“É preciso difundir a cultura de compartilhamento e a geração coletiva de conhecimentos e tecnologias na comunidade científica brasileira. E isso requer planejamento de longo prazo e muito investimento”. A recomendação é do sociólogo Mariano Francisco Laplane, presidente do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), que participou do seminário “Iniciativas em Prospecção Estratégica Governamental no Brasil”, realizado pela rede Brasil Saúde Amanhã no dia 27 de julho, na Fiocruz. Nesta entrevista, ele aponta as contribuições dos estudos prospectivos de futuro para o planejamento estratégico de políticas públicas de longo prazo e aponta as tendências para o futuro da Ciência, Tecnologia e Inovação no país. “O Brasil está conseguindo romper a barreira das disciplinas e avançar na formação de profissionais e pesquisadores que trazem a cultura da interdisciplinaridade para o dia a dia. Isso é fundamental para responder aos desafios atuais e futuros, como o das cidades saudáveis”, avalia.

 Qual a importância da realização de estudos de futuro, especialmente no atual momento do país?

O atual momento de incertezas não é exclusividade do Brasil. Está em curso, em todo o mundo, uma série de transformações tecnológicas, geopolíticas e sociais que dificultam a antecipação de cenários e a construção de caminhos que nos levem, no futuro, para um destino desejável, alinhado às aspirações dos cidadãos brasileiros. Especialmente neste contexto, a prospecção do futuro é uma atividade estratégica, sobretudo na forma como é realizada pela rede Brasil Saúde Amanhã: sem tentar adivinhar o que iremos enfrentar, mas propondo as trajetórias que podem nos levar aonde queremos chegar. É uma abordagem extremamente interessante e é recomendável que uma sociedade complexa como a brasileira, com visões e convicções tão distintas, dedique-se a este exercício. Isso é fundamental para que o país possa definir os caminhos que o levem a conquistar seus grandes objetivos. No Brasil, pelo menos na última década, esta direção tem sido a da redução das desigualdades sociais, do aumento do bem-estar e da qualidade de vida, da promoção do acesso a melhores condições de vida e da inclusão social.

No caso brasileiro, em que a concentração de riquezas é muito grande, o cenário de universalidade e equidade só poderá se concretizar por meio da oferta de bens e serviços públicos associados a direitos sociais e a garantias mínimas de bem-estar da população. É esta a proposta da maior política social do Brasil, o Sistema Único de Saúde (SUS). São objetivos ambiciosos, que devem ser acompanhados por exercícios de prospecção estratégica mais específicos, direcionados ao setor Saúde, como vem fazendo a Fiocruz, por meio da rede Brasil Saúde Amanhã. Aonde o Brasil deseja chegar em termos de segurança alimentar e nutricional? Com seu sistema educacional? E em relação à qualidade de vida nas grandes cidades?

Quais as principais metodologias aplicadas na prospecção estratégica do futuro?

São diversas as metodologias e técnicas para geração e gestão coletiva de conhecimento. Dentre elas, são bastante tradicionais a elaboração de cenários, o roadmapping e a construção de consensos por meio de consultas estruturadas. Nos últimos 20 anos, os exercícios de prospectiva estratégica do futuro têm incorporado ferramentas desenvolvidas por grandes corporações para realizar estudos de inteligência competitiva. E, mais recentemente, têm sido incorporados recursos de big data, a partir da evolução das metodologias de processamento e comunicação de informações. O mais importante, no entanto, não são as metodologias em si, pois não há um modelo único para sua aplicação. É preciso combinar essas técnicas de maneira diferente, de acordo com o tema em estudo, o perfil dos atores envolvidos, o tempo disponível.

Então, o foco não deve ser nas técnicas, mas nos mecanismos de participação, validação e legitimação dos resultados obtidos ao longo do processo. Quando feitos dessa maneira, os exercícios de prospectiva estratégica coordenam visões e ações de diferentes atores políticos e sociais, a partir de objetivos consensuais definidos coletivamente. Para que isso ocorra, mais importante que as técnicas é a escolha dos mecanismos de legitimação dos debates e processos envolvidos. Mesmo quando produzem consenso, esses exercícios não substituem a política, mas a alimentam de visões mais bem informadas e efetivamente socializadas. Sem isso, corremos o risco de restringir o conhecimento gerado a documentos, recomendações que não saem do papel e até a legislações que não são cumpridas.

 Quais as perspectivas para a infraestrutura brasileira em pesquisa, desenvolvimento e inovação, no horizonte dos próximos 20 anos?

O grande desafio que o Brasil enfrentará será o compartilhamento de recursos físicos e humanos para a construção e o uso coletivo de equipamentos sofisticados e tecnologias de última geração. Por sua qualidade e excelência, a ciência brasileira de um lado exige instalações mais complexas e mais caras e, de outro, torna possível o uso de plataformas tecnológicas de ponta. São investimentos muito caros. O Brasil viveu um momento de grande expansão, qualificação e descentralização da comunidade científica pelo território nacional. Agora, para enfrentar os desafios do futuro, será preciso concentrar esforços em investimentos de grande escala, como o novo projeto Sirius do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron, no Centro Nacional de Pesquisas em Energia e Materiais (CNPEM), em Campinas, ou o reator multipropósito.

Toda essa complexidade científica e tecnológica traz desafios muito importantes. São projetos de longo prazo, que requerem investimentos contínuos e não podem ser interrompidos, ou se tornarão obsoletos antes mesmo de serem concluídos. Não será possível ter um equipamento desses em cada universidade, sequer em cada cidade ou região. Portanto, devem ser instalações de uso coletivo, o que traz muitos desafios em relação à gestão, ao uso e ao compartilhamento de recursos na comunidade científica e no mercado empresarial. Trata-se de uma questão proposta pelo amadurecimento e aprimoramento da ciência brasileira, portanto, é um bom desafio a ser enfrentado pelo país nas próximas décadas. É preciso difundir a cultura de compartilhamento e a geração coletiva de conhecimentos e tecnologias na comunidade científica brasileira. E isso requer planejamento de longo prazo e muito investimento. Se o Brasil for bem sucedido nesta dinâmica, certamente atrairá pesquisadores e instituições estrangeiras que terão muito a contribuir.

Em relação à formação e à qualificação de recursos humanos, quais as tendências e desafios para as próximas décadas?

Há uma situação nova e desafiadora também nesta área. Nas últimas décadas, o Brasil expandiu amplamente a sua capacidade de formação de recursos humanos, com mestres e doutores altamente qualificados disponíveis para atuar na academia, no Estado, nas empresas. Podemos considerar essa expansão vitoriosa porque ela se deu por meio de três virtudes. A primeira é a descentralização territorial: a pós-graduação, que estava restrita ao Sudeste e a alguns poucos locais fora desta região, avançou e hoje está presente no Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Além disso, a expansão do sistema acadêmico e científico brasileiro acompanhou a tendência global da interdisciplinaridade – a área do conhecimento que mais vem crescendo em todo o mundo. O Brasil está conseguindo romper a barreira das disciplinas e avançar na formação de profissionais e pesquisadores que trazem a cultura da interdisciplinaridade para o dia a dia. Isso é fundamental para responder aos desafios atuais e futuros, como o das cidades saudáveis. É impossível atuar sobre esta questão por meio de apenas uma disciplina. Um conjunto de saberes precisa ser articulado.

 Ao longo de todo esse processo, o sistema acadêmico e científico brasileiro vem se tornando cada vez mais variado e complexo. Se antes estava apoiado numa rede de poucas universidades estaduais e federais de alto nível, agora consolida-se com programas de pós-graduação expressivos em universidades federais e instituições particulares. O sistema se tornou mais diversificado também nas opções que oferece aos candidatos. Nos últimos 15 anos assistimos à explosão dos mestrados profissionais. Acreditou-se que esta modalidade poderia substituir o tradicional mestrado acadêmico, mas a experiência mostrou que este perfil formativo atende a uma demanda que antes não era contemplada: o brasileiro que se formou há 10 ou 15 anos, já está inserido no mercado de trabalho e deseja voltar para universidade e obter uma qualificação que o mercado e os treinamentos corporativos não oferecem. A trajetória da pós-graduação brasileira é uma trajetória satisfatória, mas que já precisa se reinventar. Por exemplo, é preciso reforçar a área de exatas, as diversas engenharias, para enfrentar alguns dos desafios que se colocarão para a sociedade brasileira no futuro. O Brasil precisa de mais foco, mais planejamento de longo prazo, mais seletividade e maior poder de indução de seu sistema acadêmico e científico.

Renata Leite
Saúde Amanhã
01/08/2016