Após circularem declarações levianas como as de que não há fome no Brasil; não há desmatamentos na Amazônia; não há necessidade de produção pública de medicamentos; e agrotóxicos são defensivos agrícolas, vemos na imprensa que um grupo de deputados de dez partidos políticos considera não haver necessidade de regulação sanitária no país. Tentam nos levar a uma ponte para o passado.

Na década de 1990, coincidindo com o Relatório do Banco Mundial de 1993 (Investir em Saúde), em que se propunha uma elitização da saúde, com um pacote mínimo de serviços para as camadas mais pobres da população e uma medicina altamente tecnologizada para os ricos, na contramão da nossa Constituição e da construção do Sistema Único de Saúde, o governo Collor de Melo e seu furor neoliberal gestaram e tentaram implementar o famigerado Projeto Inovar. Tratava-se da tentativa de desregulamentar o processo de registro de medicamentos pela então Secretaria Nacional de Vigilância de Medicamentos, com redução da interferência governamental no setor regulado, as empresas de produção, por intermédio de quatro subprojetos independentes (Zerar, Normatizar, Garantir e Embasar), em linha com o Programa Federal de Desregulamentação, fortalecendo o setor privado e reduzindo a interferência do Estado.

Ironia do destino, o Projeto Inovar era visto pelos então dirigentes do Ministério da Saúde como uma “verdadeira ponte entre o passado e o futuro da Vigilância Sanitária”. Sua vigência levou ao registro irregular de enorme quantidade de medicamentos, acirrando a disputa entre interesses sociais e econômicos, ousaúde x comércio, que já se discutia nos grandes foros mundiais e no âmbito da Organização Mundial da Saúde. Entretanto, em que pese a criação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), em 1999, e, mais recentemente, em 2018, a aprovação pelo Conselho Nacional de Saúde da Política Nacional de Vigilância em Saúde, um grupo de parlamentares acaba de protocolar um Projeto de Lei (PL 3.847 de 2019) que fere nossa soberania e autonomia. Capitaneados pelo deputado federal General Peternelli (PSL-SP), e a despeito da importância hoje conferida ao registro e regulamentação de medicamentos no mundo inteiro, pretendem ignorar a solidez da Anvisa, nossa respeitada agência regulatória.

Alterando a Lei 6.360/1976, o PL propõe a concessão automática de registro aos medicamentos que já tenham sido liberados pelas autoridades sanitárias dos Estados Unidos, da Europa, do Japão e do Canadá. Trata-se de uma subserviência brutal, de renúncia de nossa soberania, do rompimento das nossas relações com o Mercosul e com outras agências reguladoras da Região. A alegação de que a Anvisa demora muito a aprovar o registro de medicamentos busca o reconhecimento automático, sem análise, semelhante ao Deferimento Sumário de patentes sem exame de mérito que desde o governo Temer tenta-se emplacar no INPI, verdadeiro crime de lesa-pátria gestado no interior da Comissão Mista de Desburocratização do Congresso Nacional (ver artigo a esse respeito aqui).

Testes de estabilidade, em especial, em condições severas de umidade, especificidades das nossas populações e, sobretudo, a falta de isonomia entre nosso setor produtivo de capital nacional e empresas de capital transnacional, nada disso parece importar aos formuladores desse PL. Acirra-se a lei das selvas, o predomínio predatório do capital e do mercado sobre os interesses sociais e as condições de vida de nossas populações. Nenhuma das justificativas apresentadas atende ao bom senso e, muito menos, a nossos interesses legítimos de um país que deveria buscar continuar sendo uma referência para o mundo em desenvolvimento, mas que parece claudicar e caminhar rumo ao descrédito e à submissão a interesses externos.

Liberar medicamentos sem o aval da Anvisa demonstra irresponsabilidade e desconhecimento de premissas básicas da saúde pública. E só vem agravar os prejuízos que temos enfrentado, com a Emenda Constitucional 95, de congelamento dos gastos públicos, a desvinculação de receitas da União e o empobrecimento imposto a nossa população pelas reformas propostas por nossas autoridades.

Não bastassem essas tentativas de desregulamentação, o ministro da Cidadania ameaça fechar a Anvisa, caso seja aprovado o plantio de cannabis para produção de medicamentos, acusando instituições de maneira leviana, sem qualquer fundamentação. Vamos defender nosso SUS, seus trinta anos e nossa Constituição, que estabeleceu a saúde como direito de todos e dever do Estado!

 

Fonte: CEE

Texto: Joge Bermudez – Pesquisador da Ensp/Fiocruz, membro do Painel de Alto Nível do Secretário-geral das Nações Unidas em Acesso a Medicamentos