A possibilidade de um futuro seguro e próspero para o Brasil após a emergência de saúde pública causada pela Covid-19 foi a tônica do seminário on-line “Conversando sobre o Brasil pós-pandemia”, promovido pela iniciativa Brasil Saúde Amanhã, dia 9 de novembro, com transmissão on-line pela VideoSaúde Distribuidora da Fiocruz. Participaram do evento o escritor, historiador, compositor e Babalaô Luiz Antonio Simas; a antropóloga Rita Segato, professora emérita da Universidade de Brasília (UnB) e membro do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO); e a socióloga Adelia Miglievich-Ribeiro, professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), onde coordena o Núcleo de Estudos em Transculturação, Identidade e Reconhecimento. Com a participação do sanitarista Paulo Gadelha, coordenador da Estratégia Fiocruz para a Agenda 2030 e ex-presidente da Fundação, o debate foi dinamizado pelos pesquisadores José Noronha, coordenador executivo da rede Brasil Saúde Amanhã, e Leonardo Castro, da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz).

“Inauguramos hoje o ciclo de debates ‘Saúde Amanhã: O que somos, o que seremos?’. Convidamos três pesquisadores que têm trabalhado com a abordagem de pensar o Brasil a partir de sua ancestralidade, de nossas raízes, para conversar sobre o que será do Brasil após essa pandemia que desorganizou um conjunto de valores coletivos em todo o mundo e no nosso país em particular”, apresentou José Noronha, que é pesquisador do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz). Antes de iniciar o evento, o coordenador executivo da rede Brasil Saúde Amanhã homenageou o sanitarista Hésio de Albuquerque Cordeiro, liderança da Saúde Pública brasileira, que faleceu dia 8 de novembro.

Paulo Gadelha situou o debate no contexto da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, da Organização das Nações Unidas (ONU), que coloca 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) para 2030. “Estamos em pleno processo de uma pandemia que tem caráter disruptivo. Quando discutimos os cenários futuros, geralmente abordamos questões ligadas à economia, à tecnologia, aos efeitos das iniquidades, com muito pouca atenção aos aspectos antropológicos desse contexto. Reconhecemos que os ODS só têm materialidade e significado quando os remetemos à nossa História, à nossa cultura, à nossa visão como indivíduos e coletividade. E este encontro é um momento privilegiado para isso”, pontuou o ex-presidente da Fiocruz.

Leonardo Castro expôs a situação dramática que o Brasil vive durante a pandemia. “Os dados oficiais já contabilizam mais de 160 mil brasileiros mortos por Covid-19 – e sabemos que este número deve ser ainda maior. Projeções indicam que o nosso PIB sofrerá uma retração de 5% a 6% em 2020. No último trimestre, a taxa de desemprego chegou a 14,4%, são cerca de 14 milhões de desempregados e 40 milhões de trabalhadores na informalidade e precariedade. Esse quadro retrata uma parte da realidade brasileira, mas há outras possibilidades para pensarmos o futuro de nosso país após a pandemia. Sobre isso vamos conversar hoje”, adiantou o analista do Centro de Estudos, Política e Informação sobre Determinantes Sociais da Saúde da Ensp/Fiocruz .

Conversa sobre o Brasil ontem, hoje e amanhã


Para iniciar a conversa sobre o passado, o presente e o futuro do Brasil, Adelia Miglievich-Ribeiro percorreu a obra do pensador Darcy Ribeiro. “Darcy, que se reconhecia como um latino-americano, nos fala sobre três formações identitárias. Os povos-testemunho, que que sobreviveram às invasões do período colonial e ao decorrente choque cultural; os povos transplantados, que migraram da Europa sobretudo para a América do Norte, trouxeram instituições, religiões, crenças, símbolos e não mudaram em nada, ou quase nada, a sua cultura e os seus modos de viver. E os chamados povos novos: nós, brasileiros, e também os colombianos, venezuelanos, caribenhos, que inauguraram novas etnias e identidades”, resumiu a socióloga.

Adelia destacou duas instituições marcantes na formação identitária do povo brasileiro, segundo Darcy Ribeiro. “O cunhadismo foi uma prática muito presente na história e cultura brasileira: dar uma mulher indígena para o colonizador. Cada colonizador tinha direito a fazer muitos casamentos, então eram muitas mulheres dadas. E a ninguendade resume a ideia de que ‘nós nascemos de ninguém’”, explicou, encerrando sua fala com um convite: “Quero ressaltar que o legado de Darcy Ribeiro não deve ser considerado definitivo. Ele nos deixou uma tarefa: prosseguir, discordar e ir em frente; fazer um pensamento autônomo”.

Após a exposição de Adelia, Luiz Antonio Simas afirmou, provocativamente, que “o Brasil deu certo”. “Nosso país foi projetado para ser o que é: desigual, hétero-patriarcal, concentrador de renda, encarcerador dos corpos não brancos. E tudo isso funcionou. Um projeto bem sucedido da colonialidade. O que precisamos, urgentemente, é que o Brasil comece a dar errado”, disparou o historiador e Babalaô, que emocionou os participantes ao recitar cantos de religiões de matriz africana e relacioná-los ao debate teórico em curso.

Para Simas, “o problema é que o Brasil não está numa encruzilhada. Deveria estar”. O Babalaô explicou que a encruzilhada é um ponto de chegada e não um labirinto, onde se está perdido. “A encruzilhada, em várias culturas, é o lugar do extraordinário. Os gregos ofereciam oferendas à deusa Hécate na encruzilhada. No Antigo Testamento, o profeta Ezequiel vê o rei da Babilônia consultar a sorte numa encruzilhada. Gil Vicente, no Auto da Fadas, fala da feiticeira que realizava seus feitiços numa encruzilhada. O padre José de Anchieta relata que os indígenas faziam oferendas numa encruzilhada. Na tradição do blues norte-americano, Robert Johnson fez um pacto com o diabo numa encruzilhada. Para os violeiros de São Gonçalo do Amarante, em Portugal, a encruzilhada também é o lugar do pacto com o diabo – e nela pode-se fazer o pacto com São Gonçalo para transformar-se em um violeiro com destreza. Nas culturas afrobrasileiras, a encruzilhada é o reino, por excelência, do poder transformador de Exu e das pombagiras”, descreveu Simas.

O historiador enfatizou que o passado é uma tarefa a ser construída. “Precisamos disputar o futuro, o presente e o passado. É uma temporalidade que se conecta o tempo todo. É preciso mergulhar nas sabenças que são trazidas pelas florestas, pelas águas, pelos povos originais. Quando damos esse mergulho, fazemos a conexão do passado com o presente o futuro”, apontou Simas. Para o escritor, num cenário pós-pandemia, será preciso travar uma batalha política e poética pelo encantamento dos corpos e da cidade. “O corpo encantado, liberto da domesticação, é o corpo que se coloca disponível para o extraordinário, para o encontro com o outro, com a outra. Na perspectiva de uma episteme da encruzilhada, é preciso encantar o saber canônico. É verdade que ‘penso, logo existo’. Mas, também, a gente dança, logo existe; a gente bate tambor, logo existe”, disse o Babalaô.

Emocionada, a antropóloga Rita Segato compartilhou sua história de vida, trabalho e pesquisa. “Meu Brasil, o Brasil que me recebeu, é o Brasil de Xangô. Meu materialismo dialético se transformou drasticamente quando conheci Xangô do Recife. Era impossível continuar sendo materialista depois dessa experiência. Tudo o que aprendi na Universidade Buenos Aires, todo aquele positivismo, ruiu. Mas eu me desterrei do Brasil, profundamente decepcionada. Sempre me vi num caminho solitário neste país, por isso me emociono com as falas de vocês. Se vocês fossem as vozes hegemônicas da academia brasileira, o desfecho seria diferente”, sentenciou a pesquisadora emérita da Universidade de Brasília (UnB), onde conheceu Darcy Ribeiro.

Rita lembrou do pesquisador da Fiocruz Haity Moussatché, um dos cassados de Manguinhos, com quem conviveu no período de redemocratização do Brasil. “Ele me contava a história de uma grande botânica, referência na identificação e ilustração de plantas, que dizia que, ao se deparar com uma nova espécie, quem a reconhecia não era ela, a cientista, mas sim uma entidade espiritual. Percebemos, com essa história, que a grandeza do Brasil não está nas elites, não está nas universidades. Está na encruzilhada entre ciência e espiritualidade”, contou.

Ao responder a uma das perguntas enviada pelo público, Rita ressaltou o cuidar, atividade designada às mulheres e ao espaço doméstico, como um ato político. “O cuidar é político. O espaço doméstico, que nós mulheres habitamos por muito tempo, é político. Essa politicidade deve ser valorizada. Nós, mulheres, temos uma forma especial de atuar na produção de conhecimento e na política cotidiana. Nossa forma de gestão da vida tem impacto na coletividade. Nossa politicidade é diferente. É tópica, não utópica; é imanente, não transcendente; cuida e protege a vida, aqui e agora. Tem astúcia e inteligência. Tudo isso eu aprendi, também, no candomblé”, concluiu.