“É preciso encarar o Complexo Econômico e Industrial da Saúde (CEIS) como um setor estratégico para a segurança nacional, o desenvolvimento do país e sua estabilidade política e social”. A afirmação é do economista Raphael Padula, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e colaborador da rede Brasil Saúde Amanhã. Padula, que leciona Geopolítica na Pós-Graduação de Economia Política Internacional, desenvolve estudos sobre Geopolítica e Relações Internacionais, Integração Regional, Relações Bilaterais e Multilaterais, Economia Política das Relações Internacionais e Desenvolvimento Comparado. Junto aos pesquisadores Gustavo Souto de Noronha e Thiago Leone Mitidieri, é autor do capítulo “Complexo Econômico Industrial de Saúde, Segurança e Autonomia Estratégica: para pensar a inserção do Brasil frente ao mundo”, que integrará novo livro da rede Brasil Saúde Amanhã sobre o CEIS.
Qual a importância da realização de estudos de futuro, como o projeto Brasil Saúde Amanhã, na trajetória de desenvolvimento e fortalecimento do CEIS?
Planejar e pensar o longo prazo é fundamental para um país que deseja trilhar o seu caminho e ocupar um lugar relevante no mundo. É muito importante identificar desafios e oportunidades, possibilidades e tendências a seguir, para que sejam feitas escolhas políticas acertadas. Isto é ainda mais importante quando se trata de um setor sensível e estratégico como o CEIS, em que a carência e a vulnerabilidade externa podem ter impactos profundos na segurança nacional, na estabilidade política e no desenvolvimento socioeconômico do país. A rede Brasil Saúde Amanhã, além de trazer uma reflexão de longo prazo, oferece uma contribuição rica para a Saúde e para o Brasil, ao buscar um enfoque multidisciplinar, convidando pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento para o debate sobre o futuro do sistema de saúde brasileiro.
A partir da definição de tendências para o futuro, podemos então avaliar as políticas públicas mais pertinentes para o presente. Por exemplo, no âmbito da política externa brasileira, as articulações com os países sul-americanos e com os BRICS serão fundamentais em médio e longo prazo, porque geram oportunidades de intercâmbios de experiências institucionais e de tecnologias, além de significar um enorme mercado. Juntos, os países BRICS representam 43% da população mundial – e todos eles estão comprometidos com uma cobertura universal de saúde e com a reforma da Organização Mundial da Saúde (OMS), que visa garantir mais governança e transparência à entidade e fortalecer o seu papel no campo do saúde global, que tem sido deslocado pela Organização Mundial do Comércio (OMC). Por outro lado, se o Brasil priorizar uma visão economicista do CEIS, privilegiando as vontades de mercado, impondo cortes orçamentários e buscando acordos de liberalização com os Estados Unidos, dificilmente conquistaremos uma dinâmica produtiva e tecnológica florescente no CEIS. Conhecer as diferentes tendências para o futuro e analisar as suas consequências para o país é estratégico para que possamos tomar decisões mais efetivas e adequadas.
Considerando o contexto global, quais as perspectivas para o CEIS nas próximas décadas e quais os desafios para o alinhamento do setor a um projeto de desenvolvimento social do país?
O contexto global é de muitos desafios. Ao mesmo tempo em que assistimos à crescente concentração de mercado e propriedade intelectual nas mãos das grandes empresas e potências, valorizamos cada vez mais a biotecnologia, a nanotecnologia e as tecnologias de informação e comunicação – em todos os setores e, também, na Saúde. Associado a este quadro, temos a transição demográfica e epidemiológica da população brasileira, que significará crescentes gastos com saúde no Brasil. Além disso, os Estados Unidos vêm promovendo grandes acordos internacionais, como o Trans-Pacific Partnership (TPP) e o Trans-Atlantic Trade and Investiment Partnership (TTIP), envolvendo a liberalização de serviços, comércio e investimentos e o aprofundamento de direitos de propriedade intelectual além do previsto pelo Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPS, na sigla em inglês). Fazem parte deste processo, ainda, o acesso do país norte-americano a compras governamentais e a adoção de políticas de acesso a livre mercado. São acordos que excluem os países do BRICS e que dão enormes vantagens às empresas farmacêuticas estadunidenses.
Assim, as perspectivas futuras para o CEIS estão condicionadas não somente às políticas públicas nas áreas da Indústria, da Saúde e da Ciência e Tecnologia. É preciso uma política externa ativa e uma política de segurança nacional efetiva, que encarem o CEIS como um setor dotado de enorme possibilidade de conexão com a Indústria de Defesa e, portanto, estratégico do ponto de vista da segurança nacional, do desenvolvimento do país e de sua estabilidade política e social.
O Brasil atravessa um momento de acirramento da agenda neoliberal, por exemplo, por meio da abertura da Saúde ao capital estrangeiro. Quais os impactos desta medida para o SUS e o CEIS, em curto, médio e longo prazo?
Na perspectiva de acirramento da agenda neoliberal no país, o Brasil experimentará maior vulnerabilidade diante das decisões de empresas privadas estrangeiras e de outros Estados – que inclusive poderão estar associados aos interesses de tais empresas. E isto levará a uma maior vulnerabilidade do país no que diz respeito a segurança nacional, política, econômica e social e, também, às vontades e ao poder de veto de atores externos, que têm objetivos contrários ao interesse nacional. Na prática, isto significará maior dependência externa do ponto de vista do abastecimento, com a crescente importação de insumos farmacêuticos, biotecnológicos e equipamentos de saúde. E isso levará à maior participação de empresas internacionais no CEIS e, em consequência, o aumento do registro de inovações e patentes por grupos estrangeiros, especialmente em setores de ponta como a biotecnologia. Certamente este não é um cenário favorável para o país.
Como as políticas atuais para o CEIS podem impactar, no horizonte dos próximos 20 anos, a consolidação do SUS conforme previsto na Constituição Federal?
Primeiro, isto depende fundamentalmente de uma questão: as políticas sairão do papel, inclusive em termos de orçamento? Se saírem do papel, impactarão de forma positiva o sistema de saúde brasileiro. No entanto, creio que a busca da articulação entre a política para a base industrial de Defesa, presente nos documentos estratégicos do Ministério da Defesa, e as políticas para os CEIS, juntamente com a articulação no âmbito dos países BRICS, têm enorme potencial para fomentar o Complexo Econômico e Industrial da Saúde como uma plataforma para o desenvolvimento do país.
A articulação da Estratégia Nacional de Defesa e da Política Nacional de Defesa com as políticas do Ministério da Saúde e do Ministério de Ciência e Tecnologia para a área da Saúde têm papel fundamental para a formação de clusters ou arranjos produtivos envolvendo empresas privadas nacionais e estrangeiras, universidades e o Estado brasileiro. Isto é estratégico sobretudo na questão do financiamento, em que o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) pode ter um atuação fundamental. Tais arranjos deveriam buscar uma pujante dinâmica produtiva física e científico-tecnológica, garantindo transferências e autonomia tecnológica para o Brasil no longo prazo. Assim, poderemos garantir o desenvolvimento do CEIS de forma alinhada às necessidades do SUS e da população brasileira.
Bel Levy
Saúde Amanhã
25/05/2015