“O setor de Saúde poderia assumir a liderança da política de drogas no Brasil”. A avaliação é do pesquisador do Instituo de Política Econômica Aplicada (Ipea), Helder Ferreira, que coordena o projeto “A Segurança Pública no Brasil em 2023: uma visão prospectiva”, desenvolvido em parceria com a Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República e com o apoio dos ministérios da Justiça e do Planejamento. Como um dos resultados da iniciativa, o Ipea lançou, em novembro, o livro “Violência e Segurança Pública em 2023: cenários exploratórios e planejamento prospectivo”, organizado por Helder Ferreira e Elaine Marcial Coutinho. Nesta entrevista, Helder discute, entre outras questões, a atual política de drogas brasileira, suas tendências para o futuro e impactos para a Saúde.

Por que desenvolver um estudo prospectivo sobre violência e Segurança Pública no Brasil?

Estudos prospectivos são essenciais para subsidiar o planejamento de políticas públicas. O objetivo é encontrar evidências, sinais, tendências e incertezas em relação ao futuro, para que seja possível se antecipar e definir estratégias para aproveitar oportunidades e enfrentar ameaças. O estudo de futuro  é muito utilizado na Demografia, para antecipação de cenários sobre o crescimento da população e sua distribuição por faixas etárias. Neste sentido, são realizadas projeções a partir do presente e isso facilita muito o planejamento de políticas públicas. Em outras áreas, como a Saúde e a Segurança Pública, o nível de incertezas em relação ao futuro é muito alto e nem sempre é possível fazer extrapolações a partir do presente por meio de projeções. Nesses casos, os estudos prospectivos têm um papel estratégico no planejamento de longo prazo, sobretudo para avaliar as incertezas sobre o futuro.

No campo da Saúde, por exemplo, podemos pensar, para além dos estudos demográficos, quais são as tendências epidemiológicas e de acesso aos serviços de saúde e quais são as incertezas relacionadas à introdução de um novo agente etiológico no país. Já em relação à violência, há várias incertezas sobre o que ocorrerá no futuro, tanto em termos da situação de violência, criminalidade e sensação de segurança, como no que diz respeito às alterações nas políticas públicas de segurança, justiça criminal e sistema penal. Neste contexto, o projeto “A Segurança Pública no Brasil em 2023: uma visão prospectiva” traz para reflexão tendências futuras relacionadas às taxas de homicídio e de criminalidade violenta, que impactam diretamente a atenção à saúde.  O aumento, a manutenção ou a redução no número de vítimas de violência certamente impactará a quantidade de atendimentos em hospitais e em Saúde Mental e precisamos estar preparados para enfrentar qualquer mudança.

Qual a metodologia utilizada para prospecção de cenários futuros em Segurança Pública e quais os critérios e razões para esta escolha?

A metodologia aplicada neste estudo consiste em uma síntese de diferentes métodos de construção de cenários, como os de Godet, Porter, Schwartz e Grumbach. A escolha se deu pela confiança neste método e pela participação da própria criadora do método síntese, Elaine Marcial Coutinho, coordenadora metodológica do projeto. O método síntese utiliza diferentes técnicas de prospectiva e prevê sete etapas: definição do plano de trabalho, com a questão principal e o sistema de cenarização; análise retrospectiva e da situação atual; identificação das sementes de futuro; definição das condicionantes de futuro; geração de cenários; testes de consistência e ajustes; e, por fim, a análise de cenários e definição de estratégias.

Portanto, é realizado um estudo sobre o presente e o passado para que se possa identificar as sementes de futuro. No fim, há testes de consistência e até a definição de estratégias. Também utilizamos, na geração de cenários, a técnica dos eixos ortogonais para construção de cenários exploratórios, pois estávamos menos preocupados com sua probabilidade de ocorrência e mais focados na marcação de diferenças que permitam refletir sobre as ameaças e oportunidades futuras.

Quais os cenários para a Segurança Pública no Brasil na próxima década?

Em nosso estudo, construímos quatro cenários para 2023: prevenção social, violência endêmica, repressão autoritária e repressão qualificada. E buscamos identificar as variáveis que levam a cada cenário. Há cenários mais positivos que outros, mas em todos eles a violência permanecerá em patamares elevados e a política de Segurança Pública, na melhor das hipóteses, avançará em termos de prevenção e repressão qualificada, mas sem alterar significativamente o quadro atual de criminalidade violenta e sensação de segurança. O estudo também vislumbra incertezas: haverá, nos próximos anos, maior integração e fortalecimento das políticas públicas de atenção e tratamento aos usuários? Haverá um trabalho mais cooperativo entre os operadores de Segurança Pública, educadores e agentes de saúde?

Um elemento-chave que deve ser considerado na prospecção e no planejamento de longo prazo da Saúde e da Segurança Pública é a política de drogas. Uma das tendências identificadas pela pesquisa não aponta mudanças na atual política de drogas brasileira até 2023. Pelo contrário, verificamos tendências à manutenção das políticas de repressão e à não descriminalização das drogas, com forte apoio da sociedade. Essas tendências podem ser rompidas até certo ponto, por exemplo, de acordo com o julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a descriminalização do porte de drogas para uso próprio, atualmente em curso. Ainda assim, este seria um aspecto de  de mudança na política e, caso isso aconteça, não significa, necessariamente, que as drogas serão de fato descriminalizadas no Brasil nos próximos anos. Também apontamos como tendências futuras a permanência do Brasil na rota de tráfico internacional, o aumento do uso de drogas ilícitas, especialmente o crack, e a maior diversidade de substâncias em circulação no país. Tudo isso aponta para um cenário de manutenção ou agravamento da atual situação do tráfico de drogas no Brasil.

Qual deve ser o papel do setor Saúde no enfrentamento da violência e da questão das drogas?

O estudo aponta que o Brasil tem altas taxas de homicídio, com aproximadamente 60 mil mortes por agressão por ano. É uma situação alarmante, que traz para a Saúde um forte impacto em termos de custos e na concorrência por atendimento médico e hospitalar. Além de homicídios, todos os anos são registrados milhares de casos de agressão física, violência doméstica e estupro, dentre outros tipos de violências, que geram uma gigantesca demanda por cirurgias, internações, tratamentos de reabilitação e atendimento na Saúde Mental.

Além disso, o setor de Saúde poderia assumir a liderança da política de drogas no Brasil. O Brasil tem um programa muito bem sucedido de controle do tabagismo, que conquistou elevados índices de redução do consumo sem criminalizar a droga. Esta experiência mostra que ações como essa são possíveis. Há várias medidas que podem ser mantidas: o controle da produção e a proibição de propaganda, a proibição do uso em locais públicos, uma política educacional de esclarecimento sobre os efeitos do uso de drogas e o atendimento a pessoas que fazem uso abusivo dessas substâncias. As drogas, em geral, fazem mal à saúde, mas são historicamente utilizadas pela humanidade. A opção de reprovarmos o seu uso e delegarmos ao Estado a repressão ao consumo e ao tráfico não tem garantido a proteção das pessoas e das famílias, como tanto se deseja.

Quais as perspectivas futuras para a descriminalização das drogas no Brasil?

Hoje há acordos e convenções internacionais que estabelecem a criminalização do comércio de drogas, entre outras tipificações, e pode-se dizer que há um status quo global de criminalização de várias drogas. No entanto, verifica-se que consumidores de drogas ilícitas não enfrentam grandes dificuldades para comprá-las – o que demonstra uma fragilidade importante no sistema de repressão às drogas. Dessa forma, criminaliza-se o uso, prende-se centenas de milhares de pessoas por tráfico de drogas, mas o consumo continua. Percebemos, assim, que este tipo de política repressiva tem os seus limites.

Também precisamos considerar a sobrecarga do sistema de justiça criminal. Temos uma preocupação muito grande com os homicídios, pois, além da vitimização que produz, hoje, no Brasil, é muito baixa a taxa de esclarecimento sobre este tipo de crime. Ao deslocar a política de drogas para a dimensão da prevenção e da Saúde, liberando o aparato da justiça criminal, ele poderia ter condições de utilizar os seus recursos para enfrentar crimes considerados mais graves, como os homicídios. Há, ainda, outros impactos importantes sobre o sistema de justiça criminal e a Segurança Pública: confrontos violentos entre policiais e traficantes e entre gangues, corrupção de servidores públicos, tráfico de armas, entre outros.

Por isso, alguns países começam a discutir ou implementar a revisão da política de repressão às drogas. Há inovações recentes neste sentido, por exemplo, no Uruguai. Nos Estados Unidos há experiências de descriminalização, sobretudo em relação à produção, ao comércio e ao uso da maconha. E diversos organismos não governamentais brasileiros e internacionais também integram este movimento e defendem a descriminalização no controle do Estado sobre as drogas. O Brasil integra este movimento e, gradativamente, vem reduzindo as penas aplicadas aos usuários de drogas. O uso de drogas ainda é crime em nosso país, embora a sanção aplicada seja alternativa, com efeitos menos graves que a prisão. Temos um longo caminho pela frente.

Quais as recomendações para os atores selecionados pelo estudo a saber, governadores, ministro da Justiça, presidente da República, secretários de Segurança Pública e congressistas?

A primeira é a construção de um pacto entre esses e outros atores políticos e sociais em torno da melhoria da política de Segurança Pública, de forma a constituir um plano para o setor. Este plano pode incluir a estruturação do Sistema Nacional de Segurança Pública e, neste contexto, a União poderia direcionar os seus esforços para consolidar um Sistema Nacional de Informações em Segurança Pública, estimular as reformas das polícias e das políticas penais e liderar estratégias em programas específicos para o enfrentamento a mercados ilegais, como o comércio de produtos roubados e de armas. Além disso, é preciso promover a integração e o controle externo das polícias, fortalecer a investigação criminal e enfrentar o problema da superpopulação carcerária. Os Estados poderiam avançar na integração das polícias e os municípios poderiam ter mais protagonismo na área, com planos municipais de Segurança Pública e ações locais de prevenção à violência.

Em relação às drogas, o desafio consiste em os principais atores na definição da política serem representantes com mandatos eletivos. Em uma sociedade que, de forma geral, apoia a repressão às drogas, a tendência é de os representantes legislarem neste sentido e manterem esta linha de políticas públicas. Mas, mesmo com a manutenção da política de repressão às drogas, o debate é bom para todos os grupos interessados. Então é necessário informar o debate sobre as drogas e questionar quais têm sido os resultados da política de repressão e quais os seus reais impactos de mudanças. De um lado, cabe questionar os custos da política de repressão e os seus resultados. De outro, é razoável a preocupação de que, uma vez finda a política repressiva, haja um aumento do consumo, devido à facilidade do acesso. Mas, mesmo se mantendo a política de repressão às drogas, é possível seguir diferentes linhas de atuação. Pode-se eleger, por exemplo, atuar mais fortemente contra o tráfico internacional de drogas,  fortalecendo a cooperação internacional e priorizando a repressão a quadrilhas que atuam no atacado do mercado de drogas. Por fim, é importante que a sociedade incentive a realização de avaliações sobre a política de repressão às drogas no Brasil, os seus resultados e as alternativas coerentes a este modelo, a partir da experiência de outros países.

Bel Levy
Saúde Amanhã
14/12/2015