivo controle social do SUS, pereceremos.

Bel Levy
Saúde Amanhã
29/05/2017