“O desafio que enfrentamos hoje está menos relacionado à proporção de idosos que teremos em 2030 e mais com a definição do modelo de sociedade e de sistema de saúde que queremos”. Esta é uma das questões levantadas, nesta entrevista, pela socióloga Dalia Romero, pesquisadora do Laboratório de Informação em Saúde do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz), onde lidera o grupo Informação e Pesquisa em Envelhecimento e Saúde do Idoso. Compreendendo o envelhecimento da população como um fator de sucesso, a especialista ressalta a importância dos estudos prospectivos de futuro: “É fundamental comparar modelos de sociedade para que possamos decidir coletivamente, por meio de um pacto social, qual caminho vamos todos seguir”.
A população brasileira está envelhecendo. As projeções indicam que, em 2060, o Brasil abrigará 58,4 milhões de idosos – 26,7% do total da população. Quais as tendências para o perfil epidemiológico da população nas próximas décadas?
Essas projeções, baseadas na hipótese de comportamento futuro da mortalidade e da natalidade, não deveriam vir acompanhadas de um tom de preocupação, como acontece hoje. Elas deveriam ser vistas como produto do que a sociedade sempre buscou. O envelhecimento da população é fruto do desejo de se viver mais tempo e, principalmente, da acelerada e intensa redução das taxas de fecundidade das mulheres brasileiras. Valoriza-se as famílias menores como medida de sucesso. O envelhecimento acelerado, nas últimas décadas, indica que os objetivos foram alcançados. Isto não deveria nos assustar. No entanto, nos preocupa como a sociedade, enquanto organização social e econômica, responderá a esse desafio.
Hoje, o tema mais debatido é o perfil epidemiológico e a ampliação da longevidade. As doenças transmissíveis cederam a predominância às doenças crônicas. Assim, vivemos mais tempo porque superamos os riscos de óbito por gripe e tuberculose, causas menos custosas para os cofres públicos, e passamos a conviver com uma ou mais doenças crônicas, como câncer, diabetes, hipertensão, demência. Essa chance de viver por mais tempo, conviver com doenças e ainda assim ter qualidade de vida deveria ser vista, também, como desafio. É este o quadro que mais assusta, porque parece ser mais caro para a sociedade tratar tais enfermidades, do ponto de vista econômico e em termos de organização social de redes de apoio. Soma-se a isto a constatação de que, ao contrário do que se pensava no passado, ainda enfrentamos uma série de doenças evitáveis que continuam levando à morte – Aids e dengue por exemplo – e somos desafiados por novos agravos, como o vírus zika. Se tivermos a felicidade de continuar aumentando a expectativa de vida da população, os cenários futuros se caracterizarão pela sobreposição das clássicas doenças infecciosas, os problemas crônicos e degenerativos e os vírus emergentes. O desafio, portanto, é como reduzir o efeito dessas doenças e garantir o envelhecimento de forma saudável. As respostas estão intrinsecamente relacionadas ao modelo de sistema de saúde que prevalecer no Brasil e as prioridades do modelo econômico.
O conceito de envelhecimento ativo vem sendo substituído pelo de envelhecimento saudável. O que muda na lógica da atenção à saúde?
Evidências científicas recomendam a promoção e a prevenção da saúde em todo o ciclo de vida. Entre os idosos, que enfrentam fragilidades diversas, esse compromisso é ainda mais importante. O conceito de evitabilidade, que até pouco tempo atrás estava restrito ao cuidado de crianças, está chegando à terceira idade. O resultado já pode ser notado na redução de indicadores de mortalidade por doenças como asma, pneumonia e diarreias, que podem ser evitadas e tratadas na Atenção Primária. Essas conquistas estão diretamente relacionadas à expansão da cobertura da Estratégia Saúde da Família, que aumentou e qualificou o acesso de idosos ao sistema de saúde.
Mas é preciso avançar mais e antecipar cenários. Uma recente pesquisa internacional sobre a carga das doenças revela que a primeira causa de perda de qualidade de vida entre idosos, em diversos países, é a saúde da coluna. Um problema como este pode ser tratado antecipadamente se investirmos em prevenção e promoção da saúde, por exemplo, com fisioterapia e educação física nas escolas primárias. O mais interessante, que mostro em uma pesquisa ainda não publicada, é que a maioria das pessoas que alcançam os 50 anos sem problemas de coluna não chega a tê-los depois. Ou seja: com ações precoces é possível evitar a principal causa de perda de qualidade de vida entre idosos.
Quais os desafios de médio e longo prazo para a organização do sistema de saúde, de forma a garantir universalidade, equidade e integralidade na atenção à saúde do idoso?
No Brasil, já existem os mecanismos legais que garantem a atenção integral à saúde do idoso. O que falta é implantar redes de atenção em nível municipal, estadual e federal. A Atenção Primária é um ponto central nesse processo, ao contrário do que se pensava há dez anos, quando esta esfera estava muito restrita à atenção materno-infantil. O Ministério da Saúde tem feito um grande esforço para capacitar profissionais da Atenção Primária nesta área. Importantes passos também foram dados no âmbito do Programa Saúde da Família. Um deles é a Caderneta do Idoso, inspirada na Caderneta da Criança, que reúne todas as rotinas do cuidado à saúde. Esta ferramenta promove o empoderamento do idoso na prevenção e manutenção da própria saúde e auxilia o acompanhamento pelos familiares.
Entretanto, todas essas medidas fazem parte de um modelo de sistema de saúde, que no Brasil é universal e público. Diante do atual momento político e econômico, o principal desafio é a defesa do SUS, reconhecido internacionalmente como referência na conquista de segurança e autonomia de idosos. É reducionista afirmar que o envelhecimento aumenta diretamente os gastos do sistema de saúde. Isso depende de como se organiza esse sistema. Quanto mais prevenção e promoção da saúde, menos custos. Apesar disso tudo ser muito bem fundamentado cientificamente, continua sendo muito difícil conseguir recursos para a prevenção e a promoção da saúde.
O cenário se agrava com o avanço aprovação da PEC 241, que limita o gasto público com Saúde. Diante do quadro de subfinanciamento, como garantir a sustentabilidade do SUS, especialmente no contexto de envelhecimento da população?
O único caminho é a luta em defesa do SUS. Sem o SUS não é possível pensar em envelhecimento saudável. É preciso combater o discurso que se utiliza dos indicadores econômicos para defender a expansão dos planos privados. Os planos privados não têm interesse na promoção e prevenção da saúde. O brasileiro que tem plano de saúde, quando apresenta problemas, complicações, migra para os hospitais públicos. Isto está demonstrado na Pesquisa Nacional de Saúde do Instituto Brasileiro de Gegografia e Estatística (IBGE).
Hoje, mesmo com planos de saúde, a classe média não tem acesso à Atenção Primária. Muitas vezes falta uma rede de suporte familiar, o que faz com que aumentem os casos de depressão provocados pela solidão. É muito difícil, entretanto, levar a classe média a aderir a esse esquema de rede de suporte, considerando o modelo atual de sociedade que preza pela individualização em detrimento do coletivo. Por isso, o desafio que enfrentamos hoje está menos relacionado à proporção de idosos que teremos em 2030 – o que poderia ser solucionado com políticas que levem ao aumento da natalidade – e mais com a definição e construção do modelo de sociedade e de sistema de saúde que queremos.
É preciso defender o papel social fundamental do Estado. Não só para os mais desfavorecidos, mas para todos. O SUS é uma grande conquista da democracia e garante um modelo saudável de sociedade, favorável inclusive para o capitalismo social. O consumo coletivo de serviços de saúde é mais justo, barato e eficiente. Como aponta Bresser-Pereira, enquanto na Europa o total de gastos públicos com Saúde é de 11% do PIB, nos Estados Unidos, onde o serviço é baseado no setor privado, este índice é de 17%.
Qual a importância da realização de estudos de prospecção estratégica do futuro, como os desenvolvidos pela rede Brasil Saúde Amanhã?
Os estudos prospectivos de futuro desenham cenários tendo como base comparativa processos históricos, situações anteriores e realidades de outros países. É fundamental comparar modelos de sociedade para que possamos decidir coletivamente, por meio de um pacto social, qual caminho vamos todos seguir. Para isso, é preciso criar uma consciência, especialmente agora, em relação às escolhas do país e às suas possíveis consequências. Temos que mostrar qual o papel dos agentes de saúde e quais são os cenários futuros com e sem eles; com e sem tecnologias de baixo custo.
Vale a pena levar a população a entender como agem os países mais avançados, com menor desigualdade social. Precisamos encontrar um canal de diálogo com o empreendedor autônomo e os demais atores que hoje se sentem fortalecidos, porque estão em um panorama de sucesso, e mostrar para eles quais são os cenários de vulnerabilidade e fragilidade que podem acometer a todos no futuro, independentemente da situação financeira atual. A perda da capacidade de trabalho, seja por conta do envelhecimento ou de um acidente, por exemplo, o levará a depender dos outros – no caso, de um sistema de saúde e de uma previdência social fortes.
Bel Levy
Saúde Amanhã
17/10/2016