A água do seu banho demorado ou da lavagem da calçada com a mangueira é uma gota perto da quantidade utilizada em tarefas menos domésticas e muito mais grandiosas. Em tempos de escassez de recursos hídricos nos grandes centros urbanos, o debate sobre diminuir o consumo de água fazendo economia no chuveiro tira o foco de um cenário mais relevante e preocupante: o consumo de água virtual, aquela embutida em diversos processos de produção, em especial, de commodities agrícolas, para exportação, como a soja.  O Brasil comoum dos principais exportadores de commodities é também grande exportador de água virtual, mandando embora seus recursos hídricos e preservando os dos países importadores, que dão à água o valor que não lhe é dado aqui.

“Do ponto de vista do acúmulo de água disponível para consumo, representa muito pouco do ponto de vista global o quanto economizo diminuindo meu banho de dez para cinco minutos”, explica o pesquisador Ricardo Ojima, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), com pesquisas voltadas a urbanização, mobilidade e mudanças ambientais.  Veja-se, por exemplo, a distribuição do consumo de água no país: 70% para a agricultura, 20% para a indústria e 10% para o consumo doméstico. E, mesmo em relação ao uso doméstico da água, até 50% do desperdício deve-se a perdas na distribuição, não ao usuário final. “Perde-se na tubulação, por responsabilidade das empresas de distribuição e não na nossa torneira”, diz Ojima. “Claro que não vamos lavar a calçada todos os dias, mas isso é só a ponta de todo um processo de desvalorização da água, do qual não temos dimensão”.

Em estudo publicado em 2007, e cujos dados pouco se alteraram, Ojima e mais três autores observaram que o volume de água virtual exportado em commodities havia triplicado, em menos de dez anos, entre 1997 e 2005. A soja se destaca, com mais de 50 bilhões de metros cúbicos levados para fora do país, conforme registro de 2005. “As previsões são de que a água potável seja um bem muito escasso e que isso passe a ser motivo de conflitos de ordem bélica, de acordo com estudos da ONU” (ver reportagem da Folha de S. Paulo aqui).

Os cálculos envolvidos nas estimativas do volume de comercialização da água virtual são complexos. “Para estimar esses valores, deve-se considerar a água envolvida em toda a cadeia de produção, assim como, as características específicas de cada região produtora, além das características ambientais e tecnológicas”, aponta o estudo, que selecionou as principais commodities de exportação no Brasil, entre 1997 e 2005 – soja, carne e cana-de-açúcar – e, com base na quantidade de água necessária para produzir determinado número de toneladas de cada um desses produtos, estimou o total de água virtual exportada indiretamente com eles. “A soja, por exemplo, consome 2 mil metros cúbicos de água por tonelada, enquanto o plantio da batata demanda 300 metros cúbicos por tonelada”, compara Ojima.

Em relação à carne, cuja cadeia de produção é mais complexa, envolvendo mais etapas, da alimentação do gado à embalagem do produto, passando pelo abate, corte, limpeza e manutenção, um quilo do produto envolve quantidade de água suficiente para uma pessoa tomar banho por um ano. Esse gasto, no entanto, não é computado. “Ao exportar esses produtos, o Brasil está, também, exportando água”, diz Ojima. “A água não costuma ser valorada entre nós. Pagamos pelo serviço de distribuição e tratamento, mas não pela água em si”, explica. “O produto água só pagamos quando vem comercializada em garrafa e copinho. Do ponto de vista da exportação, a ideia seria começar a valorizar a água exportada junto com os produtos e sensibilizar a opinião pública em relação ao desbalanço na distribuição de recursos hídricos no mundo e no Brasil”, propõe.

Levar em conta o consumo de água virtual nos processos produtivos é importante para a tomada de decisões sobre investimentos e seus custos e aponta para a necessidade de mudança no modelo de produção. “Um investimento que use menos de água, e que tenha um mesmo valor comercial, com um mesmo ganho de produtividade poderia ser cogitado”, sugere Ojima, explicando que existem tecnologias que minimizam o consumo de recursos hídricos na agricultura. No entanto, como no Brasil não se valora a água para que seja cobrada, não se quantifica seu uso na produção.

O pesquisador considera que a percepção de que o Brasil é abundante em recursos hídricos, não é totalmente verdadeira. “A distribuição não é homogênea no território. As regiões que mais necessitam não são as que têm os maiores mananciais. E nas que têm, esses mananciais não são passíveis de serem explorados”, observa, citando como exemplo a Amazônia, que, no entanto, já entrou na mira dos produtores de soja. “A expansão das fronteiras agrícolas está entrando pelas bordas da Amazônia Legal. A soja vem sendo produzida ali. É o produtor indo buscar fontes de recursos hídricos para manter esse modelo de produção, com consumo altamente intensivo de água”, diz.

Com baixo volume de recursos hídricos e com processo econômico acelerado, a China é um dos grandes compradores de commodities brasileiras: toda a soja que China utiliza para alimentar seu gado é importada do Brasil, informa Ojima. Mesmo países que têm água suficiente para produzir internamente suas commodities são importadores. “O custo de importar é muito menor do que esgotar os próprios recursos produzindo soja. Economiza-se a própria água comprando soja de outros países. É uma estratégia geopolítica, que expressa o valor que aqueles países dão ao produto água”.

Para Ojima, o debate sobre a água virtual chama a atenção para a escassez de recursos hídricos e para a necessidade de que se cumpra a Lei nº 9.433, de 1997, que institui a Política Nacional de Recursos Hídricos. O pesquisador explica que a maior parte das bacias hidrográficas ainda não conseguiu implementar seus Comitês de Bacia, como prevê a lei, para descentralizar decisões. “A gestão de recursos hídricos não pode ser feita de forma centralizada, nem totalmente localizada. As decisões tomadas em relação a um rio em determinado município afeta os municípios vizinhos”, explica Ojima. Para o pesquisador, a gestão dos recursos hídricos “não está madura” em termos de discussão política. “Isso se reflete no pouco valor que a água tem na nossa sociedade”.

A legislação de 1997 passa a considerar a água como bem essencial para a sobrevivência, e trata da democratização das decisões sobre o uso da água, da gestão e operacionalização dos direitos de uso, bem como da cobrança pelo uso de água nas bacias. “Isso tem avançado muito pouco no Brasil, em termos de legislação e regulamentação”, considera Ojima. “Temos como cobrar pelo uso da água de forma diferenciada, pelos setores da economia – indústria, comércio, serviços, agricultura, doméstico. Isso reverteria para ações de melhoria da qualidade da água, retornando como redução de custos de tratamento, na qualidade”.

 

Fonte: CEE