Quais as saídas para o financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS)? Para a pesquisadora Sulamis Dain, colaboradora do projeto Brasil Saúde Amanhã, não há outro caminho senão o massivo investimento público no setor. Professora titular aposentada do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/Uerj) e atual coordenadora de Educação Internacional das Faculdades de Campinas (Facamp), Sulamis dedica-se desde a década de 1980 às áreas de Saúde Coletiva e Economia da Saúde. Nesta entrevista, ela analisa o impacto em longo prazo de diferentes propostas orçamentárias e tributárias para a Saúde e alerta: “Para que o SUS sobreviva e se fortaleça é preciso, antes de tudo, vontade política e pressão da sociedade por um sistema de saúde universal”.

Qual a importância de uma iniciativa como o projeto Brasil Saúde Amanhã, que investe na abordagem da prospecção estratégica do futuro como metodologia para a definição de políticas públicas de Saúde?

O projeto Brasil Saúde Amanhã tem uma abordagem integrada, multidisciplinar e convoca colaboradores de diversas áreas do conhecimento para participar deste exercício prospectivo sobre o futuro do sistema de saúde brasileiro. Com isso, a iniciativa traz, como contribuição muito importante, o alargamento do campo de reflexão da Saúde, considerando perspectivas como a regulação das relações público-privadas, a organização do sistema de saúde, o financiamento setorial, a evolução demográfica, dentre outras.

Além disso, o debate articulado pelo projeto Brasil Saúde Amanhã ultrapassa a agenda conjuntural do setor e coloca a possibilidade de estruturação de um projeto a longo prazo – o que é fundamental em termos de políticas públicas. A iniciativa, portanto, coloca a agenda do financiamento da Saúde em interlocução com as principais pendências de mudanças nos campos orçamentário e tributário e, a partir disso, analisa as oportunidades de criação de novas receitas para o setor na perspectiva temporal, sob diferentes pontos de vista.

Neste sentido, nesta segunda fase do projeto Brasil Saúde Amanhã, analisamos as diversas propostas de reforma tributária que estão na mesa de negociações – como a retomada da antiga CPMF, a tributação de grandes fortunas, a renúncia de arrecadação, a tributação do pré-sal – e inferimos seus impactos para o sistema de saúde brasileiro no horizonte dos próximos 20 anos.

De que maneira medidas tomadas no presente, como o orçamento impositivo para a Saúde e a abertura do setor ao capital estrangeiro, poderão repercutir sobre os princípios do SUS, em curto, médio e longo prazo?

Ao identificar e analisar as estratégias possíveis para o financiamento do SUS, no horizonte dos próximos 20 anos, é evidente a necessidade de se inverter a relação público privada na Saúde e garantir a participação majoritária do Estado nos gastos do setor. Afinal, pensar em um sistema de saúde público, universal e de qualidade financiado principalmente pela inciativa privada é um contrassenso.

Neste sentido, a proposta central é criar mais um ponto percentual do PIB (de 9% para 10% do PIB) para o gasto da Saúde, associado exclusivamente ao setor púbico.Para isso, listamos um conjunto de alternativas possíveis para o financiamento do SUS, que podem ser conduzidas a partir de uma decisão orçamentária ou da criação de novas fontes de recursos. Em suma, nós defendemos o debate sobre o orçamento e a implementação de novas estratégias para o direcionamento de recursos como a medida mais adequada para o fortalecimento do SUS.

Em termos práticos, isto se traduzia na proposta de destinar à Saúde 10% da receita corrente bruta – movimento que ficou conhecido como Saúde+10. Essa é uma proposta antiga no campo progressista da Saúde que, infelizmente mais uma vez, não foi aprovada. Ao contrário, foi superada por uma proposta que está associada ao orçamento impositivo e que recomenda, em vez de 10% sobre a receita corrente bruta, uma progressão de alíquotas sobre a receita corrente líquida, até chegarmos a 15% em 2018.

É importante deixar claro que, para o financiamento do SUS, é irrelevante se o cálculo será feito sobre a receita corrente bruta ou líquida, desde que, por meio de uma regra de três, o percentual da receita líquida seja equivalente aos 10% da receita bruta. Para isso, seria necessária uma alíquota de 19% a 19,5% sobre a receita líquida. Isso sem considerar a perda ainda não calculada da receita fiscal derivada diretamente do impacto do ajuste em curso sobre a redução da atividade econômica (e da arrecadação).

Na proposta sustentada pelo orçamento impositivo, no melhor cenário, chegaremos a 15% da receita líquida em 2018. Sabemos que essa proporção não é suficiente hoje e também não será adequada no futuro. Portanto, é uma tese que compromete a ampliação de recursos para a Saúde.

Na contramão destes cenários, o que tem ocorrido é o crescimento do setor privado, com financeirização e internacionalização do setor. A recente abertura da Saúde ao capital estrangeiro é extremamente complexa, porque muda o marco regulatório e transfere a capacidade de regulação do SUS para um cenário global em que os sinais, os incentivos e a adesão a este projeto social mudam radicalmente. Neste contexto, a Saúde deixa de ter como prioridade o atendimento das demandas da população e passa a perseguir o lucro.

Seguindo esta perspectiva de prospecção do futuro, quais seriam as políticas necessárias para ampliar a participação da Saúde no espaço fiscal brasileiro?

Para efetivamente atender a população brasileira como um sistema público de saúde, universal e de qualidade, o SUS precisaria de um drástico aporte de recursos que viabilizasse a primeira fase de investimentos para modernização da infraestrutura de serviços de saúde. Sem este ganho expressivo de recursos, este movimento é postergado. Considerando o horizonte dos próximos 20 anos, para a consolidação do SUS conforme previsto pela Constituição Federal de 1988, temos que ter clara a necessidade de financiamento público e efetivo para a Saúde. Não há outra saída. O financiamento não é o único problema do SUS, mas é um elemento importante, que está na base da possibilidade de se materializar um sistema de saúde público e universal no Brasil.

Diversas decisões políticas podem ser tomadas no sentido de ampliar o aporte de recursos públicos no SUS. Uma questão que precisa ser melhor examinada é a tributação do pré-sal: a Saúde receberá 25% desta nova receita. No entanto, dado que a exploração do pré-sal começará a gerar recursos financeiros em 2020 (oito anos após as decisões tomadas em 2012), estimamos que, para o último ano de nossa projeção atual, 2035, a Saúde receberia R$ 13 bilhões desta fonte – um valor bastante reduzido. Por outro lado, com a recuperação da CPMF com um novo nome – a Contribuição para a Seguridade Social (CSS) – em 2020 a Saúde receberia R$ 40 bilhões.

Também examinamos a questão da renúncia de arrecadação. Concentrar recursos e renunciar a recursos são ações simétricas. Dessa forma, analisamos a relação público-privada a partir da renúncia de arrecadação. Parte deste montante retira recursos do orçamento que financia a Saúde, que é o orçamento da Seguridade Social. E isto, obviamente, tem impactos gravíssimos para o financiamento do SUS, em curto, médio e logo prazo. Desonerar a folha de salários prejudica diretamente a Previdência Social, que integra a da Seguridade Social, que por sua vez financia a Saúde. Com a renúncia fiscal, a Previdência Social vem perdendo recursos da folha de salários e certamente irá disputar outras receitas com a Saúde e com a Assistência Social. Estou inteiramente de acordo com a revogação recente desta renúncia, que foi oferecida ao setor privado sem ao menos uma contrapartida em relação a metas de produção e emprego.

A tributação de grandes fortunas, por sua vez, é uma medida relevante porque trata da justiça social – e precisamos que o enfrentamento das desigualdades sociais seja uma prioridade no Brasil. Entretanto, para o financiamento adequado e estável da Saúde, a sua repercussão seria menos significativa que a introdução da CSS, apresentada no trabalho. A conjuntura econômica, de baixo dinamismo, é particularmente desfavorável à criação de novas fontes de receita e à ampliação da carga tributária. Por outro lado, aumenta a pressão da sociedade por mais e melhores serviços, devolvendo ao SUS uma parte dos que até aqui integravam a clientela do setor privado de Saúde.

Com maior pressão por serviços e com os déficits estruturais de cobertura, a ampliação do espaço fiscal da Saúde nas contas da União é necessária e urgente.  Mas isto não depende apenas de iniciativas do próprio setor ou do campo tributário. É preciso vontade política para que mudanças no campo tributário aloquem mais recursos para a Saúde. E, para isso, é imprescindível que haja  pressão permanente da sociedade no sentido de reivindicar novos avanços  e a consolidação  do SUS em patamar condizente com a plena materialização da Saúde como direito universal.

Bel Levy
Saúde Amanhã
06/04/2015