Mãe de três filhos, Paula Clark guarda de cada parto muitas lembranças, nem todas agradáveis. Foram duas cesáreas seguidas de um parto normal (ver pág. 20). O parto de Fernanda, a primeira filha, foi doloroso e cheio de intervenções. Ao engravidar, dez anos atrás, não obteve respostas seguras da médica sobre como daria à luz. “Ela só falou que na hora é que iria saber”. O parto, realizado em maternidade particular, na Zona Sul do Rio de Janeiro, ficou longe de ser uma celebração da vida e poderia ter terminado com sequelas ou até na morte do bebê, em uma sucessão de procedimentos médicos, um puxando o outro.

“Na sala de pré-parto, uma assistente da médica, que eu sequer conhecia, tentou acelerar as contrações que até então não doíam. Depois disso, senti muita dor e pedi para receber analgesia. Deu tudo errado”, conta a analista de sistemas, que acabou tendo seu bebê com anestesia geral. “Na época, achava que a equipe tinha salvado minha filha. Hoje tenho consciência de que, se a fisiologia do corpo tivesse seguido seu curso natural nada disso teria acontecido”.

A experiência de Paula, 42 anos, se repete em boa parte dos partos realizados em maternidades públicas e privadas do país, como comprovou a pesquisa Nascer no Brasil, da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), o primeiro levantamento nacional sobre parto e nascimento, divulgado em maio (Radis 117). A pesquisa trouxe resultados inéditos sobre a forma como as brasileiras dão à luz e confirma que a assistência ao parto vaginal no Brasil é de má qualidade. Os dados  orientam o Projeto de Lei nº 7.633/14, do deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ), que dispõe sobre a possível limitação do número de cesarianas realizadas no país.

Os dados mostram que a cesariana, que deveria ser uma intervenção utilizada apenas para beneficiar mulheres e crianças em situação de risco, é o meio mais utilizado na hora do parto, sendo acompanhado pela assistência de baixa qualidade e pelo excesso de intervenções. “O parto no Brasil está fora dos padrões recomendados pelas evidências científicas: é intervencionista, extremamente doloroso e baseado em práticas já superadas e não atualizadas”, diz a médica epidemiologista da Ensp, Maria do Carmo Leal, coordenadora da pesquisa.

De acordo com a pesquisa, os índices brasileiros estão longe das taxas decrescentes apresentadas pelos países desenvolvidos: do total de partos realizados em todo o Brasil, entre fevereiro de 2011 e outubro de 2012, 52% foram cesarianas. No setor privado, que atende, em sua maioria, mulheres com mais escolaridade e maior poder aquisitivo, os índices chegam a 88% dos nascimentos. No setor público, envolvendo os serviços próprios do SUS e os contratados do setor privado, chegam a 46%. Apenas considerando os partos realizados na rede própria do SUS (de instituições federais, estaduais e municipais), o índice é menor, de 38%, mas nem por isso deixa de impactar. Comparativamente, os Estados Unidos, país conhecido pelo alto nível de intervenção nos serviços de saúde, têm 31% de cesáreas.

Pesquisando o parto e o nascimento há 20 anos, Maria do Carmo afirma que não há justificativas clínicas para percentual tão elevado. “A cesárea não é o método mais seguro para parir. Nos últimos dez anos, estudos vêm mostrando seus malefícios, que não eram muito claros. Há riscos presentes e futuros que comprometem a saúde da mulher e da criança e aumentam os gastos com a saúde”, alerta. Para a mãe, aumenta o risco de hemorragia, infecção e morte materna, além dos prejuízos para a vida reprodutiva, como a implantação anormal da placenta em gravidezes posteriores, enumera. “A cesariana também se relaciona com o atraso na amamentação e com maior dificuldade de recuperação no pós-parto”, diz, lembrando que uma “intervenção capaz de provocar um dano não poderia ser banalizada”, só devendo ocorrer quando realmente necessária.

Modelo cirúrgico

Segundo a pesquisa, o modelo cirúrgico atinge as mães adolescentes, que vivenciaram seu primeiro parto e estão no início de sua vida reprodutiva: 42% delas, que representaram 19% do total de mulheres do estudo, fizeram cesariana. A tendência é que realizem novas cesáreas em partos futuros.

Com a cesariana tomada como o meio mais rápido para o nascimento, tanto entre mulheres de baixo risco (45,5%) quanto entre as que apresentam algum problema de saúde (60,3%), o país ostenta a maior taxa de cesárea em todo o mundo. O percentual total continua muito acima dos 15% recomendados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para prevenir morbidade e mortalidade materna e neonatal. A tendência de crescimento é contrária ao observado em países como Suécia e Hungria (menos de 20%) e Portugal (35%), que se empenham em reduzir o número de cesáreas.

Sem preparo

De acordo com o estudo, anualmente, mais de um milhão de mulheres são submetidas à cesárea, a maior parte sem o preparo necessário para definição do processo pelo qual vão parir. Por esse motivo, a pesquisadora entende a razão de 47% das mulheres que terão o primeiro filho preferirem cesariana, apontando o medo da dor do parto como principal motivo. Para Maria do Carmo, é justamente a “cascata de intervenções dolorosas” que colabora para o aumento do desejo pela anestesia e pela cirurgia: no Brasil, 28% das mulheres em início da gestação dizem desejar a cesariana, percentual que, no mundo, fica entre 10% a 15%.

De acordo com o estudo, pouco mais da metade (57%) das mulheres que desejavam ter parto normal alcançaram esse objetivo: 63% no setor público e apenas 21% no privado. Das mulheres que desejaram a cesariana, 73% tiveram esse parto, sendo que esse percentual foi de 97% no setor privado. Os dados, segundo ela, comprovam que,se a decisão da mulher pela cesárea é respeitada, o mesmo não ocorre quando se trata de normal.

Maria do Carmo registra que, de acordo com a pesquisa, 69% das mulheres informaram acreditar inicialmente que o parto vaginal tem recuperação mais rápida. A orientação recebida no pré-natal, no entanto, é um dos fatores de indução a maior aceitação da cesariana: o parto cirúrgico organiza a vida dos médicos, considera a pesquisadora. “Muitos obstetras preferem a cesariana por uma questão de conveniência ou convicção de que ela é melhor do que o parto normal”, afirmou. Informações da pesquisa indicam ainda que, entre as mulheres que realizaram uma cesariana, apenas 15% tiveram um parto vaginal na gestação seguinte. “Ou seja, no Brasil, vale o preceito de uma vez cesárea, sempre cesárea”, observa.

Mortalidade materna

A pesquisa revela também que o número excessivo de cesarianas eletivas e um conjunto de intervenções, nem sempre necessárias, no parto vaginal, podem ser fatores contribuintes para a dificuldade em reduzir os níveis de mortalidade materna (um dos Objetivos do Desenvolvimento do Milênio que o Brasil não conseguirá atingir). Segundo Maria do Carmo, tanto a qualidade do pré-natal, que deixa de prevenir algumas complicações como hipertensão arterial, hemorragias e sífilis congênita, quanto o excesso de intervenções durante o trabalho de parto e o parto podem impactar os índices. “É surpreendente que, com um aumento na cobertura da assistência ao parto hospitalar e da assistência ao pré-natal, nós tenhamos tanta dificuldade em baixar os índices da mortalidade materna”, diz Maria do Carmo.

As cesáreas eletivas também podem estar relacionadas ao aumento de nascimentos prematuros, antes de 37 semanas de gestação, cuja prevalência no Brasil foi de 11,3%, 60% mais que na Inglaterra e País de Gales. De acordo com a pesquisa, há uma epidemia silenciosa de nascidos com 37 a 38 semanas no Brasil, e essas crianças são mais frequentemente internadas em Unidades de Terapia Intensiva Neonatal (Utin), necessitam de maior suporte ventilatório para respirar, além de terem maior risco de morbidade e mortalidade.

Para Maria do Carmo, nada substitui o útero materno. “A tecnologia é utilizada para tentar dar à criança condições semelhantes às do útero. É o que a medicina pode fazer naquele momento. É bom poder oferecer esses recursos, mas é preciso considerar os prejuízos da perda de oportunidade do encontro da mãe com o bebê, da relação afetiva que se estabelece no momento do nascimento”, comenta.

A pesquisa revelou também que uma parte significativa de maternidades públicas e privadas não apresenta conjunto completo de medicamentos e equipamentos necessários aos atendimentos de emergência, tanto para a mulher como para o recém-nascido. Os resultados indicam que “uma proporção importante de mães e recém-natos foi exposta a riscos desnecessários e evitáveis”.

 Medicalização

A predominância da medicalização abusiva, com excesso de intervenções inclusive no parto vaginal (medicamentos, anestesia, episiotomia, isto é, incisão na região do períneo) foi também notada pela pesquisa mesmo entre as mães de baixo risco e que tiveram esse tipo de parto: apenas 25% puderam se alimentar durante o trabalho de parto, 46% foram estimuladas a se movimentar e 28% tiveram acesso a procedimentos não farmacológicos para alívio da dor. No Brasil, só 5% das mulheres puderam vivenciar um parto sem alterações na fisiologia do trabalho de parto – índice muito inferior aos 40% observados no Reino Unido, por exemplo. O uso do medicamento ocitocina, para acelerar as contrações, não deve ser rotineiro. “Ele pode levar o útero à exaustão, interferindo no processo natural do trabalho de parto”, alerta a médica. Dar à luz deitada, de costas e com alguém apertando a barriga  da mulher (manobra de Kristeller), além da episiotomia, para facilitar a passagem do bebê, são outros recursos que causam dor e sofrimento evitáveis.

Para cerca de 95% das mulheres, apenas o fato de estar hospitalizada é tido como sinônimo de ser objeto de procedimentos, a maioria caros e não necessários, diz a pesquisa. As boas práticas durante o trabalho de parto ocorreram em menos de 50% das mulheres, sendo menos frequentes nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste e mais frequentes nos hospitais próprios do SUS.

Foram verificadas também as condições de saúde mental materna, detectando que 26% das mães entre 6 e 18 meses após o parto passam por depressão, mais frequente nas mulheres de baixa condição social e econômica, pardas e indígenas, nas mulheres sem companheiro, que não desejavam a gravidez ou que já tinham três ou mais filhos.

Política pública

O estudo encontrou alto percentual de mulheres (75%) acompanhadas em algum momento durante o parto. Esse dado comprova a eficácia da Lei nº 1.108, de 2005, que garante direito de acompanhante de livre escolha da mulher durante toda a sua permanência no hospital, e mostra “a força de uma política pública para modificar a cultura do nascimento”. O quesito, no entanto, revelou também que as parturientes sofrem discriminação de ordem social e racial: a presença contínua de acompanhante durante o período de internação deu-se com menos de 20% das mulheres, sendo estas com maior renda e escolaridade, brancas, usuárias do setor privado e que tiveram a cesariana como opção de parto, mostrou o levantamento.

Já a Lei nº 11.634, de 2007, que determina que toda gestante tem direito de saber, durante o pré-natal, onde o filho nascerá não foi posta em prática da mesma forma: 41% das mulheres não sabiam em qual maternidade teriam o bebê.

Quanto aos cuidados com o bebê, entre os recém-nascidos saudáveis, a pesquisa mostrou que apenas 28% tiveram contato pele a pele com a mãe após o nascimento, 16% receberam o seio na sala de parto e 44% mamaram na primeira hora. “Esses dados estão em franco contraste com a bem sucedida política de amamentação que o Brasil adotou nos últimos 20 anos”, diz Maria do Carmo.

Práticas inadequadas continuam a ser aplicadas aos recém-nascidos saudáveis na sala de parto: 71% tiveram as vias aéreas superiores aspiradas, 39% passaram por aspiração gástrica, 9% foram para o inalador e 9%, para a incubadora. Segundo a pesquisa, quanto maior o poder aquisitivo, maior o uso de práticas não recomendadas. Outro ponto é que a cesariana colaborou significativamente para a separação mãe-bebê, em contraste com o parto vaginal.

Atuação simultânea

A reversão dos resultados encontrados pela pesquisa, observa Maria do Carmo, depende de atuação simultânea de diversos setores. “A proposta da Rede Cegonha, do Governo Federal, é positiva”, considera. Para ela, o processo de mudança será longo e, entre as iniciativas a serem tomadas, algumas envolvem a mudança na formação médica e a atuação e valorização da enfermagem obstétrica e das obstetrizes no atendimento ao parto.

“É necessário também investir em campanhas de massa dirigidas às mães e familiares para que entendam que a cesárea implica riscos para a mãe e o bebê. Muita tecnologia traz a sensação de que há muito cuidado. Mas é o oposto”, analisa a pesquisadora, alertando que o modelo da cesárea como boa forma de parto está presente no imaginário social e deve ser descontruído, o que, em sua visão, não é tarefa fácil. A mudança, porém, já está em curso: “Percebo aumento da participação das mulheres na luta por um bom parto, conduzido por elas, e também um movimento entre os profissionais de saúde, no setor público e privado, na busca por uma mudança no modelo de atenção obstétrica”.

O estudo

Nascer no Brasil é um estudo multicêntrico, coordenado pela Fiocruz, com a parceria do Ministério da Saúde, da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e instituições públicas de ensino superior do país. Os pesquisadores acompanharam o pré-natal e o parto de 23.894 mulheres atendidas em maternidades públicas, privadas ou conveniadas ao SUS, que realizaram mais de 500 partos, entre fevereiro de 2011 e outubro de 2012. Foram coletados dados em 266 hospitais de 191 municípios, incluindo todas as capitais e cidades do interior de todos os estados. Os resultados da pesquisa foram publicados em um número temático dos Cadernos de Saúde Pública, com 14 artigos originais.

Os dados embasarão os debates de dois encontros que serão realizados em outubro, no Rio de Janeiro, e que vão mostrar as evidências científicas favoráveis à realização do parto por via natural e menos medicalizado. De 10 a 13/10, será realizada, em Búzios, a 9ª Conferência Internacional – Parto e Trabalho de Parto Normais, dirigida para acadêmicos, pesquisadores e legisladores que trabalham na área de serviços de maternidades. Como desdobramento do evento, a capital carioca sediará, de 14 a 16/10, o encontro Ecos da Conferência – Normal é Natural: da pesquisa à ação, cujo debate visa reforçar a ideia de que o parto e o nascimento devem ser cuidados sem a excessiva medicalização.

Revista Radis, 01/08/2014