“A democracia não é linear, não é um fim em si. É um processo”. A avaliação é da socióloga Nísia Trindade Lima, vice-presidente de Ensino, Informação e Comunicação da Fiocruz. Nesta entrevista, ela aponta como o fortalecimento da democracia brasileira pode impactar positivamente o aprimoramento do Sistema Único de Saúde (SUS), na perspectiva da universalidade, equidade e integralidade. Para o longo prazo, a pesquisadora destaca o desafio de associar as políticas científica e industrial, de forma a desenvolver o Complexo Econômico e Industrial da Saúde (CEIS) como parte integrante do SUS. Em relação ao futuro do sistema de saúde, é categórica: “não existe determinismo e o futuro será construído pelas ações e políticas empreendidas no presente”.

De que forma a rede Brasil Saúde Amanhã e seus estudos prospectivos de futuro fortalecem a missão da Fiocruz como instituição estratégica de Estado?

Os estudos realizados no âmbito do projeto Brasil Saúde Amanhã demonstram a importância de ampliar a abordagem analítica para além da identificação de tendências. Mais do que isso, é fundamental trazer a discussão para a construção de cenários de médio e longo prazo. Para realizar esse tipo de prospecção, é necessário entender melhor o presente e o passado, tanto no campo da Ciência e Tecnologia quanto no das políticas de saúde. A partir daí, elaborando perguntas sobre o futuro, podemos propor ações e intervir na construção de uma nova sociedade e no fortalecimento do sistema de saúde pública. Nesse sentido, uma série de fatores mapeados pelo projeto apontam para três cenários: desejável e possível; inercial e provável; pessimista e plausível. No entanto, não existe determinismo e o futuro será construído pelas ações e políticas empreendidas no presente.

A abordagem de longo prazo, a rede multidisciplinar de pesquisadores e instituições e a amplitude dos estudos realizados pelo projeto Brasil Saúde Amanhã reforçam o compromisso da Fiocruz com o fortalecimento do SUS. Ao promover uma rede de pesquisa focada no longo prazo e articular o pensamento de pesquisadores de diferentes instituições, a iniciativa funciona como uma âncora de diversas áreas do conhecimento. É uma atuação estratégica, pois o papel da Fiocruz não se resume à atividade de pesquisa, mas inclui justamente a sua capacidade de mobilizar outras instituições, pesquisadores, gestores. Portanto, a grande contribuição da iniciativa é colaborar com o aprimoramento do SUS, esse sistema complexo que envolve, em caráter universal, assistência, vigilância, prevenção e promoção da saúde, além da produção de conhecimentos, produtos , serviços e

e insumos. No campo da comunicação, fortalecendo a perspectiva democrática, o portal Saúde Amanhã disponibiliza em acesso aberto todos os conhecimentos gerados, intensificando o seu alcance e as possibilidades de aplicação.

Tendências relevantes para o Brasil no horizonte dos próximos 20 anos são o envelhecimento populacional e a transição epidemiológica. Como o sistema de saúde deve se preparar para este cenário, de forma a garantir a universalidade, equidade e integralidade do SUS?

O cenário de envelhecimento da população brasileira reforça o compromisso do SUS com a integralidade do cuidado e, também, o desafio de articular a Atenção Básica e a de Média e Alta Complexidade. Mudanças estruturais no campo da medicina, promovidas pela geração e incorporação de novas tecnologias, trarão impactos diretos para a organização do sistema de saúde e a oferta de serviços e procedimentos. É importante ressaltar que, embora o envelhecimento seja um fenômeno biológico, ele é vivido de formas diferentes por cada grupo social. Novidades como a medicina personalizada podem gerar grande distância entre a longevidade dos mais ricos e a dos mais pobres. Além disso, uma gama cada vez maior de profissionais e especialistas será requerida pelo sistema de saúde. Esta tendência não é exclusiva do Brasil e os mesmos desafios se colocam para sistemas de saúde de todo o mundo. Aqui, precisamos estar atentos ao compromisso de promover o acesso universal ao sistema de saúde, com equidade e integralidade.

O sistema de saúde não pode operar como uma variável independente, de forma autônoma ao restante das instituições públicas. O portal presta uma importante contribuição para esses esforços. Os estudos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), por exemplo, além de serem fundamentais para a identificação de tendências demográficas, permitem-nos pensar questões formuladas no âmbito da Saúde a partir de indicadores das desigualdades regionais do país ou em relação a grupos populacionais específicos. Por isso, além das dimensões clássicas da Saúde, é preciso trabalhar sobre as tendências demográficas e epidemiológicas, considerando a diversidade de situações de causalidades e interferências. A metodologia adotada pelo Saúde Amanhã e a rede que vêm sendo construída em torno do projeto são capazes de indicar caminhos para dar respostas a essas novas questões.

Qual a posição da Fiocruz no contexto global de Inovação, Ciência e Tecnologia no campo da Saúde? Quais as tendências para as próximas décadas?

A principal formulação da Fiocruz é considerar o CEIS parte integrante do SUS. Isso significa que não se trata do desenvolvimento científico e tecnológico ou da inovação por si. É preciso garantir o acesso universal e equitativo à saúde e à assistência farmacêutica, além de investir na formulação e produção de fármacos e no campo dos produtos biológicos no qual a Fiocruz tem atuação relevante e de liderança nacional . Hoje, há uma lacuna grande entre o conhecimento científico e a geração de inovações efetivas, na qual devemos trabalhar intensamente. A Fiocruz tem contribuições valiosas a dar ao país e os resultados que iremos obter em médio e longo prazo não dependem apenas do trabalho dos pesquisadores. Para promover a inovação, é preciso associar a política científica e tecnológica à política industrial e articular melhor as ações de pesquisa a de nossos institutos de tecnologia e produção, Biomanguinhos e Farmanguinhos. Há importantes ações institucionais com este objetivo, como a criação do Centro de Desenvolvimento e Tecnologia em Saúde (CDTS), programas de indução translacionais, além do sistema de Gestão Tecnológica (GESTEC-NITs). Contudo, temos muito a desenvolver com o objetivo de fortalecer uma cadeia de inovação que compreenda a pesquisa e a geração de resultados na forma de insumos e processos importantes para a saúde coletiva. Todo este esforço deve estar orientado pelas grandes demandas nacionais e do SUS em particular.

A concepção de que há uma linearidade da pesquisa até a inovação já foi superada. Por isso, no esforço de prospecção, devemos associar a capacidade de gerar produtos à capacidade de influenciar políticas de Ciência, Tecnologia, Inovação e Saúde. Em fase final de desenvolvimento, o Observatório de Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde é um projeto da Fiocruz que cria mecanismos para a avaliação da ciência. Este é um dos temas que está no horizonte de médio e longo prazo da Fundação, assim como a formulação de políticas institucionais que aperfeiçoem processos internos para formar uma cadeia de inovação.

Nacionalmente, este é o momento de analisar as possibilidades colocadas pelo novo Marco Regulatório de Ciência e Tecnologia, sancionado em janeiro, que confere mais flexibilidade para a atividade científica e coloca na agenda nacional a necessidade, para o desenvolvimento do CEIS, da articulação de três políticas: a científica, tecnológica e de inovação, a de Saúde e a industrial. Para isso, propõe novos arranjos de maneira a garantir que o conhecimento chegue à sociedade, seja por meio de produtos ou de processos. A forma como a rede Brasil Saúde Amanhã aborda o SUS parte da concepção de que o sistema envolve todas essas dimensões.

O futuro não é um dado exógeno, mas sim uma construção política e social e a Fiocruz deve ser um ator – chave na construção de um projeto nacional socialmente justo e dinâmico. Nesta direção, o complexo econômico-industrial, a ciência, a tecnologia e a inovação devem ser vistos de modo articulado como uma base de conhecimento e produtiva vinculada à necessidades e às demandas da sociedade. Esta visão sistêmica e integrada faz parte da história da Fiocruz e neste momento histórico precisa ser reforçada como um caminho e uma construção para nosso país.

No horizonte dos próximos 20 anos, quais seriam os caminhos mais adequados para o fortalecimento da democracia, das instituições públicas e dos direitos sociais garantidos pela Constituição Federal?

A fragilidade da democracia não é um problema exclusivo do Brasil e afeta muitos outros países, em decorrência dos efeitos do neoliberalismo. Além de concentrar o poder econômico e político, este modelo de desenvolvimento promove o individualismo e abala os processos orientados por princípios solidários. O Brasil passa por uma forte crise política e institucional, que traz muitas incertezas em relação ao futuro. Historicamente, temos um período muito curto de vigência democrática e é necessário repensar as formas de participação social, para que seja possível fortalecer nossa democracia. Neste processo, há dois elementos fundamentais: o equilíbrio entre os três poderes e a democratização da comunicação. A grande mídia tem papel fundamental na formação de opinião e  por isso, é importante que haja um espaço efetivamente democrático quanto ao compartilhamento de diferentes visões. A Fiocruz trabalha diariamente para isso e estamos neste momento, trabalhando na atualização da Política de Comunicação da Fiocruz, que tem por conceito central a comunicação pública e será objeto de discussão no período de 25 a 29 de julho quando realizaremos a Semana de Comunicação na Fiocruz.

Apesar do cenário difícil, não tenho uma visão pessimista em relação ao futuro, porque entendo que as sociedades têm um dinamismo muito intenso. A democracia não é linear, não é um fim em si. É um processo e também um regime político que, com todas as imperfeições e assimetrias de poder, nos permite lutar e buscar avanços para alcançar justiça, equidade e cidadania civil, social e política. O Brasil mudou. Não é o mesmo país de 30 anos atrás, quando realizamos a 8ª Conferência Nacional de Saúde, arena crucial para a o movimento da reforma sanitária. Hoje abriga uma sociedade com mais demandas por direitos e participação. É esta nova sociedade que ditará os rumos do país. Ainda assim, como estamos debatendo a construção de cenários, é importante termos clareza em relação à análise das dificuldades dessa luta pela democratização. A democratização da comunicação, o acesso ao conhecimento e a participação social são direitos previstos na Constituição Federal e no marco legal do SUS, o que e evidencia ainda mais o caráter inovador de nosso sistema de saúde. O presente nos coloca o desafio de preservar e avançar nesta visão democrática, generosa e universal de saúde e de sociedade.

Bel Levy
Saúde Amanhã
25/07/2016