Nas três últimas décadas a sociedade brasileira desenvolveu um imenso esforço para organizar e colocar em funcionamento o Sistema Único de Saúde, que traz em si um projeto de sociedade e um modelo de desenvolvimento, que se expressam em valores civilizatórios como igualdade, democracia e emancipação. Nessa concepção, a saúde é um valor social que articula cuidados individuais e coletivos ao desenvolvimento econômico e direitos humanos.
O SUS, resultado dos esforços de movimentos sociais e forças políticas progressistas, resistiu ao tsunami neoliberal da década de 1990, mas essa construção societária e os interesses nacionais estão sob forte ataque e, a saúde como valor solidário, direito de cidadania e dever do estado nunca esteve tão ameaçada como agora.
São expressivos e, objeto de reconhecimento internacional, os avanços na atenção primária através da Estratégia de Saúde da Família (PSF), na Política Nacional de Imunização (PNI), na redução expressiva da mortalidade infantil, na Vigilância Epidemiológica e Sanitária, na política de Assistência Farmacêutica, de transplantes, no Samu, na política de Aids, na Reforma Psiquiátrica, no combate ao uso de tabaco, na política do sangue, entre outras políticas públicas.
O campo da pesquisa e inovação se fortaleceu graças ao apoio político e financeiro do Ministério da Saúde, assim como a implantação, a partir de 2008, de um dos exemplos mais bem-sucedidos de política industrial voltada para o fortalecimento da capacidade nacional na cadeia produtiva de saúde humana. A Política de Desenvolvimento Produtivo, que tem como principal instrumento parcerias entre laboratórios oficiais e empresas com produção local para o desenvolvimento e produção de produtos essenciais ao SUS.
Esse processo permitiu que o país construísse uma forte base tecnológica e de cuidados que hoje atende às necessidades de parte importante da população brasileira, com grande impacto nas condições de vida e de redução de iniquidades e desigualdades.
A magnitude e relevância dessas realizações sem dúvida teria sido mais expressiva, de maior alcance e de resultados mais profundos, não fossem os impasses estruturais, resultantes de uma visão fragmentada e financista sobre o cuidado à saúde, que impuseram ao longo de toda a implantação do SUS, fortes limites orçamentários e financeiros que impediram a plena realização de seus fundamentos e geraram estímulos à privatização.
A política de aprofundamento de cortes dos gastos sociais, no atual contexto de negação de direitos, de desvalorização das políticas universais e ajuste fiscal neoliberal, intensificam retrocessos e ameaçam descaracterizar definitivamente o SUS conformando um projeto que trata o cuidado à saúde como mercadoria.
A tentativa de aniquilamento do SUS se contrapõe também à compreensão do processo saúde-doença e do conceito ampliado de saúde. Desde a modernidade o pensamento cientifico afirma a natureza simultaneamente biológica, subjetiva e social dos problemas de saúde. Essa base constitutiva dos sistemas e políticas universais de saúde está sendo desconstruída pela reintrodução de concepções individualistas, medicalizantes e mercantis do consumo de serviços de saúde.
As reformas que vêm sendo implementadas pelo governo apoiadas na obsessão na redução do “déficit fiscal”, representam uma ruptura radical com os preceitos da Constituição Cidadã de 1988 e inviabilizam a realização de direitos sociais fundamentais como a saúde e a proteção básica aos trabalhadores, aposentados e idosos, mesmo que isso implique na redução expressiva dos gastos sociais.
A visão hegemônica no governo e no parlamento é de que a Saúde, ao invés de investimento, é gasto e que a gestão em moldes empresariais e a redução dos dispêndios são prioridades absolutas, ainda que comprometam a qualidade e universalidade do cuidado à saúde. Daí também decorre a visão largamente disseminada de que o SUS não pode ser universal, pois “não cabe no orçamento” e deve se destinar a prover cuidados mais simples aos mais pobres. Essa visão equivocada desconhece que as atividades relacionadas ao setor saúde – serviços, medicamentos, vacinas e equipamentos -, respondem por cerca de 8,5% do PIB e incorporam setores estratégicos de inovação – tecnologia de informação, biotecnologia, microeletrônica química fina, nanotecnologia, entre outros – com ampla repercussão em todos os setores da economia, responderam por 10% dos postos formais de trabalho qualificado e empregando em torno de 9,5 milhões de brasileiros em 2015.
A disseminação da imagem de um SUS precário, estruturalmente capturado por trocas político-partidárias, atendendo a interesses privados e insustentável com recursos públicos, apaga da percepção pública os importantes avanços obtidos e fragiliza sua sustentação social. Tal acepção, embora equivocada, se apoia também nos reais empecilhos enfrentados pela população que recorre ao SUS. Apesar do gigantesco esforço de gestores, profissionais, movimentos e entidades comprometidas com o SUS, a experiência cotidiana da população é com frequência negativa em termos de acolhimento, acesso e qualidade.
A falta de compreensão sobre os princípios do SUS e a abrangência de seu campo de atuação, associada à experiência cotidiana deficitária nos serviços de assistência, leva a população brasileira a não ver o SUS como um patrimônio da nação e política social a ser preservada e valorizada como bem comum de valor inestimável como ocorre em outros países com sistemas universais de saúde, a exemplo do Reino Unido.
Cabe também aos defensores do SUS e aos profissionais de saúde, em particular ,a tarefa indeclinável de propor, debater e adotar modelos de gestão e práticas sanitárias que contribuam para a melhoria da qualidade das ações e práticas em saúde. A rejeição liminar a toda e qualquer crítica e a toda e qualquer iniciativa de monitoramento de avaliação de qualidade da atenção à saúde, acentua a fragilidade da base social de sustentabilidade política do SUS.
A justa defesa dos direitos corporativos dos trabalhadores do SUS não pode estar desconectada dos compromissos com a saúde da população e o divórcio entre essas duas dimensões termina por reforçar os interesses particulares de uma elite composta por corporações, sindicatos, setores empresariais, classe média, trabalhadores especializados e grande parte dos funcionários públicos, que mantiveram seus próprios esquemas assistenciais particulares como serviço suplementar ao SUS. Esse, o maior ataque ao SUS, e que decorre do intenso processo de mercantilização e privatização da assistência expressa no significativo crescimento do setor privado, sustentado em parte por uma política de incentivos e subsídios que subtrai em torno de R$ 25 bilhões anuais do sistema público.
Por outro lado, esse modelo de desenvolvimento excludente e fragmentado impede que a macro determinação da saúde, a que gera doença e sofrimento, seja priorizada, a exemplo da vergonhosa situação do saneamento básico, da contaminação do ar e da água, do uso de pesticidas sem controle, dos acidentes de trânsito e de trabalho, dos homicídios que se contam às dezenas de milhares por ano, da violência cotidiana dos sistemas de transporte urbano de massa, do abandono, do preconceito, da injustiça generalizada que causa dor, sofrimento, doença e morte.
O Brasil está saindo de uma rota na qual, ainda que insuficientes, direitos de cidadania, foram efetivados, para a imposição de uma trajetória baseada na indiferença moral para com a maioria da população. Essa ameaça brutal de desumanização dos excluídos, de revogação de pertencimento à nação, afeta as instituições de educação, cultura, pesquisa, saúde, previdência e assistência social. Assim, a reafirmação de um sistema público e universal no campo da saúde fundamenta-se, em primeiro lugar, em princípios civilizatórios e de justiça, mas também em evidências sobre as vantagens dos sistemas públicos universais em termos de custo-efetividade nas comparações com outros modelos, baseados no setor privado, planos e seguros de saúde.
Por ser a expressão real desses valores, a defesa de uma saúde pública moderna, de qualidade e respeitada pela sociedade deve ser baseada em uma ética do cuidado e na sustentabilidade política, econômica e tecnológica do SUS.
Portanto, para que o centro da política de saúde gravite em torno do cidadão e que a cidadania ocupe centralidade no cuidado e para que a democracia e soberania nacional tornem-se valores sociais sustentados por todos, apresentamos as seguintes proposições para debate:
- A defesa de um padrão de desenvolvimento que articule crescimento econômico com respeito aos ciclos da natureza, economia com democracia, integração entre as políticas sociais e priorização da qualidade de vida;
- Defesa absoluta do SUS público, universal e sustentável em termos de recursos financeiros, organizacionais e políticos;
- Revogação da PEC 55; implementação de uma reforma fiscal e tributária, que contemple a revisão da questão da dívida pública, da efetiva implantação do imposto sobre grandes fortunas e heranças, e outras medidas que garantam a sustentabilidade econômica do SUS
- A implementação de políticas para a redução das barreiras impostas pela atual lei de propriedade intelectual, especialmente na proteção de patentes, que impedem o acesso a medicamentos, pela imposição de preços muitas vezes extorsivos. Para isso, assegurar o direito de utilizar as denominadas flexibilidades do Acordo TRIPS da OMC, como a emissão de licenças compulsórias para a sustentabilidade do direito à saúde.
- Informar com clareza para a sociedade de que um sistema público é não apenas o modelo mais justo de prover atenção à saúde, mas, também o mais custo efetivo. Ação política, informação, consciência para acumular poder para que os movimentos sociais e partidos políticos progressistas advoguem essa causa;
- Ampliação da participação Comunitária e garantia da natureza deliberativa de Conselhos e Conferências, e sua participação na definição de orçamentos, transparência no alocação e uso dos recursos públicos, monitoramento e combate ex-ante a desvios;
- Vedação progressiva de qualquer tipo de subsídio público direto ou indireto para o setor de planos e seguros saúde;
- Adoção de contratos baseados na racionalidade pública para a concessão de títulos de filantropia e demais organizações sem fins lucrativos direta e indiretamente envolvidas com o SUS
- Modelo de atenção centrado na atenção primária à saúde como elemento central na coordenação do sistema e integralidade dos cuidados;
- Construção de uma nova institucionalidade para a administração pública e de um novo modelo de macro governança para redes assistenciais e regiões de saúde
- Defesa de uma administração moderna e qualificada na saúde. Fim do loteamento político-partidário de cargos no Ministério da Saúde, nas Agências Reguladoras e na direção de unidades assistenciais públicas.
- Fortalecimento da política voltada para o fortalecimento do Complexo Econômico Industrial da Saúde, incluindo ministérios e órgãos da área de ciência e tecnologia, com o fortalecimento da pesquisa, desenvolvimento e inovação em nossas instituições nacionais.
FÓRUM PELA DEMOCRACIA E SAÚDE
José Gomes Temporão, médico sanitarista, ex-Ministro da Saúde
Ana Tereza Pereira, médica sanitarista
Anamaria Schneider, sanitarista
Armando Nogueira
Carlos Ocké-Reis, economista
Celia Almeida, pesquisador
Ceres Albuquerque, sanitarista
Christovam Barcellos, geógrafo, pesquisador
Claudia Medina
Claudia Travassos, médica, pesquisadora
Eleny Guimarães-
Teixieira Evangelina Oliveira, geógrafa
Fernando Szklo, médico
Francisco D’Angelo, médico, deputado federal
Francisco Viacava, médico, pesquisador
Gustavo Noronha, economista
Hermano Castro, médico, pesquisador
Jandira Feghali. Médica, deputada federal
João Sicsú, economista
Jorge Bermudez, médico, pesquisador
José Noronha, médico sanitarista
Kenneth Camargo, pesquisador
Ligia Bahia, médica sanitarista, pesquisadora
Liliane Penello
Lucia Souto, médica
Luciana Lima, médica, pesquisadora
Margareth Portela, engenheira, pesquisadora
Maria Thereza Marcilio
Paulo Bonilha
Paulo Buss
Paulo Gadelha
Pedro Gabriel Delgado
Reinaldo Guimarães
Telma Ruth Pereira
Fonte: Abrasco