O governo federal, por meio da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 287/2016, apresentou projeto de Reforma da Previdência, que, se aprovado, criará novas regras de idade e tempo de contribuição do trabalhador. Se as novas regras passarem, a aposentadoria será concedida aos brasileiros a partir dos 65 anos. Além disso, para adquirir esse direito, o trabalhador deverá ter contribuído por, no mínimo, 25 anos. No caso das mulheres, a idade mínima é de 62 anos.

A medida do governo tem gerado inúmeras dúvidas sobre as regras de transição, a diferença de classes, seus impactos e, principalmente, pela falta de diálogo com as inúmeras classes de trabalhadores. Com base na discussão, o Informe ENSP coletou depoimentos de diferentes profissionais de saúde, entre pesquisadores, professores e atuantes no serviço. Nos discursos, preocupações com o contexto econômico, a perda de direitos, a diferença de classes e os impactos na saúde.

Maria Angélica Borges dos Santos, pesquisadora da Ensp e especialista em Planejamento, Gestão e Avaliação de Serviços e Tecnologias de Saúde; Logística em Saúde; Contabilidade em Saúde e Economia da Saúde

 

No que tange à discussão sobre a Reforma da Previdência, o que predomina no debate é a importância da reforma em função do impacto da previdência sobre as contas públicas, ou seja, há uma discussão a respeito da dimensão contábil da reforma.

Entretanto, existe uma segunda dimensão importante: a viabilidade dessa reforma, principalmente em virtude do que se considera um “brasileiro médio”, uma vez que tal perfil pertence ao sexo feminino, isto é, é um trabalhador com pouca qualificação, limitada instrução e está, neste momento, com cerca de 40 anos. Essa é a informação geral apresentada pela última edição do Censo.

Então, é necessário analisar qual será o impacto dessa reforma sobre a pessoa média e quais os problemas devem ser abordados antes de sua implementação.

A primeira dimensão revela o seguinte: um estudo recente do Ipea mostra que a mulher trabalha quase seis anos a mais que o homem – quando se leva em conta o “plus” de trabalho doméstico dessa mulher média. Ou seja, a premissa da reforma de que homens e mulheres devem ter idade iguais para se aposentar cai por terra, uma vez que não se trata de um parâmetro justo considerando a carga extra da mulher.

A segunda dimensão está relacionada à baixa qualificação da mão de obra. Com base nisso, a reforma deve contemplar algum aspecto que diferencie os regimes de previdência para quem é trabalhador braçal e apresenta enorme desgaste físico ao longo da sua vida laboral. Aos 45 anos, uma pessoa que atua na construção civil pode estar completamente desgastada, o que contrasta com uma pessoa de nível superior, um doutor, o qual tem possibilidade de produzir perfeitamente até os 70 ou 80 anos caso não seja acometido por alguma doença. Portanto, a segunda dimensão deve ponderara acerca do modo como essa reforma impactará as diferentes categorias laborais e o que é justo em relação a isso.

O terceiro ponto aborda a crise econômica do país e a oferta de empregos: se a reforma vai “alongar a vida ativa das pessoas”, seja lá o que decidido para o tempo de contribuição ou para a idade mínima, é preciso garantir que haja atividade para essas pessoas exercerem. No contexto atual, de baixa criação de postos de emprego e pouca disponibilidade de trabalho, essa é uma dimensão complicada para pensarmos a Reforma da Previdência.

Leonardo Castro, doutor em antropologia e analista da Vice-Direção de Ensino da ENSP

As reformas que vêm sendo propostas pelo governo Temer chamam a atenção pelo caráter autoritário: a EC 95, que cria o tal “novo regime fiscal”, que nada mais é do que um congelamento do gasto social por 20 anos, foi aprovada sem que se desse espaço mesmo para um debate técnico, que fosse. Foi aprovada na base do rolo compressor. A reforma da previdência vai pelo mesmo caminho, ou melhor, o governo vai tentar passar também à toque de caixa, mas certamente não será tão simples, porque provoca um impacto grande e imediato na vida de muitas pessoas e isto está ficando cada vez mais claro para um maior contingente da população.

E o contexto político brasileiro, hoje, tem alguns componentes verdadeiramente bizarros: há uma grande pressão sobre o Congresso que vem não dos eleitores ou da assim chamada “opinião pública” mas, sim, das delações obtidas pela operação Lava-Jato cujos conteúdos vêm sendo vazados sistematicamente e reverberados com grande estardalhaço pela mídia. Nesse contexto, importa menos aos supostos representantes do povo desagradar o eleitorado do que salvar a própria pele, a expectativa de muitos deles é que se entregarem a “encomenda”, isto é, as reformas antipopulares que estão na mesa, aumentam as chances de “estancar a sangria” conforme o dito já famoso do ex-ministro que hoje é líder do governo no Senado. É uma tragédia da democracia brasileira, nosso sistema tem sido historicamente corrompido pelo financiamento privado das campanhas eleitorais, com todas as distorções e desvios, caixa dois etc. que fez o sistema se mover décadas a fio. Porém, a criminalização súbita dessas práticas – que ocorreu com o único objetivo de apear do poder o Partido dos Trabalhadores, mas provocou efeitos colaterais que atingiram o sistema como um todo – gerou uma instabilidade muito grande.

E, claro, há os efeitos econômicos dessa instabilidade, que agravam a crise fiscal do Estado e aumentam ainda mais a pressão sobre o subsistema político. O que vem sendo dito pelos arautos midiáticos das reformas neoliberais em curso? Que somente o ajuste nas contas públicas trará de volta a “confiança” dos agentes econômicos e propiciará o retorno do investimento e, assim, do crescimento econômico e tudo se resolve. Na prática, querem subtrair direitos trabalhistas e previdenciários para viabilizar um novo ciclo de acumulação. Veja bem, tudo isso é muito duvidoso, essa agenda vem sendo aplicada em vários países nos últimos anos e os resultados são pífios. Recentemente, até diretores do FMI reconheceram que as tão propaladas medidas de “ajuste estrutural” que foram a panaceia vendida pelo próprio Fundo para os países emergentes não entregam o que prometem, ao contrário, geram recessão (o artigo pode ser consultado no link: http://www.imf.org/external/pubs/ft/fandd/2016/06/ostry.htm). Aqui impera uma interdição cínica deste debate, notadamente pela mídia empresarial, que propaga uma pseudo ortodoxia que muitos economistas do mainstream começam a questionar. O aumento da desigualdade que resulta quase invariavelmente das políticas de austeridade sempre impacta negativamente a sustentabilidade do crescimento. Isso é cada vez mais evidente, mas questionamentos como esses aqui ainda são anátema…

Há, de fato, um déficit de previdência? Depende de como se olha. O orçamento da seguridade social tal qual estabelecido pela Constituição vem sendo desrespeitado desde 1994, com a criação do tal Fundo Social de Emergência, em seguida pelo Fundo de Estabilização Fiscal e mais a frente pelas sucessivas “desvinculações de receitas”. Nada disso está sendo debatido, há uma interdição pairando sobre a questão, assim como está interditado o debate relativo às empresas devedoras do sistema previdenciário. O ajuste será feito em cima dos trabalhadores e ponto final, os trabalhadores é que terão que se aposentar mais tarde e receber menos! Há distorções e privilégios no sistema previdenciário brasileiro? Certamente, mas a proposta apresentada mantém a maior parte deles. Militares e o Judiciário serão pouco afetados, assim como outros segmentos ligados ao aparato repressivo e judicial. Há problemas de sustentabilidade a médio prazo? Sim, algum ajustamento seria necessário, porque de fato há um aumento da expectativa de vida, mas não há uma discussão pública que contribua para o esclarecimento da questão e do seu real impacto.

Há outras questões complicadas, que envolvem potenciais efeitos das reformas propostas umas sobre as outras. Como já foi ressaltado pela Laura Carvalho (economista, professora da USP), o PL da terceirização generalizada, que estende a possibilidade de terceirização de mão de obra para as atividades fins das empresas e no próprio serviço público, se aprovado, pode agravar o déficit previdenciário. É uma contradição, sem dúvida. O desfinanciamento da saúde e educação resultante da EC 95 vão prejudicar particularmente a população pobre, mais duramente atingida pelo desemprego e mais sujeita a todas as formas de trabalho precário ou informal e, ainda por cima, com menos expectativa de vida. São excluídos de tudo e não há como resgatá-los a não ser através da ação do Estado, mas o que se está vendo é, ao contrário, uma retirada do Estado. Só por desconhecimento ou má fé alguém pode supor que supostos dispositivos automáticos “de mercado” reduzirão a pobreza e a desigualdade.<

E, observe-se também que o aviltamento da previdência pública que está em marcha, é oportunidade para o crescimento da oferta privada no setor. Quais os beneficiários? Os bancos e instituições de intermediação financeira, que passarão a captar parcelas maiores da poupança dos trabalhadores – pelo menos daqueles que são capazes de poupar. E o resto ficará a descoberto. Imagine, em um futuro próximo, o que é ter 50 ou 60 anos e estar desempregado no Brasil, quais as alternativas? O custo social disso é incalculável!

Não tenho dúvidas, essa reforma vai aprofundar ainda mais o fosso – de fato um verdadeiro abismo – entre ricos e pobres no Brasil, com tudo o que isso traz de aumento de conflitos e violência. É para onde estamos caminhando…

Mônica Olivar, assistente social do Núcleo de Saúde do Trabalhador da Fiocruz e doutora em Serviço Social pela UERJ

Essa proposta de mais uma Reforma da Previdência é uma crueldade imensurável e fere de morte a maior parte da classe trabalhadora do país. E não resta dúvida que as mulheres, os professores e os trabalhadores rurais serão os mais atingidos, pois são trabalhadores submetidos a todo tipo de carga de trabalho e consequentemente desgaste físico e psicológico inerente à profissão, agravado ainda pelas precárias condições de trabalho.

Atinge violentamente as mulheres por que em empregos urbanos, trabalharão mais cinco anos (hoje a idade mínima é de 60 anos); se forem servidoras públicas ou trabalhadoras rurais, trabalharão mais dez anos; se forem professoras da educação básica, trabalharão mais quinze anos. É nefasto por que omite o trabalho doméstico socialmente realizado pelas mulheres; ignora que mulheres são mais mal remuneradas (renda mensal, em média, que corresponde a 75% da renda masculina). Ou seja, a mulher tem renda menor, trabalha mais e terá mais dificuldades de se aposentar.

Para os professores, em especial da Educação Básica, é importante ressaltar que Organização Mundial da Saúde (OMS) reconhece o direito à aposentadoria especial pelo desgaste físico e psicológico inerente à profissão e agravado pelas condições do sistema público de educação. O ataque à educação e o desmonte propostos pelos governos vem provocando adoecimento desses trabalhadores que com a “Reforma” terão de trabalhar 15 anos mais para se desligarem da lida desgastante das escolas.

Em relação ao trabalhador rural é importante esclarecer que este ingressa precocemente no trabalho do campo, isto é, aos 14 anos (ou até menos), muitos desses trabalhadores já estavam na luta e nem sempre apenas como aprendizes, como determina a lei; geralmente tem uma jornada de trabalho extenuante, como por exemplo, o cortador de cana de açúcar que corta de 12 toneladas por dia em um sol escaldante e a expectativa de sobrevida é bem menor.

Ressalta-se que em várias regiões do país, a expectativa de vida é 64 anos. Como é que vai aposentar aos 65? Não podemos desconsiderar as diferenças regionais. Um trabalhador do Norte / Nordeste tem expectativa de vida menor que o trabalhador da região Sul / Sudeste. Da mesma forma as diferenças presentes no próprio território. A Saúde do Trabalhador tem a obrigação de posicionar! Tem que tomar partido! E o Movimento Sindical ainda mais.  O momento exige coragem e luta. Não tem outro caminho.

Fábio Falcão, Agente Comunitário de Saúde; Graduando em Engenharia Ambiental e Sanitária; Morador do Complexo de Manguinhos

Não tem como falar da reforma ou melhor, desmonte da previdência, sem olhar amplamente para o “pacote da maldade” proposto pelo governo atual. Se analisarmos matematicamente, nem precisamos de uma fórmula para interpretar este problema, vejamos: O congelamento das verbas públicas por vinte anos somado às propostas da terceirização, onde, por exemplo, o cidadão tem seu contrato de trabalho temporário alterado de três para até nove meses, somado às reformas trabalhistas, onde para receber seguro desemprego deverá trabalhar com carteira assinada por no mínimo um ano, somado ao fim dos concursos públicos, que diminui o tempo de trabalho de um profissional no mesmo setor e consequentemente destruindo o vínculo conquistado com a comunidade, multiplicado ao aumento do tempo de contribuição do trabalhador tardando sua aposentadoria, dividindo tudo pelos recursos repassados para a saúde, decorrentes de arrecadações com o crescimento econômico do país, onde o aumento do desemprego não nos dá perspectivas favoráveis, elevando ao cubo a crise na Educação pública, subtraída de recursos e reformas inapropriadas que não deixam base para o aluno ingressar em um ensino superior de qualidade, gerando assim, mão de obra desqualificada, desta forma obtemos um resultado final, que não poderia ser diferente de um impacto direto na saúde pública.

É uma conta exata, lógica. Para o cidadão conseguir se aposentar terá que contribuir mais. Sem estudos e qualificação, a sua carga horária aumenta. Sem direitos ganha menos. Com trabalhos repetitivos aumenta o estresse e adoece por conta de acidentes, agravos em doenças crônicas ou novas desenvolvidas. Sem tempo para se cuidar, ou mesmo que o consiga, como no caso de ficar desempregado, como cuidará de sua saúde tendo menos recursos? Aí está o X da questão.

O cidadão com todo direito recorre ao SUS (Sistema único de Saúde) gerando mais demandas, para uma saúde pública que está sendo sucateada, tendo seus recursos já reduzidos, com profissionais desvalorizados, sem investimentos significativos no setor da saúde nos próximos vinte anos de acordo com a limitação do teto dos gastos públicos. Enfim, esta equação injusta para o ajuste da previdência, é uma conta que fecha negativamente, com impacto direto à saúde do trabalhador e cidadão brasileiro.

Fonte: Ensp