Neste ano em que o SUS completou 25 anos, a saúde deverá ser, mais uma vez, um dos temas principais das campanhas e debates eleitorais. Região e Redes entrevistou Luis Eugênio Portela, presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e professor do Instituto de Saúde Coletiva (ISC-UFBA) para saber que tipo de discussão o brasileiro merece e necessita assistir.

Na entrevista a seguir, Portela trata dos entraves para o avanço do sistema público brasileiro nos próximos anos e décadas. Ele aborda temas como o do subfinanciamento e fala da importância do esforço para retomar o conceito ampliado de saúde, como proposto em 1986, na 8ª Conferência Nacional de Saúde realizada. “Não há dúvida que a garantia do direito à saúde, além do modelo de atenção, da gestão eficiente e do financiamento adequado, exige um modelo de desenvolvimento nacionalmente soberano”.

Região e Redes – Em artigo recente o senhor afirma que o SUS teve muitas conquistas ao longo dos seus 25 anos, mas defende que o sistema está numa encruzilhada em que não avançar significa retroceder. No cotidiano do SUS e da luta pelo direito à saúde, o que isso significa?

Luis Eugênio Portela – Creio que, se não avançar em direção à universalidade, o sistema de saúde brasileiro vai retroceder para o estágio pré-SUS da segmentação da atenção à saúde.

Antes de 1988, era assim: medicina liberal para os mais ricos, Inamps para os trabalhadores com vínculo empregatício formal e filantropia e mais uns poucos serviços públicos para os “indigentes”. Hoje, assistimos a consolidação de um padrão de segmentação da atenção baseado, como o anterior, na capacidade de pagamento das famílias: SUS para os pobres e SUS mais planos de saúde para os mais ricos.

No sentido da garantia do direito de todos à saúde, sair da encruzilhada exige a mobilização da sociedade em prol do sistema público de saúde. No ensejo das mobilizações de massa de meados do ano passado, o Movimento Saúde + 10 conseguiu a assinatura de mais de dois milhões de eleitores para o projeto de lei que obrigava a União a destinar, no mínimo, 10% das receitas correntes brutas para a saúde pública. Apesar de não ter conseguido a aprovação no Congresso Nacional,  o Saúde + 10 demonstrou que é real a possibilidade da mobilização.

RR – Desde junho de 2013 o direito à saúde e o SUS foram recolocados, pelas ruas e militância, na agenda política nacional em patamar de prioridade. Agora, em 2014, iremos a uma eleição em que o tema poderá ser a prioridade das prioridades.  Qual saúde o cidadão brasileiro merece ver debatida durante esse ano para que seja uma discussão, de fato, relevante e construtiva?

LE – Para que a discussão sobre a saúde seja relevante, nessas eleições, algumas questões devem ser necessariamente abordadas.

A situação de saúde – como enfrentar os principais problemas de saúde dos brasileiros, incluindo a dengue, a hipertensão e o diabetes, a violência, os transtornos mentais, entre outros – e a atuação sobre os determinantes sociais dessa situação;

O acesso aos serviços de saúde – como ampliá-lo e qualificá-lo, o que exige, sobretudo, a discussão sobre a fixação de médicos e demais profissionais da saúde na rede pública em todas as regiões do país.

O financiamento – como aumentar o investimento no SUS e reduzir ou eliminar a transferência de recursos públicos para o setor privado.

O modelo de gestão – como melhorar a eficiência do SUS.

RR – O sistema público brasileiro sobrevive com um grave subfinanciamento. Já o setor privado é fortemente subsidiado. É possível fazer o SUS avançar sem enfrentar essa questão? O que falta para esse tema entrar na agenda Política?

LE – De fato, o Brasil não investe tão pouco em saúde se considerarmos o total dos gastos, incluindo o privado: 8% ou 9% do PIB. Não é possível aumentar muito esse montante sem prejudicar outros investimentos sociais.

O desafio para superar o subfinanciamento do SUS (3,5% ou 4% do PIB) passa, portanto, por extinguir, ainda que progressivamente, os subsídios ao setor privado. A experiência dos países com sistemas universais demonstra que os gastos públicos devem ser superiores a, pelo menos, 75% do total de gastos em saúde.

A dificuldade de por em pauta esse tema está relacionada ao fato de que os 50 milhões de brasileiros que têm planos privados de saúde e, assim, se beneficiam desses subsídios, são também as pessoas com maior capacidade de vocalização política, e fazem pressão junto aos tomadores de decisão, nos âmbitos público e privado, para que a situação assim permaneça.

No entanto, a expansão dos planos privados tem deixado evidentes suas dificuldades em assegurar a assistência à saúde que prometem. As pessoas que pagam os planos de saúde estão, crescentemente, insatisfeitas e se veem, frequentemente, obrigadas a recorrer ao SUS. Com isso, esse tema vem, aos poucos, entrando na agenda política.

Além disso, uma parcela numerosa da população que, recentemente, passou a fazer parte do mercado de trabalho formal está exigindo uma melhor qualidade na atenção à saúde no âmbito do setor público.

RR – As diversas entidades que formam o Fórum da Reforma Sanitária têm trabalhado na construção de uma agenda que contempla cinco eixos: desenvolvimento, democracia, modelo de atenção, gestão e financiamento. Por que uma discussão tão ampla? É a retomada do conceito de saúde apresentado por Sérgio Arouca na 8ª Conferência de Saúde?

LE: Trata-se, exatamente, da retomada do conceito ampliado de saúde. Desde suas origens, na década de 1970, a Reforma Sanitária se propõe a ser muito mais do que uma reforma administrativa do setor da saúde. Aliás, isso está claro no artigo 196 da Constituição Federal.

Não há dúvida, neste Fórum, que a garantia do direito à saúde, além do modelo de atenção (integral), da gestão eficiente e do financiamento adequado, exige um modelo de desenvolvimento nacionalmente soberano, socialmente inclusivo e ambientalmente sustentável e uma democracia com forte participação popular e com forte identidade entre eleitores e representantes.

RR – Recentemente, as entidades da reforma sanitária aderiram movimentos em defesa da reforma política, por maior participação dos cidadãos nas decisões do executivo, legislativo e judiciário por meio de mecanismos de participação direta e em defesa do controle social da mídia. Qual a importância dessas mobilizações para a consolidação da luta pela saúde coletiva como garantida na Constituição?

LE – Se a saúde decorre das condições de vida e a garantia de condições de vida adequadas para todos depende da distribuição da riqueza e do poder na sociedade, a luta pela saúde coletiva tem tudo a ver com a luta democrática.

RR – Qual a principal dificuldade existente hoje para se alcançar a integralidade no âmbito do SUS?

LE – A integralidade, ou melhor, a atenção integral à saúde exige o desenvolvimento articulado de ações de promoção, proteção, recuperação e reabilitação da saúde. Exige, portanto, a articulação intra-setorial, entre os diversos serviços de saúde, e intersetorial, entre a saúde e vários outros setores da administração pública e da sociedade civil. Além disso, exige a abordagem das pessoas como seres biopsicossociais.

Sendo assim, o alcance da integralidade tem muitos obstáculos a superar: o subfinanciamento dos serviços, a formação unidisciplinar dos profissionais e a fragilidade do trabalho em equipe, a descoordenação das ações governamentais dos diversos setores e entre as distintas esferas de governo.

Uma dificuldade maior ao alcance da integralidade se refere à hegemonia do modelo biomédico de saúde que privilegia o biologismo, o individualismo, o curativismo, o hospitalocentrismo e o consumismo de bens e serviços. Esse modelo está culturalmente entranhado nas práticas dos profissionais e, de certo modo, no próprio senso comum e é fortemente alimentado por um padrão tecnológico imposto pelos grandes conglomerados industriais-financeiros que dominam a produção e a distribuição dos insumos de saúde.

Nesse sentido, é necessário democratizar as políticas industriais e de ciência e tecnologia relativas ao setor da saúde, aproximando-as das prioridades da política de saúde. É preciso também fortalecer a educação permanente de profissionais de saúde, promovendo a interdisciplinaridade e o multiprofissionalismo.

RR – Em entrevista ao site de Região e Redes o professor Gastão Wagner (Unicamp) afirmou que o futuro do SUS passa pela regionalização da gestão. O senhor concorda com a afirmação? Em que medida  um maior peso regional na formulação de políticas e oferta de serviços podem contribuir para se alcançar o SUS universal, igualitário e integral?

LE: Concordo com a tese do prof. Gastão. Em primeiro lugar, é preciso dizer que a municipalização da saúde representou um avanço, pois permitiu a expansão da oferta de serviços, notadamente na atenção básica, mas também nas ações de vigilância da saúde e em outras mais, assim como viabilizou o fortalecimento da participação social na condução do SUS.

Em segundo lugar, deve-se reconhecer que a municipalização contribuiu para a fragmentação do sistema nacional de saúde em mais de cinco milhares de sistemas locais, sem nem considerar os portes populacionais ou a capacidade instalada de serviços de saúde. O Programa Mais Médicos, para além de seus méritos, está demonstrando que os municípios sozinhos não conseguem mais nem contratar médicos.

A saída para a fragmentação não é, contudo, a centralização do SUS na esfera federal ou na estadual. Governar um país tão grande e diverso, de modo democrático e eficiente, exige um grau elevado de descentralização, combinando à existência de mecanismos efetivos de cooperação federativa, envolvendo as três esferas de governo.

As regiões de saúde parecem ser o espaço privilegiado para se conseguir a coordenação das ações dos governos. Podem ser constituídas de acordo com uma racionalidade técnico-sanitária que procure respeitar a identidade sócio-cultural do território, o seu perfil epidemiológico e a organização de redes de serviços.

RR – Como planejar a organização do sistema de saúde em regiões, de acordo com identidades territoriais e sanitárias, se o tema ainda não está na agenda nem nas mentes dos gestores? Aliás, muitos deles são contrários à proposta.

LE – Creio que a questão da regionalização está na agenda e na mente dos gestores desde a NOAS 01/2001, pelo menos. O recente Decreto No 7.508/2011 reafirma a importância das regiões de saúde.

Talvez alguns gestores tenham se posicionado contra a proposta do professor Gastão de criação de uma autarquia nacional “SUS Brasil”, até pela complexidade política e jurídico-legal de sua criação e de seu funcionamento.

A dificuldade de construção efetiva das regiões tem a ver, principalmente, com a fragilidade dos mecanismos de coordenação federativa, que exacerba o conflito e inibe a cooperação entre as autoridades municipais, estaduais e federais, ainda mais em um contexto de subfinanciamento.

RR – Desde a criação do SUS a gestão do sistema é criticada. Alguns pesquisadores equiparam a questão da gestão com o problema do financiamento insuficiente como entrave ao avanço mais rápido do sistema público brasileiro. Hoje, quais são os principais desafios e dificuldades da gestão do SUS?

LE – Em termos de gestão, considero como os três maiores desafios: o padrão misto – patrimonialista e burocrático – da administração pública brasileira, a já citada fragilidade da coordenação federativa e a falta de uma política de recursos humanos na área da saúde.

Para superar o patrimonialismo e o burocratismo, é fundamental profissionalizar a gestão, valorizando as carreiras públicas e adotando critérios de desempenho para avaliar e premiar a eficácia e a eficiência. Além disso, a direção das organizações de saúde precisa ser descentralizada, dando mais autonomia aos dirigentes locais e, ao mesmo tempo, responsabilizando-os pelos resultados.

Para que se concretizem as regiões, é impositiva a constituição de instâncias de poder compartilhado entre os municípios de uma região, o respectivo estado e a União, todos envolvidos no financiamento e na gestão das ações governamentais. É fundamental ainda que as representações do controle social – usuários e trabalhadores da saúde – se façam presentes. A criação de uma autarquia nacional ou os consórcios regionais, como sugere Lenir Santos [doutora em saúde pública pela Unicamp], podem ser o meio de viabilizar a construção das regiões de saúde.

Uma política de recursos humanos para o SUS deve orientar a formação de profissionais de acordo com as necessidades de saúde da população e assegurar o provimento e a distribuição equitativa de trabalhadores em todo o território nacional, de acordo com planos de carreiras que favoreçam as boas condições de trabalho.

RR – Como a Política Nacional de Participação Social (PNPS) pode ajudar na consolidação do SUS? Onde entra a participação popular?

LE – É bem-vindo o Decreto Presidencial N° 8.243, de 23 de maio de 2014, que institui a Política Nacional de Participação Social e o Sistema Nacional de Participação Social. Formaliza uma estrutura já existente, podendo contribuir para aumentar a força dos conselhos e das conferências, o que, por sua vez, pode vir a elevar as tensões entre os conselhos e os governantes menos identificados com as causas dos movimentos sociais.

O desafio maior, contudo, é qualificar a ocupação desses espaços, buscando que neles esteja representada a diversidade social do país, que os representantes mantenham relações estreitas com suas bases e que os debates e as posições das instâncias participativas tenham repercussões nas políticas oficiais.

RR – O direito à saúde tem como um dos seus maiores inimigos o comprometimento do Estado brasileiro com a austeridade financeira cobrada pelo mercado. Podemos citar a DRU – Desvinculação de Receitas da União, a Lei de Responsabilidade Fiscal e a falta de uma reforma tributária que mude a estrutura da arrecadação de tributos no país e que dê conta de financiar o que a Constituição Federal de 1988 assegurou aos brasileiros. É preciso elevar o SUS a um patamar de política pública prioritária de Estado. Para isso, o quê precisa mudar?

LE – Para que o SUS seja uma política prioritária de Estado, é preciso, em última instância, mudar o modelo de desenvolvimento que privilegia o setor financeiro e o rentismo.

É preciso promover a geração e a redistribuição da riqueza nacional, por meio de investimentos na construção de uma estrutura produtiva e tecnológica que amplie a participação relativa do emprego industrial em segmentos de maior valor agregado e promova o pleno emprego.

RR – Essa é uma agenda com proposições de longo alcance. Como trabalhar e lutar pela implementação em um cenário em que todos os principais partidos políticos parecem comprometidos com a lógica pró mercado?

LE – A conquista legal dos direitos sociais, com sua inscrição na Constituição de 1988, foi fruto da mobilização popular que derrubou a ditadura, assim como o seu exercício concreto, ainda que parcial. A sua conquista efetiva, do mesmo modo, será fruto da mobilização, que encontrará eco nos partidos com raízes e compromissos populares.

É importante perceber que a sociedade não está parada, mas se move. A mudança na estrutura social brasileira, ocorrida na última década, com a inclusão de 20 milhões de pessoas ao mercado formal de trabalho e de 40 milhões ao mercado de consumo, é um fenômeno cujas consequências políticas ainda estão por se manifestar em toda sua potência.

Como militantes sociais, os defensores da reforma sanitária têm o dever de difundir e debater, amplamente, as suas proposições. O binômio “saúde e democracia” que uniu o movimento em prol da saúde universal aos demais movimentos democráticos, nos anos 80, pode ser retomado agora, na forma do trinômio “saúde, democracia e desenvolvimento”, e unir, novamente, os setores democráticos, nacionalistas, populares e socialistas da sociedade civil organizada.

 

Região e Redes, Agosto de 2014