“Restrições relacionadas a condições socioeconômicas influenciam diretamente a incidência e a mortalidade por alguns tipos de câncer. Pensar em investimentos centrados exclusivamente no setor Saúde é estar fadado ao insucesso. As necessidades de saúde exigem ações intersetoriais”, ressalta Enirtes Caetano Prates Melo, pesquisadora do Departamento de Epidemiologia e Métodos Quantitativos em Saúde da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz). Nesta entrevista, a epidemiologista comenta os desafios de médio e longo prazo para a Atenção Oncológica no Brasil, considerando a concorrência das doenças crônicas não transmissíveis, dentre elas as neoplasias, e as enfermidades evitáveis, mais comuns entre as populações pobres. Para Enirtes, o atual momento de austeridade fiscal e corte de recursos traz ainda mais complexidades à sustentabilidade do Sistema Único de Saúde (SUS). “Prospectivamente, não advogo a favor de cenários pessimistas para as políticas sociais no Brasil. Penso em um cenário intermediário, marcado pela tensão entre a política social e a econômica. Entretanto, mesmo nesta perspectiva, o SUS está fortemente ameaçado”, adverte.

O envelhecimento da população brasileira aponta para taxas crescentes de incidência e mortalidade por câncer. No horizonte dos próximos 20 anos, quais são os cenários epidemiológicos esperados para a doença?

Projeta-se que, em 2035, os idosos responderão por 15,5% da população brasileira. Em 2060, quando haverá cerca de 58,4 milhões de pessoas na faixa etária mais elevada, este índice deve chegar a aproximadamente 27%. Essa situação impõe uma série de desafios – o câncer é um deles – e a urgência de transformações. Dentre os desafios inerentes ao envelhecimento populacional está o aumento de doenças crônicas não transmissíveis, como as neoplasias. Consequentemente, é necessária adoção de tecnologias diversas, ligadas aos diferentes níveis de atenção, a expansão de equipes multidisciplinares especializadas e mudanças na organização da rede de assistência à saúde, com a inclusão de atenção domiciliar e suporte comunitário. Em função das características dos pacientes, com idades avançadas e a presença de comorbidades, as internações tendem a ser mais longas e os tratamentos mais complexos, o que levará ao aumento de custos. Neste cenário, a disponibilidade e a qualidade dos serviços de saúde influenciarão diretamente a sobrevida dos pacientes, que irá variar de acordo com o grau de acesso aos serviços de saúde, desde os programas de prevenção até os meios de diagnóstico e tratamento.

A estimativa da Organização Mundial da Saúde (OMS) é que 21,6 milhões de novos casos de câncer sejam registrados em 2030, levando 13 milhões de pessoas a óbito. Espera-se um aumento no número de casos sobretudo nos países em desenvolvimento e naqueles de baixa renda. Especificamente sobre o câncer de mama, o mais frequente e letal entre as mulheres, a expectativa global é de 2,4 milhões de novos casos em 2030 – 40% a mais que o registrado hoje. Quer dizer, o aumento da expectativa de vida, um dado positivo, vem acompanhado pelo aumento do número de mortes por câncer e, também, por doenças do aparelho circulatório.

Por que esse cenário se apresenta, hoje, e se apresentará, no futuro, de forma desigual entre as regiões brasileiras?

Iniquidades em saúde refletem desigualdades mais abrangentes. O Brasil não é homogêneo. As fortes diferenças regionais e a distribuição desigual da população definem o território nacional. O país está envelhecendo, é verdade, mas o faz de forma desigual, em ritmos diferentes. Tal diversidade tem efeito direto no acesso e no uso do sistema de saúde. Barreiras ao diagnóstico, por exemplo, apresentam um padrão seletivo e evidenciam desigualdades sociais e da rede assistencial. Na Atenção Oncológica, o acesso ao diagnóstico e ao tratamento oportuno têm impacto direto na sobrevida do paciente, particularmente em alguns tipos de câncer.

Além disso, os os fatores de risco para doenças crônicas não transmissíveis não atuam e não se distribuem da mesma forma entre os grupos populacionais. As tendências desfavoráveis se concentram entre aqueles com maior desvantagem em relação à escolaridade, à renda, ao acesso aos serviços de saúde. Neste caso, vale a “Lei do Cuidado Inverso”: aqueles que mais precisam são os que menos têm. Os agravos à saúde também não se distribuem da mesma forma no território. Dado que o contexto afeta a saúde das pessoas e dos grupos populacionais, a presença de serviços de saúde ou a falta de equipamentos para prática de atividade física, por exemplo, podem alterar as chances de adoecimento em uma determinada localidade. A incorporação do elemento geográfico em análises de eventos ligados à saúde permite detectar contrastes entre grupos populacionais, tendências e padrões espaciais definidos, que contribuem para o direcionamento de ações concretas de prevenção, promoção e controle de agravos à saúde.

Quais as dificuldades para efetivar a regionalização da Atenção Oncológica?

Nos últimos anos, o Brasil conseguiu reduzir as distâncias percorridas pela população na busca pela assistência em unidades de alta complexidade. Muitos vazios sanitários foram preenchidos, mas ainda há muito a avançar, sobretudo em relação à resolutividade da Atenção Básica e dos serviços de média complexidade e à concentração de recursos terapêuticos, que ainda impõe extensos deslocamentos a uma parcela significativa da população. Distância, tempo e  custos envolvidos neste deslocamento são decisivos para o sucesso do tratamento e não podem ser menosprezados. Prova disso é que cânceres considerados curáveis ainda apresentam alta mortalidade no Brasil, porque o diagnóstico precoce não é realizado. Vale ressaltar que a identificação de uma doença crônica exige uma  série de etapas  que antecedem a investigação diagnóstica.

O Brasil é muito desigual e apresenta profundas diferenças regionais. Os diversos  tipos de câncer demandam respostas variadas. Portanto, as soluções não podem seguir um padrão único. As peculiaridades regionais precisam ser respeitadas na definição e na execução de políticas públicas. As diferenças e complementaridades entre as redes de saúde devem ser consideradas nas respostas às demandas da população. Ao nos debruçarmos sobre os dados, notamos um padrão de transição de confluência de riscos. De fato, houve uma redução de doenças não transmissíveis no Brasil. No entanto, existe a manutenção de algumas delas. Simultaneamente, há um rápido crescimento das doenças crônicas, com elevadas taxas de mortalidade. Temos um padrão equivalente ao dos países mais desenvolvidos, entretanto, com óbitos mais precoces.

Quais as medidas necessárias para que, no horizonte dos próximos 20 anos, o Brasil supere, ou ao menos minimize, as desigualdades sociais e as iniquidades em saúde?

O Brasil incorporou o avanço e os agravos típicos de países ricos, mas mantém o padrão de doenças evitáveis, comum às nações mais pobres. Este cenário é resultado da forte desigualdade social que caracteriza o país. No setor Saúde, algumas políticas buscam reduzir iniquidades. Elas vão desde ações de promoção e prevenção, como as que envolvem o rastreamento de tumores na população e as campanhas de vacinação, até as ações voltadas para tratamento, reabilitação e cuidados paliativos.

Restrições relacionadas a condições socioeconômicas influenciam diretamente a incidência e a mortalidade por alguns tipos de câncer. Nesse sentido, o saneamento básico é uma ação da maior importância. O fortalecimento de estruturas regulatórias, a ampliação de ações intersetoriais e a integração de serviços de saúde favorecem a consolidação de um sistema mais custo-efetivo e equânime. Pensar em investimentos centrados apenas na Saúde é estar fadado ao insucesso.

As mudanças demográficas falam a favor da regionalização da atenção à saúde. O território, que é um espaço de relações sociais e econômicas, deve ser o sujeito de políticas publicas. Articular Atenção Básica, média e alta complexidade é urgente e necessário. E as políticas públicas não podem estar restritas ao setor Saúde, uma vez que a ocorrência de câncer está relacionada, também, a educação, renda e outros condicionantes e determinantes da saúde.

Tendo em vista que as ações de prevenção e controle do câncer geram resultados de longo prazo, qual sua avaliação do atual momento brasileiro?

Algumas medidas atualmente em curso, especialmente as de restrição de recursos, afetam fortemente a configuração do SUS e têm um impacto claro nos resultados de longo prazo. O Brasil não tem uma rede única de saúde, mas diversas redes – e algumas precisam de maior aporte de recursos que outras. A limitação de recursos levará ao acirramento das relações entre os entes federados e, consequentemente, a um desafio para a integração e a cooperação entre os mesmos – o que é fundamental para um sistema de saúde bem sucedido. As redes de serviços extrapolam as circunscrições político-adimistrativas dos entes federados e, em um cenário de escassez, a competição estará exarcebada e a capacidade de captação e de solução será reduzida.

Estamos em um momento muito difícil. Prospectivamente, não advogo a favor de cenários pessimistas para as políticas sociais no Brasil. Penso em um cenário intermediário,  marcado pela tensão entre a política social e a econômica. Entretanto, mesmo nesta perspectiva, o SUS está fortemente ameaçado. Caso a PEC 55, que tramita no Senado e prevê a imposição de teto para os gastos públicos, seja aprovada, o subfinanciamento crônico de nosso sistema de saúde será aprofundado. Na prática, isso significa a redução da autonomia do SUS e de sua capacidade de responder adequadamente às demandas de saúde da população brasileira. Com limites financeiros para a expansão da rede, como a universalização irá se comportar? O impacto não será percebido de imediato, mas certamente será evidente nos próximos 20 anos.

Como estudos de prospecção estratégica do futuro, como os desenvolvidos pela rede Brasil Saúde Amanhã, contribuem para o enfrentamento do câncer em longo prazo?

Discutir cenários é fundamental ao planejamento. Dentro do sistema de saúde, as ações de detecção e controle de câncer têm reflexos que não são, necessariamente, percebidos de imediato. O que se faz hoje poderá ter seus  efeitos identificados em uma janela de  20, 30, 40 anos, principalmente quando a meta for a redução da mortalidade. Por isso, o trabalho de prospecção estratégica de futuro é fundamental, especialmente em termos de pesquisas que busquem identificar o que é mais custo-efetivo para o sistema de saúde brasileiro.

As neoplasias são hoje a segunda causa de morte no Brasil – depois das doenças cardiovasculares e seguidas da violência, em terceiro lugar. Cabe a nós, pesquisadores, buscar novas soluções e propor alternativas de médio e longo prazo que contribuam para aumentar a capacidade de resposta e de autonomia de todo o sistema de saúde. Temos problemas que são velhos conhecidos e cujo agravamento está previsto. Pensar soluções significa minimizar impactos negativos, construir pontes capazes de ampliar a capacidade de resposta do sistema de saúde e absorver um segmento populacional de maior risco e que ainda hoje permanece à margem . Estamos falando de um país desigual, com grupos de risco diversos. Necessidades diferentes precisam ser atendidas de formas diferentes.

Renata Leite
Saúde Amanhã
14/11/2016