O papel do setor Saúde no desenvolvimento do país e os desafios colocados para o Brasil pela Agenda 2030 das Nações Unidas estiveram em pauta na Fiocruz, dias 11 e 12 de setembro, durante o seminário “Saúde, Ambiente e Desenvolvimento Sustentável”, promovido pela rede Brasil Saúde Amanhã. Nesta entrevista, o economista Carlos Gadelha, coordenador das Ações de Prospecção da Fiocruz, analisa o contexto global e nacional e afirma: “O Sistema Único de Saúde (SUS) e o Complexo Econômico e Industrial da Saúde (CEIS) são as pré-condições – ou as únicas oportunidades – para que o Brasil atinja os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável até 2030. Eles não são problemas para o país. São parte indispensável da solução. Sem o SUS, não há desenvolvimento sustentável”. O pesquisador do Grupo de Inovação em Saúde da Fiocruz participou do primeiro painel de debates, “Desenvolvimento e Sustentabilidade”.

A Agenda 2030 articula diversas dimensões do desenvolvimento. Quais as questões colocadas para a Saúde?

A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável se constitui a partir de um conjunto de princípios aspiracionais, de valores globais que devemos perseguir enquanto humanidade. Ela propõe um modelo de desenvolvimento economicamente dinâmico, socialmente justo e que respeite as condições ambientais. Mas o processo de desenvolvimento, como diriam os estruturalistas brasileiros, não é natural. Não é um processo linear, uma consequência da evolução no planeta. Pelo contrário, a consequência natural da evolução no planeta é a desigualdade, a assimetria e a exclusão.

Nesse sentido, a Agenda 2030, que em última instância prevê a equidade, abre um conjunto de oportunidades, no campo acadêmico e na arena política, para a retomada de um projeto de desenvolvimento global, nacional e local. E seus Objetivos de Desenvolvimento Sustentável não serão cumpridos se continuarmos a seguir e reproduzir a estrutura excludente do capitalismo e sua lógica de mercado. É preciso haver um diálogo entre sociedade, Estado e mercado, nesta ordem, para que os interesses da sociedade se expressem no Estado e no mercado, de forma que a sociedade regule ambos – e não o contrário.

Essa perspectiva é muito cara à Saúde. Ela está presente em todo o legado de Sergio Arouca e na formação do campo da Saúde Coletiva, que é mais abrangente que a tradição da Saúde Pública. Entendemos que a Saúde não pode ser vista apenas como um sistema de cuidados e de tratamento de doenças, que agrega alguns indivíduos e exclui outros tantos. Deve ser um campo para a formação de sistemas nacionais que garantam à coletividade equidade, sustentabilidade e democracia. Todos esses valores estão na base da Agenda 2030. No Brasil, não podemos levantar essa discussão sem tratar de nosso Sistema Único de Saúde, sem pensar em como o SUS poderá, ao mesmo tempo, promover a equidade, ser compatível ao dinamismo produtivo, econômico e tecnológico e gerar um padrão solidário de organização da sociedade, de forma que ela não se divida entre quem pode e quem não pode pagar pelo acesso ao sistema de saúde.

Então o desenvolvimento sustentável passa pela Saúde?

Sim. A equidade está no DNA do SUS. Sem um sistema de saúde público, universal, gratuito e de qualidade, o Brasil não chegará aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável – nem em 2030, nem nunca. O papel do Estado é fundamental para que o acesso à saúde seja universal. Se em vez de um modelo de Saúde Coletiva, para todos, adotarmos uma política que fragmente o setor Saúde em um sistema público, para pobres, e outro privado, para ricos, estaremos na contramão da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável.

Há uma tradição arraigada no campo da Saúde que é a dos seus determinantes sociais. A partir dessa perspectiva, pensamos, por exemplo, como os nossos princípios e preocupações podem estar presentes em todas as políticas. Isso é fundamental. É o primeiro passo. O segundo, que abordarei de forma mais aprofundada no seminário “Saúde, Ambiente e Desenvolvimento Sustentável”, é considerar o setor Saúde como parte intrínseca de um padrão de desenvolvimento sustentável, que envolva dinamismo econômico, equidade e sustentabilidade ambiental. E, para isso, é imprescindível um sistema nacional de saúde, com acesso universal, como o SUS.

As áreas de produção industrial e de inovação também evidenciam como a Saúde invade a dimensão do desenvolvimento sustentável. Em todo o mundo, Saúde é uma área estratégica para os investimentos em pesquisa, desenvolvimento tecnológico e inovação. Cerca de um terço da pesquisa e da inovação mundiais estão na área da Saúde. Portanto, há uma interdependência entre a estrutura produtiva e tecnológica a ser adotada pelo país e o modelo de sociedade que se deseja construir. Dependendo da estrutura produtiva e tecnológica, podemos ter sociedades mais ou menos desiguais, mais ou menos sustentáveis. Por isso, é fundamental promover o diálogo entre as políticas industriais, de inovação e de infraestrutura e o campo da Saúde. Não podemos discutir a política nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação de forma descolada da Saúde.

Como o senhor avalia a trajetória global e nacional, desde 2015, na direção dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável?

O contexto geopolítico se alterou dramaticamente desde 2015, quando a Agenda 2030 foi formulada: tivemos um impeachment no Brasil, a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, fatos que não são isolados e cujas repercussões não são apenas locais. Sem dúvidas, o atual contexto de crise e instabilidade institucional do Brasil é desfavorável ao cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Vivemos um clima de perplexidade e de indefinição em relação aos rumos do padrão nacional de desenvolvimento e a questão não é se cumpriremos ou não a Agenda 2030. É preciso ir além: os ODS devem ser adotados como elementos estratégicos para a discussão de alternativas ao desenvolvimento nacional. Se os princípios da Agenda 2030 não estiverem presentes na luta por um Brasil mais justo e sustentável, ela se distanciará de nossa realidade de modo inexorável. E isso é o que torna esse referencial tão importante como instrumento de luta política: no horizonte de 2030, não podemos perder os ODS de vista.

Não é possível pensar um projeto de nação sem discutir a dinâmica global do capitalismo, o papel dos Estados e a reconfiguração da geopolítica global. Da mesma forma, há que se rediscutir o papel dos Estados nacionais, sobretudo os periféricos, como o Brasil, e a dimensão local, onde se realiza a interação do homem com a natureza.  Nesse sentido, entendemos o SUS como um projeto nacional, essencial para um padrão de desenvolvimento pautado pela equidade e a sustentabilidade. Portanto, para implementar a Agenda 2030, precisamos reconhecer, politicamente, que as metas colocadas para o setor Saúde requerem a organização de sistemas universais, em que o Estado tem papel fundamental. Não há sistema universal de saúde, no mundo, em que o Estado não financie, pelo menos, 70% dos gastos.

As metas colocadas pelos 17 ODS são viáveis, no atual contexto global?

Enquanto alguns críticos consideram a Agenda 2030 um referencial utópico – ou retórico – eu defendo que sua proposta se renova se revigora nos dias de hoje, pois os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável são espaço conceitual e político de luta, a ser preenchido no âmbito da rediscussão global de um projeto de desenvolvimento que seja economicamente dinâmico, socialmente justo, ambientalmente sustentável e que respeite a escala global, nacional e local.

A Agenda 2030 tem o mérito de propor um novo modelo de desenvolvimento, pautado por seus 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Esse mérito se acentua no atual contexto de crise global, nacional e local, pois a dimensão sistêmica proposta por suas metas requer ações estruturais, concretas, em todos os países. Entretanto, há alguns pontos em que essa iniciativa poderia ter ido mais além. Sua proposta é a equidade, mas o mundo é heterogêneo e desigual na distribuição de riqueza, na infraestrutura produtiva, na capacidade de inovação. Portanto, se visamos ao desenvolvimento sustentável, precisamos enfrentar as desigualdades globais, nacionais e locais – e isso poderia estar mais claro.

Ao meu ver, a dimensão sistêmica da Saúde precisaria ser enfatizada na Agenda 2030. As metas e os meios de implementação elencados para o campo da Saúde são extremamente pontuais, relacionam saúde ao tratamento de doenças e se pautam por indicadores clássicos, como a mortalidade materno-infantil. As outras metas são relacionadas à redução de Aids, tuberculose, malária, doenças tropicais – o que é fundamental. Mas o campo da Saúde vai muito além disso. Agora, é nosso papel tensioná-la para reduzir os bloqueios estruturais ao desenvolvimento e reconhecer os sistemas de proteção social – de saúde, educação, previdência – como essenciais ao bem-estar. Estamos falando de sistemas universais, como o SUS.

O Brasil está no caminho do desenvolvimento sustentável proposto pela Agenda 2030?

O tripé do desenvolvimento sustentável está em risco no Brasil. Na perspectiva da Economia, o ideal de política industrial e de inovação precisa ser revisto. Não há nenhuma experiência, em todo o mundo, em que o desenvolvimento social e econômico ocorra sem uma política industrial ativa, no sentido de uma diversificação produtiva e tecnológica que viabilize uma sociedade mais igualitária. Essa ponte precisa ser feita. Do ponto de vista social, vivemos o risco de fragilização dos sistemas de proteção social, dentre eles o nosso Sistema Único de Saúde. O horizonte de restrição de financiamento para o SUS nos próximos 20 anos é terrível, sobretudo para um sistema de saúde jovem como o nosso, em plena construção. E a dimensão ambiental, por sua vez, continua sendo vista como restrição e não como oportunidade.

Esse modelo de desenvolvimento é típico do século 19, de inícios do século 20. Hoje, é preciso pensar de outra forma. Um Estado que priorize a energia solar e a dos ventos em sua matriz energética, por exemplo, tem a oportunidade de estabelecer, por meio de políticas e programas que favoreçam essa diretriz, as condições necessárias ao desenvolvimento econômico, social, de novas tecnologias e de inovação. Um país orientado pela sustentabilidade ambiental, que preserva e investiga seus recursos naturais, pode encontrar em sua biodiversidade respostas para o desenvolvimento científico, tecnológico e a inovação em saúde. No Brasil, infelizmente, todo esse potencial está sendo desperdiçado.

Quais as ações necessárias, no presente, para que o país se aproxime do cenário proposto pela ONU para 2030?

A primeira questão é definir, por meio de políticas públicas, como subordinar o mercado à sociedade – e não o contrário. A área social tem que invadir o campo econômico, pois as políticas de inovação e de desenvolvimento industrial não pertencem apenas o universo da Economia, elas são impregnadas pelas questões sociais e ambientais. No entanto, o sistema produtivo e tecnológico nacional está trancado no passado. Ele não foi estruturado para uma sociedade mais inclusiva e sustentável. A Agenda 2030 pode ser a chave para a sociedade abrir essa tranca, pela via política. Essa tranca não é neutra, tem perdedores e vencedores. E não é somente uma tranca cognitiva ou técnica, mas de interesses políticos e econômicos que não permitem que nossa matriz produtiva, tecnológica e de inovação priorize os objetivos sociais.

O fato é que os sistemas universais de proteção social estão sob ataque, no Brasil e no mundo. Em nosso país, e no caso da Saúde, a longo prazo isso significará a intensificação das desigualdades e iniquidades, com a segmentação da sociedade entre os que podem e os que não podem pagar pelo acesso aos sistemas de proteção social. Teremos um sistema de saúde em que a maioria viverá menos, com pior qualidade de vida e morrerá mais cedo e poucos viverão mais, melhor e morrerão mais tarde. O caminho para o desenvolvimento sustentável é outro. Portanto, há que se rediscutir o papel do Estado e reorientar o projeto de desenvolvimento nacional, na direção da Agenda 2030. Isso não é utópico. Utopia é pensar que o mercado, sem qualquer interferência da sociedade e do Estado, criará as condições para o desenvolvimento sustentável.

Qual o papel do SUS e do CEIS nesse processo?

Se compreendermos a Agenda 2030 pela ótica da equidade, fica claro que sem o SUS não há desenvolvimento sustentável no Brasil. E sem um Complexo Econômico e Industrial forte, autônomo e soberano, não será possível manter um sistema de saúde público, universal, gratuito e de qualidade. O  SUS não é, e não deve se tornar, um conjunto médico fragmentado, voltado para o tratamento de doenças. O SUS é um sistema nacional, que opera a partir da premissa de que todos os cidadãos são iguais e que todos têm direito à saúde. Então, não podemos ter um sistema de saúde para os ricos e outro para os pobres. E com uma base produtiva e tecnológica que requer um país desigual, não teremos um sistema universal de saúde. Portanto, o CEIS deve ser parte do esforço do Estado em promover um sistema universal de saúde.

Subordinar o mercado à lógica solidária e ambiental proposta pela Agenda 2030 significa que não devemos pensar como produzir mais, mas sim em como organizar a estrutura produtiva nacional de forma a subsidiar os sistemas universais e, assim, o desenvolvimento sustentável. É o inverso da forma míope como a Economia vem tratando, tradicionalmente, o campo produtivo da Saúde.  Por meio da produção de fármacos, vacinas e kits diagnósticos, a Fiocruz nos mostra que esse caminho é possível, que é viável conjugar a produção industrial e a inovação ao atendimento das demandas sociais. O SUS e o CEIS são as pré-condições – ou as únicas oportunidades – para que o Brasil atinja os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável até 2030. Eles não são problemas para o país. São parte indispensável da solução.

Quais os efeitos da Agenda 2030 para a Fiocruz?

Como instituição estratégica de Estado, a Fiocruz está envolvida com o desenvolvimento social e econômico do país por meio de atividades de pesquisa, desenvolvimento tecnológico e inovação e, também, da articulação entre Saúde e desenvolvimento sustentável. Nesse sentido, a pergunta que temos colocado em nossos fóruns políticos e acadêmicos é como  transformar a visão de futuro proposta pela Agenda 2030 em políticas públicas no campo da Saúde e em políticas institucionais, na Fiocruz.

Entendemos que as forças de mobilização da sociedade, e de sua representação no Estado, precisam ser reanimadas com projetos de futuro. É a esse desafio que a Fiocruz busca responder com a sua Coordenação de Ações de Prospecção e iniciativas como a rede Brasil Saúde Amanhã, que com o seminário “Saúde, Ambiente e Desenvolvimento Sustentável” dá um passo importante no aprofundamento dessa discussão no campo da Saúde. Há uma convergência de valores: a Agenda 2030 é o campo propício para que possamos debater, no contexto global e nacional, as questões do desenvolvimento sustentável. E isso passa, necessariamente, pela discussão do papel da sociedade e do Estado na conformação da estratégia a ser adotada.

Nessa perspectiva, a Agenda 2030 tem o potencial de ser um movimento mobilizador e catalisador da sociedade para que se mudem os padrões institucionais, econômicos e sociais herdados do passado, que bloqueiam os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Ou esse compromisso global se tornará um agente de transformação, de mudanças, ou se tornará um instrumento retórico. Cabe a nós – às organizações da Saúde, aos intelectuais, à sociedade – uma tarefa educativa, de linguagem, de comunicação, de tornar todos esses termos, às vezes áridos, compatíveis ao entendimento de todos.

 

 

Bel Levy
Saúde Amanhã
10/09/2017