Esta ocorrência, também narrada pelo historiador Carlos Fidelis Ponte, da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), no livro “Inovação em Saúde” (Editora Fiocruz), mostra que sem investimentos públicos não há desenvolvimento científico e tecnológico em saúde, que garantem qualidade de vida e melhorias para toda a população. “Esse é um tema absolutamente importante para o presente e, sobretudo, para o futuro do país, e tem que ser uma política de Estado de longo prazo, pois nenhuma atividade de produção ou desenvolvimento tecnológico acontece do dia para a noite”, defende Akira.
As perdas de investimentos podem colocar a saúde brasileira de volta à posição de “refém” na área de inovação e do complexo econômico e industrial, na contramão da busca pela autonomia científica, apontam os especialistas ouvidos por Radis. No fim de março, o corte anunciado para o Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicações (MCTIC) foi de R$ 2,2 bilhões, correspondente a 44% das verbas da área — com isso, o orçamento do setor será o mais baixo dos últimos 12 anos, segundo a revista britânica Nature, uma das mais importantes publicações da área científica no mundo. O ajuste se soma a outras medidas, como a PEC do Teto dos Gastos Públicos, aprovada no fim de 2016, que congelou por 20 anos os investimentos governamentais: segundo a nova regra, o governo poderá aplicar somente o valor gasto no ano anterior, corrigido pela inflação.
“As perspectivas são alarmantes”, afirma Laís Silveira Costa, vice-líder do Grupo de Pesquisa em Inovação em Saúde (GIS) da Fiocruz e pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (Ensp/Fiocruz). Para ela, a reversão na trajetória de investimentos deve gerar danos para o chamado complexo econômico e industrial da saúde. “O corte de gastos torna perene uma condição de dependência e injustiça, e nos mantém atados a um sistema produtivo e de distribuição que favorece o consumo de poucos em detrimento da atenção à necessidade da maioria”, destaca.
Em tempos de crise, destinar recursos para desenvolver a área industrial da saúde não é prejuízo, mas oportunidade, aponta o pesquisador Carlos Gadelha, coordenador do GIS e das Ações de Prospecção da Fiocruz. Segundo ele, a retomada do investimento e do desenvolvimento industrial no Brasil tem na saúde uma de suas principais “alavancas”. “Temos como primeiro desafio conferir condições estruturais para garantir a saúde como direito integral, equânime e universal, que somente pode ser atingido com uma base produtiva e de inovação forte”, constata. Na avaliação dos especialistas consultados por Radis, as perdas de investimentos geram impacto na área de produção e desenvolvimento de inovações em saúde. Também trazem à tona os riscos da dependência tecnológica e produtiva e seus reflexos para a saúde da população.
E qual seria o papel da saúde nesse projeto? Para Gadelha, os desafios da sociedade brasileira — que incluem questões de mobilidade, sustentabilidade e a garantia de educação e saúde — fazem parte de uma agenda ampliada da saúde como qualidade de vida. “O desafio do complexo econômico e industrial da saúde é como nós podemos ter um padrão científico e tecnológico de inovação que leve ao bem estar e não à segmentação entre quem pode e quem não pode pagar”, pontua. “Somente com instituições públicas e um Estado forte e comprometido com a sociedade, é possível que a agenda social presida a agenda do desenvolvimento econômico e industrial”, completa.
Outra função estratégica é a transferência de tecnologia, que ocorre quando um acordo possibilita que algum recurso ou produto desenvolvido em outro país seja incorporado pela indústria nacional. “A transferência de tecnologia também tem ajudado a gente a elevar o nosso grau de capacitação científica e tecnológica”, afirma Akira. Segundo ele, o Brasil continua apostando no desenvolvimento autóctone, mas na medida em que aparecem novos produtos, não dá para esperar. “A sociedade exige um produto para ontem”, enfatiza. Na área farmacêutica, o Ministério da Saúde conta atualmente com 86 parcerias de desenvolvimento produtivo (PDPs), envolvendo 18 laboratórios públicos e 43 privados, referentes a 88 medicamentos, 4 vacinas e 13 produtos da área da saúde, de acordo com dados de janeiro de 2017. Um exemplo recente foi o acordo assinado entre Bio-Manguinhos e a empresa britânica GlaxoSmithKline (GSK), em 2012, para a produção da vacina contra a catapora (varicela), que foi acrescentada à dose da tríplice viral (sarampo, caxumba e rubéola) e passou a integrar o calendário básico de vacinação.
Planejar a longo prazo, mas estar pronto para agir em situações emergenciais: esse é o desafio de uma indústria que deve responder de forma rápida às necessidades epidemiológicas da população. Foi o que aconteceu com o surto de febre amarela, em 2017. “De uma demanda normal de 20 milhões de doses de vacina por ano, só nos três primeiros meses nós já fornecemos mais de 25 milhões de doses”, destaca Akira. Com isso, ele considera que será possível, de forma planejada e escalonada, cumprir a vacinação de todas as áreas que foram incluídas na expansão da cobertura de vacinação, a partir do surto ocorrido em 2017 (Radis 174).
O cenário atual é grave porque aponta para o aumento da dependência tecnológica e a adoção de políticas que afetam principalmente os mais pobres, analisa Laís Costa. Para ela, os cortes intensificam a marginalização de grande parte da população e selecionam quem deve ou não ter acesso a inovações e tratamentos de saúde a partir dos critérios de quem pode pagar e não das condições clínicas. “Os desafios para a área de inovações em saúde são enormes e, infelizmente, o atual governo federal evidencia seu descaso com a ciência e tecnologia”, aponta. Na sua visão, os cortes ameaçam os ganhos decorrentes das políticas adotadas nos últimos anos, como a capacitação tecnológica, o aumento da competência dos produtos públicos e a destinação de recursos para fomentar a produção.