Entender o Sistema Único de Saúde (SUS) como espaço geográfico, conjunto indissociável de materialidades e ações que ao integrar o território brasileiro tem se realizado como um macrossistema, a um só tempo técnico e político. Essa é a proposta do pesquisador Luis Ribeiro, mais novo integrante da rede de conhecimento do projeto Brasil Saúde Amanhã. O geógrafo, que está em fase de conclusão do doutorado pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), expõe nesta entrevista como a Geografia e a Saúde se relacionam e como esta interação pode subsidiar políticas públicas necessárias para um sistema de saúde mais resolutivo e eficaz no horizonte de 2030.

 Quais as contribuições da Geografia para o campo da Saúde Pública? 

Um dos caminhos adotados se fundamenta no conceito de “situação geográfica”, já trabalhado por outros pesquisadores do tema da saúde e que nos fornece uma boa perspectiva para a leitura do SUS. Situação geográfica é a ideia de sítio mais ação, ou seja, o conceito propõe a reflexão sobre de que maneira as materialidades do território condicionam, mas não de forma determinista, as demandas, serviços e ações de saúde. Por “materialidades do território” entendemos desde a estrutura de Saúde disponível no território até a cultura e os saberes locais, que influenciam diretamente os processos de saúde. Buscamos pensar como uma materialidade de atendimento à saúde, herdada de forma corporativa do período da ditadura civil-militar, implica em limitações para um sistema de saúde universal e equitativo.

Consideramos, também, a vontade política predominante: continuar a fazer o que já é feito ou implementar novas estratégias. Essa leitura contribui, sobretudo, para estudar e trabalhar a regionalização – um dos princípios do SUS – que hoje se apresenta como um importante desafio para a organização do sistema. Em síntese: compreendemos o SUS como sinônimo de espaço geográfico, um sistema indissociável de objetos e ações, como território usado pelos mais diversos e desiguais atores, instituições, empresas e pessoas. Para as ações de saúde funcionarem no SUS é preciso haver uma base material correspondente. Por exemplo, enquanto norma e direito assegurado na Constituição Federal o SUS existe em todo o território brasileiro, contudo, ele se realiza distintamente nas regiões do país segundo as bases materiais disponíveis. Há áreas densas e áreas de vazios assistenciais. Mas além da desigualdade entre os lugares, expressão da desigualdade na dotação, no uso e no acesso às bases materiais do sistema de saúde, também há uma diversidade de usos que precisa ser percebida e fomentada pelo SUS.

 Como a sua pesquisa de doutorado aborda esta questão? 

A pesquisa, em fase de conclusão, avalia de que maneira o SUS – enquanto um sistema técnico-científico-informacional, verticalizante e normativo – dialoga ou não com os saberes e práticas locais e horizontais do território brasileiro. Para isso, analisamos a forma como o SUS de um modo geral e, mais particularmente, a Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos, de 2006, dialoga ou não com as práticas existentes nos diversos lugares do país, algumas inclusive já incorporadas desde meados dos anos 1980 pela saúde pública de diversos municípios. Daí analisarmos se a questão da incorporação das plantas medicinais e fitoterápicos no SUS tem propiciado a descentralização política, fomentando ou não outras lógicas de uso (econômico, cultural e político) do território brasileiro. Neste processo, identificamos o SUS como um macrossistema – que não se limita apenas à noção de um sistema técnico de grande dimensão. A escala “macro” supõe a noção de “poder” organizador do sistema, tanto de uma perspectiva motriz (da energia e circulação de ideias e objetos); quanto do poder político (redes de relações e grupos de interesse prevalecentes em seu ordenamento). O caráter macro também advém do fato de que o SUS promove a integração, para seu funcionamento, de um vasto e heterogêneo conjunto de sistemas técnicos (de produção, de comunicação, de circulação e de formação) bem distintos entre si, fazendo-se presente na vida cotidiana de toda a população brasileira, ainda que não seja percebido, ou seja, ainda que haja uma produção deliberada da “invisibilidade” do SUS que atende a interesses de alguns atores.

Notamos que se as práticas com plantas medicinais não portarem as variáveis de ciência, informação e norma, as mesmas não são incorporadas ao sistema. Quando há parceria com uma universidade ou alguma outra instituição de pesquisa, por exemplo, os fitoterápicos têm maior facilidade de serem inseridos no SUS. O que se tem notado é que os fitoterápicos e plantas medicinais que têm gozado de maior inserção no SUS são aqueles que fazem parte do rol de produção e comercialização das grandes empresas. Um processo de concentração e centralização da produção de plantas medicinais e fitoterápicos semelhante ao verificado no caso dos medicamentos e fármacos à base de síntese química. Portanto, constata-se a tendência de valorização e difusão do uso de fitoterápicos industrializados no SUS. Esse processo reafirma e atualiza uma sistematicidade (econômica, política e cultural) e determinados segmentos de atores – das universidades, dos centros de pesquisa, das empresas, dos mercados e dos órgãos de gestão – e não outros, não toda a diversidade que existe e que poderia imprimir maior vitalidade ao sistema.

 Como o SUS pode ser lido e avaliado a partir de uma perspectiva territorial?

A análise do SUS permite compreender a maneira pela qual o território brasileiro vem sendo usado por distintos atores, em suas diversidades e desigualdades. Também observamos o SUS como um macrossistema técnico que integra o território brasileiro. Destacando que o SUS figura entre os principais e pioneiros grandes sistemas técnicos brasileiros que estão nacionalmente integrados. Os sistemas de circulação fluvial, rodoviária e aérea, de comunicações, de defesa ou o sistema elétrico, embora integrados nacionalmente, não apresentam a mesma capilaridade que o de Saúde. Essa é uma importante contribuição do SUS para o país: ser um projeto de cidadania que, ao integrar um conjunto de materialidades, tem a capacidade de arrastar outras materialidades, ações, valores, direitos, cidadanias, modos de fazer e de produzir. Ao mesmo tempo, esse macrossistema apresenta uma inércia comandada pelo capital monopolista, representado pelo Complexo Econômico, Industrial e Financeiro da Saúde. Há uma lógica de mercantilização da saúde e de uso corporativo do território que condiciona o SUS, uma herança do período da ditadura civil-militar que ainda se faz presente. Até os anos 1970, não havia materialidade suficiente para um sistema de saúde efetivamente nacional. Nesta década intensificou-se a construção e expansão de centros de pesquisa, de serviços de diagnose e terapêutica, de unidades e centros de saúde, de unidades ambulatoriais e de hospitais. Embora muitos já existissem, é nos anos 1970 que eles passam a ter maior cobertura e capilaridade em âmbito nacional. E a constituição dessa materialidade justamente no período da ditadura contribuiu para que ela fosse passada para o controle de particulares, para ter uso corporativo.

Quando, na década de 1980, o SUS emerge como um projeto na contracorrente da onda neoliberal, que estava começando a tomar força no mundo, ele se depara com essa materialidade de uso corporativo. Lembrando que no caso da produção de equipamentos médico-hospitalares e insumos farmacêuticos, já nos anos 1930 havia iniciado o processo de desnacionalização e centralização da produção pelas grandes empresas estrangeiras, o qual se consolida na década de 1950. Esta, certamente, é uma das grandes dificuldades que enfrentamos até hoje para viabilizar o SUS como um sistema único e público de saúde. A falta de comando sobre sua base material (de infraestrutura de produção de serviços, de equipamentos e de insumos) inclusive dificulta a continuidade e realização do SUS enquanto projeto de cidadania amparado numa concepção ampliada e diversificada de saúde, que ultrapassa a noção de saúde como mero consumo ou apenas como ausência de doença. Uma concepção mais vital, mais vinculada à capacidade criativa da vida, ou seja, o SUS em sua dimensão pedagógica.

Como esta abordagem contribui para os estudos de futuro realizados pelo projeto Brasil Saúde Amanhã e quais os impactos desta rede prospectiva para o SUS? 

O projeto Brasil Saúde Amanhã tem uma importância vital pela possibilidade, que já vem sendo demonstrada, de levantar material e questões que subsidiem a ação estratégica, a ação ancorada no futuro. Tem a ver com pensar e agir pelo futuro e não apenas pelo passado: pensar o que queremos ser, onde nós queremos estar, apesar de ou contando com o que somos hoje e com o território que herdamos. O projeto tem contribuído, também, para fortalecer a articulação voltada para a compreenção e explicitação das pautas importantes a serem priorizadas e hierarquizadas em termos de ações, políticas e pesquisas. Isso é importante também para sabermos o que outras áreas estão pensando sobre a Saúde, no Brasil e no mundo. Sem essa integração, setores importantes podem acabar ficando fora de nosso campo de visão por conta do hábito ou das preocupações mais perenes do campo da Saúde. Essa articulação é fundamental para que as políticas públicas integrem as necessidades de diferentes atores. Somente desta forma poderemos revolucionar e não apenas minorar; realizar mudanças estruturais e não apenas conjunturais; interferir de fato no presente realizando outro futuro; ou seja, fazer com que as políticas públicas façam a diferença na Política.

Esse é o grande desafio: conjugar a pauta da Saúde com a de outros setores, como o da Comunicação, da Educação e o da produção de bens e serviços, por exemplo. O SUS tem dependido de uma comunicação melhor, mais eficiente, para poder se realizar como sistema voltado à cidadania. O projeto Brasil Saúde Amanhã nos inspira, assim, a importância de discutir a partir do futuro. Temos que discutir a partir do futuro porque é o futuro, mais que o passado, que comanda as ações. Nós, individualmente e como sociedade, somos projeto e agimos a partir do futuro. Para um país que quer superar condições de desigualdade extremada e e uma série de mazelas, não há outra maneira de pensar e agir a não ser com vistas ao futuro. A geografia pode contribuir sobremaneira a essa importante tarefa: compreender a vida brasileira como tendência e como vontade, como território herdado e como território sendo usado estrategicamente.

Marina Schneider
Saúde Amanhã
19/01/2015