Teve início em 24/10 um evento que promete marcar os estudos sobre álcool e saúde pública no Brasil. Reunindo especialistas nacionais e internacionais sobre o tema, gestores públicos e representantes de organizações internacionais, o Seminário Internacional Álcool, Saúde e Sociedade, sediado na Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz) e no Museu da Vida da Fiocruz até 25/10, aborda de modo científico e totalmente baseado em evidências aspectos epidemiológicos, históricos e culturais do consumo de álcool, assim como as políticas públicas para combater o abuso da bebida no Brasil e na América Latina.
Em sua primeira manhã, o seminário teve como primeiro palestrante o vice-presidente de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde da Fundação, Valcler Rangel, que destacou que o seminário é mais uma iniciativa da Fiocruz para a abordagem científica do uso e das políticas de drogas lícitas e ilícitas, procurando minimizar os males sociais provocados pelo abuso das substâncias, mas sem se curvar a preconceitos ou políticas públicas que se mostraram fracassadas. “Há pouco mais de um ano, o seminário da maconha marcou a posição da Fiocruz sobre o tema, e é por meio de iniciativas assim que caminhamos para mudanças na legislação de drogas no poder legislativo e judiciário”, afirmou.
A fala seguinte foi da coordenadora interina de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas do Ministério da Saúde, Keila Kikushi, que, junto ao corpo técnico do ministério, está articulando um plano nacional de prevenção, cuidado, pesquisa legislação e fiscalização sobre drogas. Kikushi adiantou um pouco do plano, afirmando que ele envolverá outros ministérios como o da Educação e o da Casa Civil, e informando que uma ampla participação da sociedade está prevista. “O nosso plano se orienta por uma política do cuidado. Estamos estudando muito e queremos elaborar um plano democrático, discutido”, afirmou.
Em seguida, a coordenadora da Junta Nacional de Drogas do Uruguai, Victoria González, falou sobre as mudanças pelas quais têm passado o país desde que começou a orientar suas políticas de drogas em evidências científicas. “Este é um tema carregado de mitos e crenças. Hoje, contudo, chegamos ao fim do paradigma de guerra às drogas e repressão. Nossa orientação no Uruguai hoje é um paradigma de direitos humanos, saúde pública e redução de danos”, disse ela, acrescentando ainda que os cuidados sanitários devem andar juntos a avanços sociais.
A palestrante que veio depois, a assessora sênior para álcool da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas/OMS) Maristela Monteiro, garantiu ter altas expectativas para o seminário, que definiu como um potencial “ápice da carreira”. Citando uma tragédia familiar recente, na qual um jovem familiar seu sofre um acidente fatal envolvendo álcool, Monteiro disse que a aceitação ao abuso de álcool compromete o futuro de gerações de jovens. “Como poderemos ter líderes, se a aceitação à bebida em excesso forma os jovens”, ela disse.
Último palestrante da abertura, o presidente da Fiocruz, Paulo Gadelha, destacou que, em um momento em que o país vive “um contexto adverso, com uma onda fundamentalista e conservadora crescente”, a Fiocruz se dispõe a colocar em debate “processos pouco discutidos”, baseando-se para isso em evidências. Gadelha lembrou que integra a Comissão Brasileira de Drogas e Democracia, que concluiu que não há provas científicas para definir quais substâncias devem ser lícitas e quais ilícitas, enfatizando mais uma vez do seminário da maconha, que avaliou os impactos da descriminalização da erva.
O presidente da Fundação afirmou ainda que “o álcool, por ser uma substância lícita, se coloca no lado oposto da proibição, oferecendo um contraexemplo [à maconha]. A bebida lembra que a descriminalização não é o passo definitivo nas políticas de drogas, uma vez que elas também levam a agravos”. Gadelha acrescentou que a propaganda “nos obriga a entender as estratégias de campanha, que seduzem jovens ao consumo abusivo”, e encerrou exaltando o compromisso institucional da Fiocruz de debater os temas “de forma embasada, sem medos nem tabus”.
Políticas contra o álcool: apenas restrição à disponibilidade é eficaz
A primeira conferência do evento ficou a cargo de Thomas Babor, professor da Universidade de Connecticut e autor do livro Alcohol: No Ordinary Commodity, considerado a maior referência já escrita no estudo sobre álcool, sociedade e saúde.
Babor afirmou que um equívoco comum no estudo de álcool é olhar apenas para a “ponta do problema”, isto é, para o indivíduo que abusa da substância, o que, segundo ele, ignora as causas do alcoolismo. Valendo-se da metáfora de um rio, o pesquisador se propôs a olhar não para sua foz, mas sim para mais próximo de sua nascente, que irá influenciar todo o fluxo posterior.
Dentre os fatores causadores dos problemas ligados a álcool, ele explicou, estão preços baixos, a fácil disponibilidade, uma cultura de bebida em excesso, estratégias de marketing agressivas e a ausência de controles regulatórios: “juntos, estes fatores produzem uma ‘tempestade perfeita’, que leva a epidemias, especialmente entre os jovens”, disse.
O pesquisador acrescentou que pesquisas empíricas provam que medidas educativas e de conscientização – os argumentos aos quais a indústria mais recorre quando questionada acerca dos males do alcoolismo – têm efeitos desprezíveis ou inexistentes sobre o consumo excessivo de álcool, e que apenas intervenções governamentais que restrinjam a oferta da bebida podem contrapor-se a isso.
Babor lembrou ainda de políticas públicas locais de sucesso no combate ao alcoolismo, incluindo a experiência brasileira em Diadema, município que viu redução brusca em seu nível de homicídios após ter limitado até 23h a venda de álcool, assim como a chamada Lei Seca no trânsito. Como exemplo negativo, ele se citou à venda de cerveja em estádios durante a Copa do Mundo de 2014, que foi contra a proibição nacional da venda de bebidas alcóolicas em partidas de futebol. “Ali, o poder da indústria global do álcool, dos patrocinadores da Fifa, ficou bastante evidente, sobrepondo-se às leis locais”, salientou. “É contra estes interesses que deve se colocar a ciência”.
Fiocruz