Fortalecer o Sistema Único de Saúde (SUS) e criar as bases para um estado de bem-estar social é a única saída para a crise sanitária, política, econômica e social instalada no Brasil em decorrência da pandemia do novo coronavírus. Essa é a aposta dos sanitaristas José Carvalho de Noronha, coordenador executivo da rede Brasil Saúde Amanhã, e Jairnilson Paim, professor do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (ISC/UFBA). Os dois participaram, na última sexta-feira, 3 de abril, do seminário virtual “Desafios para o enfrentamento da Covid-19 no Brasil”, promovido pela iniciativa ISC em Casa.
Paim descreveu uma síntese do quadro nacional e ressaltou que, ao contrário de outros países, o que mais agrava a situação brasileira é a crise política. “O atraso do Brasil na implementação de políticas sociais tende a aprofundar a emergência de Saúde Pública. Os obstáculos ao desenvolvimento são claros: as políticas neoliberais, que sacrificaram muito as áreas sociais, principalmente a Saúde, em nome de uma suposta racionalidade fiscal. Como resultado, enfrentaremos o aumento do desemprego, sobretudo porque boa parte dos trabalhadores brasileiros hoje sobrevive em subempregos, uma consequência da Reforma Trabalhista. Com isso, é possível prever ampliação da pobreza, da miséria e da desigualdade”, afirmou.
Noronha ressaltou a dramaticidade do impacto epidemiológico da Covid-19. De acordo com o pesquisador, estimativas do Imperial College London indicam que, sem medidas de contenção, o Brasil pode chegar a 1 milhão e 100 mil mortes até o fim da pandemia – previsão que, com medidas radicais de mitigação, pode ser reduzida para 50 mil mortes. “Há um elemento interessante, do ponto de vista da análise política, que deve ser observado com cautela. O novo coronavírus chegou ao Brasil por meio das pessoas mais ricas e, daí, está se espalhando para toda a população. E para quem é possível o isolamento social? As pessoas mais ricas estão em suas casas de campo; a classe média confinada em seus apartamentos; e as populações mais vulneráveis à mercê da ‘uberização’ e sobrevivendo em condições sanitárias degradantes”, ponderou o pesquisador.
O coordenador executivo da rede Brasil Saúde Amanhã ressaltou, também, o cenário de desigualdade no acesso aos serviços de saúde. “Já é esperado que, até o fim de abril, o sistema de saúde entre em colapso em muitas unidades da federação. E os 25% da população brasileira que têm acesso a unidades hospitalares mais sofisticadas, do setor privado, são justamente os que estão protegidos em suas casas de campo. O risco é seletivo”, apontou.
Em relação à capacidade do sistema de saúde brasileiro, o professor da UFBA ressaltou que a crise do SUS antecede a crise econômica mundial de 2008 e a crise do coronavírus de 2020. “Há 30 anos o SUS convive com o subfinanciamento crônico e é preterido em função de um sistema privado subregulado, que vem sendo priorizado pelas políticas públicas, pela mídia e pela população. Há 20 anos enfrentamos subfinanciamento do setor de Ciência e Tecnologia. Há pelo menos cinco anos assistimos ao impedimento do pleno desenvolvimento do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS). Mais recentemente, a Emenda Constitucional 95 (EC 95), a PEC do Teto dos Gastos, agravou ainda mais o desfinanciamento do SUS, deixando a infraestrutura pública constrangida. E, ao longo de todo esse tempo, convivemos com a desvalorização dos profissionais e trabalhadores da Saúde”, denunciou.
Paim, no entanto, lembrou que é preciso ter esperança. Para ele, devido à potência do SUS e da Vigilância em Saúde, o Brasil deve ser o país da América Latina a liderar a resposta regional à pandemia, produzindo kits diagnósticos, desenvolvendo estudos moleculares, vacinas, soluções. “Temos, também, uma grande experiência de mobilização sociocultural; a criatividade dos brasileiros e brasileiras para enfrentar situações críticas é incomensurável. Uma sociedade solidária é muito melhor que uma sociedade individualista, que só enxerga o capital. Agora são necessários todos os esforços, de todos os setores, para recuperação dos direitos humanos e sociais, para todos. Diante de tantas incertezas, temos a possibilidade de reinvenção da democracia”, declarou, endossando o Manifesto do ISC/UFBA para Enfrentamento da Emergência Sanitária da Pandemia de Covid-19.
Para Noronha, a gravidade da situação impõe medidas políticas e econômicas em defesa da população. “Em todo o mundo, as políticas neoliberais estão sendo derrubadas pela força da gravidade da pandemia. A crise é severa e nos obriga a rever as políticas fiscais, econômicas e sociais dos últimos anos. Seguindo recomendação do Centro Brasileiro de Estudos da Saúde (Cebes), é preciso aumentar de R$ 130 bilhões para R$ 180 bilhões o orçamento do SUS. Imediatamente, é necessário revogar a EC 95 e regulamentar o imposto sobre grandes fortunas, para aumentar a arrecadação do Estado e viabilizar a implementação de políticas sociais e de distribuição de renda. O Brasil precisa recompor a sua base produtiva, realinhar o pacto federativo, intensificar a cooperação com outros países. A grande questão que se coloca é: construiremos um estado social forte ou viveremos a barbárie?”, concluiu o coordenador executivo da rede Brasil Saúde Amanhã.