“É preciso adequar o padrão científico, tecnológico e de inovação do país ao modelo de sociedade que desejamos construir”. A avaliação é do economista Carlos Gadelha, coordenador das Ações de Prospecção da Fiocruz, onde lidera Grupo de Pesquisa sobre Desenvolvimento, Complexo Econômico e Industrial da Saúde e Inovação em Saúde. Nesta entrevista, o pesquisador apresenta as reflexões do livro “Brasil Saúde Amanhã – Complexo Econômico-Industrial da Saúde”, que traz saberes e olhares de dez autores sobre o sistema de Ciência, Tecnologia e Inovação. Organizada por Carlos Gadelha, Paulo Gadelha, José Carvalho de Noronha e Telma Ruth Pereira, a publicação será lançada em breve pela editora Fiocruz. Em síntese, Carlos Gadelha adianta: “Devemos inverter a lógica: em vez de questionar se o Estado de bem-estar cabe no PIB, é preciso entendê-lo como alavanca para um projeto de desenvolvimento dinâmico, equitativo, inovador e inclusivo”.

O livro parte da premissa que as políticas públicas para a Saúde devem articular o avanço do conhecimento tecnológico com o desenvolvimento produtivo nacional e com a promoção das condições de saúde da população. Qual o papel do CEIS neste processo?

Unindo saberes e olhares de pesquisadores e profissionais de diferentes áreas, o livro nos mostra que o tema do desenvolvimento nacional exige uma abordagem transdisciplinar e, ao mesmo tempo, convergente. Esta convergência está na aposta em uma perspectiva teórica e política de que é possível articular as dimensões social e econômica do desenvolvimento e subordinar a lógica financeira à sanitária. Neste livro defendemos que isto não apenas é possível, mas é necessário. Integrar as duas perspectivas é uma condição preponderante para construir um sistema de saúde universal no Brasil. Para isso, é preciso adequar o padrão científico, tecnológico e de inovação do país ao modelo de sociedade que desejamos construir. E o setor Saúde precisa estar presente nas discussões sobre o projeto de desenvolvimento do país, pois é parte inerente dele. O Estado de bem-estar deve ser a alavanca do projeto de desenvolvimento nacional.

O grande desafio do Brasil, sobretudo diante da crise dramática que estamos vivendo, uma crise econômica, política e institucional, é o de colocar o bem-estar não como um problema para o país, mas como uma oportunidade de desenvolvimento. A Saúde movimenta mais de 10% do PIB, índice que deveria ser ainda superior, se houvesse mais investimento do Estado. O setor emprega formalmente 16 milhões de trabalhadores e detém grande parte da capacidade nacional de geração de conhecimentos e patentes, por exemplo, em Nanotecnologia, Biotecnologia, Química Fina e Tecnologias da Informação, que conformam a quarta revolução tecnológica. É a Saúde que produz as inovações que vão determinar a inserção do Brasil na economia global do século 21. Então, em um momento em que se discute de forma míope se o Estado de bem-estar cabe no PIB, a Fiocruz e a rede Brasil Saúde Amanhã, por meio deste livro, vêm reforçar uma outra perspectiva: o Estado de bem-estar é parte da solução para o crescimento e o desenvolvimento do país a longo prazo, em termos econômicos, sociais e de inovação. Devemos inverter a lógica: em vez de questionar se o Estado de bem-estar cabe no PIB, é preciso entendê-lo como alavanca para um projeto de desenvolvimento dinâmico, equitativo, inovador e inclusivo.

Qual a importância da realização de estudos de prospecção de futuro do sistema de saúde, como os desenvolvidos pela rede Brasil Saúde Amanhã?

A perspectiva que integra a dimensão social, econômica, científico-tecnológica da inovação e da sustentabilidade faz parte do referencial conceitual e político da Coordenação de Prospecção Tecnológica criada nesta gestão da Presidência da Fiocruz. O projeto Brasil Saúde Amanhã, como lócus de geração de conhecimentos e formação de redes de pessoas, informações e instituições, é o espaço privilegiado para trazer o debate sobre os temas nacionais relacionados ao desenvolvimento para a agenda da Fiocruz. A riqueza deste livro está no reconhecimento de que pensar Saúde Coletiva e Saúde Pública, no Brasil, é também pensar a base de Ciência, Tecnologia e Inovação a longo prazo. É uma questão de soberania nacional. Se o país não tiver capacidade de orientar os rumos do progresso técnico e do avanço da Ciência, da Tecnologia e da Inovação, será totalmente vulnerável e dependente nestas áreas, inclusive para promover políticas de saúde que sejam universais, equitativas e integrais.

A variável social não é algo compensatório, ou complementar ao projeto de desenvolvimento. É parte intrínseca da dinâmica e do próprio modelo de desenvolvimento proposto. Articular a dimensão social, a econômica, a da sustentabilidade e a de inovação como parte do projeto de desenvolvimento nacional requer uma rede de pensadores e atores. A área Social e a Saúde Coletiva, em particular, precisam invadir o campo do desenvolvimento nacional. Temos muito a dizer sobre isso.

A médio e longo prazo, qual o papel do CEIS na construção de um Sistema Único de Saúde com universalidade, equidade e integralidade?

A inovação não é só uma técnica, é um processo de transformação social e institucional. O avanço científico e a efetiva autonomia tecnológica permitirão que o sistema de saúde se organize a partir das necessidades da população e não simplesmente obedeça à lógica de venda de produtos. O SUS é o maior sistema de saúde público e universal do mundo. Para sustentá-lo, sobretudo em um país de desenvolvimento tardio, como o Brasil, precisamos ter domínio sobre nosso próprio destino. Na sociedade contemporânea isso significa ter o domínio do conhecimento, da Ciência, da Tecnologia e da Inovação, para assumir também o controle do processo de incorporação de produtos e tecnologias ao SUS. Certamente, não teremos um Sistema Único de Saúde universal, equânime e integral com bases produtivas e de inovação frágeis.

A medicina personalizada pode ser uma estratégia para promover a universalização do acesso à saúde ou se tornar um elemento de cisão da sociedade, entre quem pode e quem não pode pagar. O trastuzumab, medicamento promissor para o câncer de mama em fase de metástase que foi incorporado ao SUS recentemente, é um exemplo. Somente 20% das mulheres são sensíveis à terapia; 80% não. Sem recursos da medicina personalizada para saber se uma paciente é candidata ou não ao medicamento, desperdiçaremos muito. Além disso, a ausência de um padrão tecnológico que promova a universalidade do sistema de saúde reforça o risco da judicialização, que pode levar à incorporação ao SUS de produtos e tecnologias que trazem mais malefícios que benefícios à população.

Quais as contribuições do CEIS para a garantia da soberania nacional e da autonomia frente a mercados globais?

O Complexo Econômico e Industrial da Saúde integra dois princípios constitucionais: a saúde como direito e o mercado como patrimônio nacional. Dentro do sistema produtivo da Saúde, o país deve fazer parte do núcleo de geração de tecnologias e de inovação e não ser mero coadjuvante e passivo consumidor de tecnologias geradas em outros países, para outras populações. É necessário superar o atual Estado de colonialismo de bem-estar, que se reduz à compra de produtos, e chegar de fato a um Estado de bem-estar autônomo e soberano. Esta é a grande aposta do CEIS.

Há um processo rico, no Brasil, em que a estrutura do SUS fornece as bases para que o mercado público se torne patrimônio nacional. Isso é fundamental para assegurar a autonomia e a soberania do país. Hoje 60% das patentes de biotecnologia são dominadas por 15 corporações internacionais. Sem capacidade científica e tecnológica própria, o Brasil e o SUS estarão à mercê de um oligopólio global orientado pelo lucro financeiro e não pelas necessidades de saúde da população. Ao contrário disso, na lógica do CEIS, olhamos primeiro para a Saúde Pública, para as necessidades da população, para então prever os produtos e tecnologias a serem desenvolvidos.

Em um país que está envelhecendo isso fica muito claro. O conhecimento e a tecnologia devem estar a serviço dos idosos, proporcionando o cuidado prolongado à saúde sem a imposição excessiva da medicalização, um problema sério em nossa sociedade. É muito mais saudável fazer exercícios e manter uma alimentação equilibrada que tomar remédios para o resto da vida para regular a pressão arterial. Não podemos permitir que a população idosa seja vista como oportunidade de mercado, para venda de produtos e serviços de alto valor e elevada rentabilidade.

Que políticas e ações são necessárias, no presente, para promover o fortalecimento do CEIS nas próximas décadas?

Um sistema de saúde que se pretende universal deve estar enraizado em todo território nacional, considerando as suas especificidades. Não podemos admitir vazios assistenciais e, da mesma forma, não podemos permitir que o núcleo de Ciência, Tecnologia e Inovação do país esteja concentrado nas regiões Sul e Sudeste ou em determinados estados. Hoje, 97% do conhecimento gerado em todo o mundo está nos países desenvolvidos e na China. Apenas 3% está em países com menor grau de desenvolvimento. Este padrão assimétrico se repete no Brasil, contribuindo para a manutenção de uma sociedade desigual. O setor Saúde e o seu Complexo Econômico e Industrial são parte ativa do modelo de desenvolvimento nacional e a regionalização da Ciência, Tecnologia e Inovação é um dos pilares para construirmos uma sociedade mais justa no futuro.

O CEIS  engloba três grandes subsistemas produtivos de inovação em saúde, que são interdependentes e requerem políticas públicas integradas. O primeiro é composto pelos serviços de saúde, onde toda produção e tecnologia em saúde se realiza e se torna riqueza material para a sociedade, ao ser incorporada como serviço de atenção, prevenção ou promoção à saúde. O segundo é o de indústrias de base química e biotecnológica em saúde, formado pelas indústrias de fármacos, vacinas, hemoderivados e diagnósticos. Está em franca e necessária expansão para que possamos cuidar cada vez melhor das pessoas. O terceiro é o subsistema de equipamentos e materiais e inclui toda a indústria de órteses, próteses, equipamentos para diagnóstico por imagem, como tomografia e ressonância magnética. Esses subsistemas são interdependentes. Os três estão presentes, por exemplo, em um transplante: na sala cirúrgica estão o serviço, com profissionais de saúde especializados; o imunossupressor, que é o medicamento; os equipamentos de diagnóstico. Um bebê numa UTI neonatal também usa, ao mesmo tempo, serviço, medicamento, equipamento. Por isso as políticas públicas devem ser integradas.

Considerando o atual momento político e econômico do país, quais os cenários possíveis para o Complexo Econômico e Industrial da Saúde nas próximas décadas? 

Há muitas oportunidades. O primeiro ativo do país, que a mediocridade atual vê como problema, é um sistema de saúde universal. Em um país que tem o direito à saúde garantido pela Constituição Federal, com universalidade, equidade e integralidade, o mercado público da saúde deve ser a alavanca para o desenvolvimento tecnológico. Esta é uma política que envolve alto requerimento tecnológico, de inovação e de produção industrial. Portanto, é necessariamente uma política de Estado estruturante, de longo prazo. A nova geração de políticas industriais e de desenvolvimento para a área da Saúde deve ter como critério de apoio e fortalecimento do CEIS o atendimento às necessidades de saúde colocadas pelo novo perfil demográfico e epidemiológico do país.

É verdade que estamos longe de um quadro de estabilidade, sobretudo neste contexto de crise. Estamos vivendo, simultaneamente, a restrição de direitos, a redução de investimentos em Ciência, Tecnologia e Inovação, com o risco de prevalecer uma visão em que a política industrial e de inovação dispensa a seleção de áreas estratégicas. Nossa proposta é que a Saúde, junto a outras áreas sociais, justifique políticas de seletividade e de priorização de investimentos, por sua dimensão social e por sua importância em termos de inovação, de autonomia e de soberania para o desenvolvimento.

A inovação envolve incerteza. E essa incerteza não é só em relação aos produtos, mas às decisões governamentais, às políticas públicas. Neste cenário, o melhor caminho é fortalecer a coalizão que defende a saúde como direito e a inovação e o conhecimento como elementos de soberania nacional. Não podemos ter, separados, o grupo da Saúde Pública e o do desenvolvimento econômico e industrial. São dois lados da mesma moeda. Não há outra saída. É necessária uma luta política e social que considere a redução das vulnerabilidades em saúde como um passo decisivo para um país desenvolvido e um sólido Estado de bem-estar.

Bel Levy
Saúde Amanhã
15/05/2017