O modelo de Estado Social adotado pelo Brasil em resposta à pandemia de Covid-19 será decisivo para a organização do sistema de cuidados em saúde no horizonte dos próximos 20 anos, com consequências diretas para a vida da população e o desenvolvimento nacional. A conclusão é de economistas e sanitaristas que participaram, dia 8 de fevereiro, do seminário on-line “O Brasil depois da Pandemia: Futuro do Estado Social, Administração Pública e Instituições de Saúde”, promovido pela iniciativa Brasil Saúde Amanhã, em associação à Estratégia Fiocruz para a Agenda 2030. Os pesquisadores apresentaram estudos inéditos desenvolvidos para a iniciativa Brasil Saúde Amanhã, publicados como Textos para Discussão disponíveis em acesso aberto no portal Saúde Amanhã.
Participaram do debate o coordenador executivo da iniciativa Brasil Saúde Amanhã, o sanitarista José Carvalho de Noronha, que é pesquisador do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz); o sanitarista Paulo Gadelha, coordenador da Estratégia Fiocruz para a Agenda 2030 e ex-presidente da Fundação; o economista Jorge Abrahão de Castro, ex-diretor de Estudos Sociais do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e ex-diretor de Planejamento e de Temas Sociais do Ministério do Planejamento; o sociólogo Ricardo Carneiro, professor e pesquisador da Escola de Governo Paulo Neves de Carvalho, da Fundação João Pinheiro; e a economista Ana Luiza d’Ávila Viana, ex-professora do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/UERJ), professora aposentada do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) e ex-diretora do Departamento de Ciência e Tecnologia da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde.
“Desde 2010, a iniciativa Brasil Saúde Amanhã realiza exercícios de prospecção estratégica do sistema de saúde brasileiro. Propomos cenários para o sistema de cuidados em saúde no Brasil no horizonte móvel de 20 anos, levando em consideração a sua inserção no desenvolvimento econômico, social, político, demográfico e epidemiológico. Em 2020, assumimos o necessário desafio de pensar e especular o Brasil depois da pandemia, com uma série de estudos e seminários cujos resultados estão disponíveis em acesso aberto no portal Saúde Amanhã”, apresentou Noronha.
Na sequência, Paulo Gadelha ressaltou que a iniciativa Brasil Saúde Amanhã e a Estratégia Fiocruz para a Agenda 2030 são ações sinérgicas, com acolhimento pleno dos temas da primeira pelas prioridades da segunda. “Essa rica experiência é responsável não apenas por gerar conhecimentos para a prospecção de futuro no setor Saúde, mas também nos ensina que todas as projeções são móveis, dependendo das conjunturas que se apresentam. Hoje estamos informados pela pandemia de Covid-19, sem dúvidas o fato mais significativo de nossa experiência contemporânea, que terá repercussões diretas na saúde, na economia e em todas as áreas”, pontuou o coordenador da Estratégia Fiocruz para a Agenda 2030.
Horizontes para o Estado Social brasileiro
Jorge Abrahão de Castro percorreu uma análise histórica do Estado Social na América Latina e no Brasil, a partir do entendimento do Estado Social em seu sentido restrito, isto é, focado em política social, que pode ser decomposto nas dimensões da previdência, saúde, assistência social, educação, trabalho e renda. “Ao fornecer bens e serviços e transferir renda à população, as ações do Estado Social alteram a estrutura de cidadania e de direitos civis, políticos e sociais dos países. As mudanças no Estado Social se relacionam diretamente com o estágio de desenvolvimento (ou subdesenvolvimento) dos países e com a ordem capitalista global. Vivemos, atualmente, um decisivo momento de teste para o Estado Social, que enfrenta rupturas políticas, intensa mudança econômica e agravamento das condições de vida da população”, contextualizou o economista.
O palestrante elencou quatro momentos do Estado Social na América Latina, de 1930 ao século 21, relacionando-os ao estágio de desenvolvimento dos países. Nesse retrospecto, destacou o estabelecimento do neoliberalismo no continente nas últimas décadas do século 20 e a expressão de um Estado subsidiário-mitigador, que, segundo o pesquisador, “não é visto com bons olhos pelo senso comum”. Em relação ao Brasil, apresentou seis momentos históricos, entre 1930 e 2020, ancorando o tipo de Estado Social ao modelo econômico e ao regime político vigentes.
“Vivemos recentemente a transição de um Estado garantidor, provedor e regulador, que prevaleceu no período de 2003 a 2016, caracterizado pela expansão de direitos e inclusão social, para um Estado subsidiário e regressivo, em um contexto de destruição conservadora, autoritarismo e exclusão social. Podemos dizer que, mesmo com problemas, mesmo que de forma seletiva e até autoritária, de 1930 a 2016 o Brasil experimentou o avanço do Estado Social, a redução da exclusão e a melhora da qualidade de vida. A partir de 2016, vivemos um processo agressivo de regressão excludente. E para 2040, o que podemos esperar?”, resumiu Jorge Abrahão.
Para ele, não existe uma única resolução para o futuro. “Para pensar as diferentes possibilidades, propomos uma ‘régua’, uma escala, que articula o Estado Social máximo a melhores condições de vida e o Estado Social mínimo a piores condições de vida da população. Nesse espectro, temos pelo menos três possibilidades. O modelo subsidiário-mitigador, na direção ao Estado mínimo, tem política fiscal pautada pela austeridade, cobertura restrita de políticas e programas sociais e controle social moderado. O subsidiário-excludente, que se aproxima ainda mais do Estado mínimo, tem abrangência e cobertura de políticas sociais ainda mais reduzidas, um sistema tributário com teto regressivo e participação social marginal. E a proposta de um Estado cidadão está alinhada aos princípios da Constituição Federal de 1988, ancorada em um projeto social que requer Reforma Tributária, revisão dos gastos públicos e elevada participação social, com ampla abrangência e cobertura de políticas e programas sociais e elevada cooperação em gestão, organização e institucionalização. Chegar a este terceiro cenário é possível. É um caminho que requer luta política e, para isso, é necessário reformatar a sociedade”, sentenciou Jorge Abrahão.
Da Constituição Federal de 1988 ao contexto pós-pandemia
Ricardo Carneiro examinou as implicações socioeconômicas da pandemia da Covid-19 e seus possíveis desdobramentos na gestão pública, o que envolve aspectos relacionados à forma como a administração pública se organiza e sua capacidade de formular e implementar as políticas que conferem materialidade à agenda pública. “Nossa análise tem como ponto de partida as dimensões constitutivas do Estado: a funcional e a organizacional, que são estritamente entrelaçadas. A primeira trata do que o Estado faz – ou o que se espera que faça – e a segunda da capacidade estatal para implementar as políticas públicas necessárias. Ambas tendem a se alterar ao longo do tempo, em um processo permanente de mudanças, que podem ser entendidas como reformas do Estado”, apontou o pesquisador.
Ricardo analisou três momentos históricos decisivos para a constituição do Estado brasileiro. O período de 1989 a 2015, marcado primeiro por uma fase de estabilização monetária e de reformas orientadas para o mercado e, depois, pelo crescimento econômico com inclusão social. Os anos entre 2016 e 2019, que compreendem a recente crise econômica e político-institucional, com a substituição de uma agenda pública pautada pelo crescimento com inclusão pela adoção de reformas de orientação pró-mercado, com priorização do ajuste fiscal que ficou conhecido como Teto de Gastos, levando ao aprofundamento do reformismo neoliberal e ao desmantelamento de políticas públicas. “Nesse contexto, a emergência da pandemia de Covid-19 desvela déficits de inclusão social e potencializa vulnerabilidades, escancarando a redescoberta de que o Estado importa. Ao mesmo tempo, assistimos à continuidade do reformismo neoliberal, com a proposição da PEC 32, a PEC da Reforma Administrativa, voltada à contenção dos gastos com o serviço público”, ressaltou.
No horizonte dos próximos 20 anos, para Ricardo, as perspectivas para o Estado pós-pandemia seguem em duas direções. De um lado, a continuidade, em curto prazo, da agenda neoliberal de desmantelamento do Estado, que pode se estender no longo prazo. De outro, a retomada do pacto social da Constituição Federal de 1988, com o fortalecimento dos sistemas nacionais e das estruturas das políticas sociais nas áreas de saúde, assistência social, educação, direitos da criança e adolescente, segurança alimentar e nutricional, habitação de interesse social, desenvolvimento rural e inclusão produtiva, dentre outras.
“Para que este segundo cenário se concretize é necessário reforçar a capacidade de financiamento do Estado e isso passa não apenas pela retomada sustentada do crescimento econômico, mas também pela elevação da carga tributária em relação ao PIB e per capita, na direção oposta às desonerações fiscais que têm sido adotadas como instrumento de política anticíclica nos anos recentes”, ponderou Ricardo. Nesse sentido, o pesquisador recomenda uma estratégia de desenvolvimento focada na resolução de problemas concretos e de longa data da sociedade brasileira, como o enfrentamento das desigualdades no acesso à infraestrutura urbana de transportes, moradia, saneamento básico, habitação popular, educação e saúde. E, também, a adoção de uma agenda abrangente de proteção ao ambiente e a implementação da renda básica de cidadania, conforme a Lei n. 10.835/2004.
Cenários prospectivos para a Saúde
Ana Luiza d’Ávila Viana apresentou três cenários prospectivos para a Saúde, considerando três desfechos: a desglobalização progressista, a desglobalização regressiva e o aceleramento da globalização tecnológica. “Todos esses cenários atravessam e impactam fortemente a organização do sistema de saúde. A trajetória a ser seguida está em construção e as respostas ao modelo de desenvolvimento, bem como o papel, a extensão e o alcance da política social são fortes condicionantes desse processo”, destacou a economista.
O horizonte de desglobalização progressista se aproxima do que Jorge Abrahão e Ricardo Carneiro definiram, respectivamente, como Estado Social máximo e Estado cidadão. A desglobalização regressiva, por sua vez, caracteriza-se pela fragmentação das ações de proteção social, maior uso de recursos privados e maior proteção para cidadãos nacionais e restrições para imigrantes e populações específicas. E a globalização tecnológica prevê a constituição de cadeias globais de proteção social gerenciadas por grandes corporações; a introdução das tecnologias inteligentes na provisão de serviços sociais em substituição ao contato humano; formas permanentes de controle populacional em vários aspectos da vida dos cidadãos, como deslocamentos, modo de vida, morbidades, uso de medicamentos; imbricação acelerada das capacidades físicas e tecnológicas dos sistemas público e privado gerenciado por corporações e consultorias de atuação global.
“O futuro do trabalho em saúde será determinado por esses três cenários e o caminho mais provável é o da globalização tecnológica, um instrumento de fortalecimento da globalização do trabalho, em consequência à globalização do capital, que tem na telemedicina sua expressão mais emblemática no campo da saúde. Sem dúvida, este recurso é uma estratégia de reforma para melhorar o acesso, a continuidade e a qualidade dos cuidados de saúde e ganhou ainda mais importância na pandemia de Covid-19. Mas a telemedicina é acessível a todos, sem distinção, em todas as regiões do país? Qual é o nível de aderência dos pacientes e profissionais a estas novas formas de cuidado? Quais são as consequências sobre as práticas clínicas e o sistema de saúde?”, questionou a economista.
Para o contexto pós-pandemia, Ana Luiza apresentou como cenário intermediário a expansão da cobertura universal, a fusão em áreas específicas, o aumento da segmentação, o uso parcial da inovação responsável e a desvalorização do trabalho. Já para o cenário inercial, que segue a trajetória recente, a pesquisadora aponta o questionamento dos valores universais, a fusão, a globalização tecnológica e a desvalorização do trabalho. Mas, ressaltou a pesquisadora, há também janelas de oportunidade para a reforma do sistema de saúde. “Na perspectiva da desglobalização progressista, vemos um horizonte de reforço da política de saúde universal, novos arranjos e tipos de regulação das relações público-privadas, com uso responsável de tecnologias e valorização do trabalho”, afirmou Ana Luiza.
Em relação à prestação de serviços de saúde, a economista apontou a necessidade de reforçar a governança internacional e as funções de monitoramento e detecção das doenças, priorizar os procedimentos de alta resolutividade e tornar os atuais níveis de e-saúde o ‘novo normal’. Na dimensão da coordenação do cuidado, recomendou alinhar a governança em subsistemas específicos, projetar estruturas em torno da comorbidade como o ‘novo normal’ e criar um sistema central integrado de dados. “As falhas no tratamento excessivo ou de pouca resolutividade vão exigir a mensuração das situações de espera e compras mais rigorosas de acordo com o perfil do cidadão. E, olhando para a complexidade administrativa, percebemos que é preciso colocar um preço nas complexidades administrativas por parte dos pagadores, eliminar subsídios cruzados e estruturar processos de compra coordenados para bens vitais no mercado mundial, de forma a evitar fraudes e abusos”, concluiu.