Assim como nos oceanos que cercam as ilhas, nadar nas águas revoltas da conjuntura exige bússolas teóricas e lemes éticos que orientem a travessia em meio às tempestades. Na conferência de abertura do X Congresso Brasileiro de Epidemiologia, celebrada na noite de 08 de outubro na Ilha de Florianópolis, (SC), Jairnilson Paim, professor titular do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (ISC/UFBA), ofereceu algumas delas para uma melhor compreensão dos interesses e ações que orientaram o Estado brasileiro nas políticas de saúde de 2007 ao atual momento, galvanizando ao final a força de uma imensa plateia pela defesa de um SUS forte, fruto da construção histórica e cotidiana da Reforma Sanitária brasileira.
Com o título “A Epidemiologia em defesa do SUS: mas qual SUS”, a conferência de Paim articulou conhecimentos consolidados em uma trajetória profissional de mais de 40 anos de maneira didática, sem ser simplista; embasados em modelos e argumentos complexos, mas acessíveis a todos os brindados com esta oportunidade.
Ao revisitar criticamente a história do SUS, entre avanços e impasses em seus 29 anos de implementação, Paim localizou as contribuições da Epidemiologia, “que nasceu, em sua face mais expressiva, em relação com a Saúde Pública brasileira e que tem funcionado como um meio de trabalho para os sanitaristas, e não como propriedade privada dos especialistas”, uma importante característica para o conferencista e que, entre outros aspectos, marcam essa comunidade epistêmica. Frisou também o que significa defender este sistema de saúde, que nasceu da luta popular e de um movimento historicamente determinado e constituído. “Defender o SUS hoje significa especialmente resistência contra as forças obscuras que estão presentes na conjuntura atual”.
As variadas facetas do SUS – o legal, que está na Constituição e nas leis orgânicas da saúde; o real, do dia a dia dos serviços; o democrático, construído nos debates e intervenções do movimento sanitário; e o para pobres, como ainda persiste em muitas concepções, estiveram na fala de Jairnilson Paim. O docente relacionou programas de saúde, mapas e dados epidemiológicos para apresentar os vetores positivos, como inscrição dos valores civilizatórios da igualdade, democracia e emancipação no fazer saúde; descentralização e crescente distribuição da rede de serviços; forte arcabouço institucional; avanços nas diversas estratégias de vigilância em saúde; e ampliação da cobertura da Atenção Primária em Saúde (APS), bem como os valores negativos em atuação e que criam espaços de desconstrução do SUS, dentre os quais destacou a limitada base social demonstrada; a oposição da mídia ao Sistema; a resistência de boa parte da categoria médica, e todo o arcabouço ideológico do capital e da doutrina neoliberal, que se traduz no desmonte relativo do Welfare State nos países europeus, na defesa do modelo cobertura universal em saúde em detrimento dos sistemas universais, e na reprodução do modelo biomédico hegemônico.
Estado e interesses de classe: O balanço apresentado, no entanto, não esvazia a necessidade de um esforço analítico para entender os avanços conquistados e os limites impostos. Para isso, Jairnilson recorreu ao postulado da coerência, construto desenvolvido pelo argentino Mario Testa e retomado pelo também argentino Leonardo Federico, chamando atenção para como este modelo ajuda na compreensão dos caminhos e descaminhos dos governos nos países latino-americanos no estabelecimento de propósitos para a reprodução de seus interesses, assim como os métodos e a organização que eles acionam para a garantia dos mesmos.
Jairnilson detalhou o modelo de Testa, que estabelece papeis desempenhados pela forma Estado ao longo da história: o de articulação da classe dominante, que efetua seus propósitos de governo por meio da democracia formal e de políticas focalizadas; o de desarticulação da classe dominada, cujo governo é marcado pelo uso da repressão física e simbólica; e o de garantia de reprodução da classe dominada, com uma atuação governamental voltada para transformação, com políticas de igualdade e universais.
Com uso dessa lente, o decano analisou os pontos altos das políticas de saúde dos últimos dez anos, contando a partir do segundo mandato do presidente Luis Inácio Lula da Silva. De 2007 a 2010, mesmo que mantido o tripé macroeconômico das metas de inflação, câmbio flutuante e superávit primário e sem o enfrentamento do sub-financiamento do SUS, esse período trouxe avanços para o sistema, como aumento do acesso e ampliação da APS; o que Jairnilson nomeou como “o SUS em banho maria”, expressão cunhada por Lígia Bahia.
A primeira gestão do governo Dilma é entendida pelo pesquisador como um ensaio desenvolvimentista, com ampliação das políticas sociais focalizadas, como o PAC e o “Minha casa, minha vida” e políticas anticíclicas, mas que permitiu ataques ao SUS, como a rejeição da Emenda Popular Saúde + 10; a abertura do setor saúde ao capital estrangeiro; e o Orçamento impositivo; o que se agravou no terceiro movimento, com o turbulento e curto segundo mandato de Dilma e a ascensão pelo golpe parlamentar do governo Temer, comprometido com o desmonte dos direitos sociais e do SUS por meio da aprovação da Emenda Constitucional 95 em dezembro passado e a liberação dos apresentados “planos populares”, de Ricardo Barros, primeiro ministro da Saúde declaradamente anti-SUS. “Que medo eles têm de nós”, pontuou Jairnilson.
Em sua análise final, o decano relacionou como as estratégias de crescimento e legitimação do segundo mandato do governo Lula e o primeiro de Dilma esbarraram em interesses do grande capital, e que, mesmo cumprindo o papel de articulação da classe dominante permitiu a articulação também das classes dominadas, uma oposição radical ao governo atual, interessado centralmente ampliar base parlamentar com o apoio da grande mídia e sustentação de empresários e rentistas, atuando para isso com medidas repressivas, valendo-se de teorias implícitas da desigualdade e por meio da violência simbólica. “A EC 95 é a mais radical das intervenções, junto às PECs das reformas trabalhista e previdenciária e da lei das terceirizações, apontando para um “SUS reduzido” ou um simulacro de SUS”.
Como estratégias possíveis e necessárias ao momento, o decano destacou a importância da comunidade da Epidemiologia realizar estudos de monitoramento das desigualdades diante do Novo Regime Fiscal e em manter a militância sócio-política para a crítica e constituição de sujeitos para o SUS democrático. “Temos de recusar esse simulacro do SUS. Se o Estado sabota o SUS constitucional e limita os direitos sociais, resta à sociedade civil avançar nas lutas por um SUS democrático, universal, público, com qualidade, integral e efetivo para todos; pela regulação e controle efetivo dos planos de saúde e da saúde suplementar e pela redução das desigualdades, e pela defesa e radicalização da democracia. Essa radicalização significa identificar possíveis convergências para reforçar a luta pelo direito à saúde e enfrentar a visão obscurantista que se avizinham e que tem se mostrado ruidosas nos últimos acontecimentos que envolveram a questão da arte. Não é possível ter cultura, educação, ciência, tecnologia e inovação sem liberdade. Então a defesa maior do SUS é a defesa da democracia e da liberdade, pois assim se constitui e constrói uma grande nação”, encerrou Jairnilson Paim, sendo ovacionado pelo público.
Fonte: Abrasco