O barulho não foi pouco. Mas, apesar dele, a nova Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) foi aprovada no dia 31 de agosto, data que, coincidentemente, marcou um ano do impeachment de Dilma Rousseff. Com pouco mais de 15 minutos de duração, o rito de pactuação na Comissão Intergestores Tripartite (CIT) não teve muito debate. Por lá, o consenso em torno das mudanças já tinha se formado há algum tempo. O bode estava fora da ampla sala em formato circular, cenário das reuniões mensais entre Ministério da Saúde, Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems). A massa crítica contra a nova PNAB se formou longe dali, e rapidamente. Em pouco mais de um mês, foi capaz de chamar atenção de todos os grandes veículos da mídia nacional para os riscos de dissolução da face mais conhecida e bem avaliada do Sistema Único de Saúde: a Estratégia de Saúde da Família (ESF).
A revisão da PNAB, têm repetido os gestores, é fruto de um longo processo de discussão que remonta a 2015. As mudanças propostas, rebatem entidades científicas, conselhos profissionais e sindicatos, só vieram a público no último 27 de julho. E em um contexto bastante simbólico: quando já estavam prestes a ser aprovadas pela CIT. Na ocasião, o Conselho Nacional de Saúde solicitou aos gestores que a nova Política não fosse pactuada sem a realização de uma consulta pública. Colocado no ar no dia seguinte, o documento provocou uma reação em cadeia. Em questão de horas, se multiplicaram notas de repúdio ao seu conteúdo. Pesos pesados do setor, como a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), o Centro Brasileiro de Estudos da Saúde (Cebes) e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) entraram em campo, ganhando espaço na imprensa para as críticas. Foram seguidas por Rede Unida, Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade e Frente Nacional Contra a Privatização da Saúde. Os conselhos de Enfermagem (Cofen), Odontologia (CBO), dentre outros, marcaram posição contra. Duas organizações de trabalhadores – a Federação Nacional dos Agentes Comunitários de Saúde e de Combate às Endemias e a Federação Nacional dos Enfermeiros – entraram na Justiça Federal para barrar a nova PNAB. Em reunião aberta feita no Rio de Janeiro em 9 de agosto, os conselheiros nacionais de saúde recomendaram que o processo de revisão não deveria ir adiante sem um amplo debate com a sociedade.
O governo, por sua vez, entrou com força na disputa de versões. Horas antes do término do prazo para o envio de contribuições para a consulta pública – 10 de agosto –, a imprensa foi chamada à sede do Ministério da Saúde. “Convocamos a coletiva para pedir a colaboração dos senhores. Há uma desinformação e reação de setores alegando prejuízos que não existem, pelo contrário”, disse o ministro Ricardo Barros, dando o tom da reação. Ali, o conjunto de propostas de um documento que ainda estava sob crivo público foram anunciadas como certas, sendo a principal a decisão de que, com a nova PNAB, o governo federal passaria a financiar todas as iniciativas municipais de atenção básica, abrindo mão do papel que desempenha desde a década de 1990: induzir a adoção de políticas por meio de incentivos financeiros. “Vamos passar a financiar o real”, declarou Barros. “A realidade se impõe”, reforçou Jurandi Frutuoso, secretário-executivo do Conass.
A “realidade”, como se sabe, permite diferentes interpretações. Algumas delas permanecem atuais mesmo depois da aprovação da PNAB. Elas dizem respeito aos sentidos da nova Política. “A revisão da PNAB está inserida numa discussão mais ampla que não tem sido devidamente feita pelos gestores. Estamos assistindo a uma flexibilização de regras que tem relação direta com a recessão econômica que fez com que houvesse queda da arrecadação nos três níveis de governo”, observa o economista Francisco Funcia, membro da Comissão de Orçamento e Financiamento do Conselho Nacional de Saúde (Cofin/CNS). Quem olha para os números parece não ter muita dúvida de que essa história começa na ponta do lápis. “É como se fosse uma moeda de troca. A União, de um lado, restringe ainda mais as condições financeiras dos municípios mas, por outro, dá flexibilidade no uso dos recursos federais. Os municípios estão reivindicando autonomia para direcionar prioridades em função dos cortes que terão que fazer – porque, certamente, eles farão cortes. É o que já está acontecendo no Rio de Janeiro. E isso tende a se agravar nos próximos anos, com a Emenda Constitucional [EC] 95”, pontua a especialista em gestão e relações intergovernamentais Luciana Lima, da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz).
Passando a régua
A variável mais conhecida dessa equação atende pelo apelido de ‘Emenda da Morte’. Promulgada em 15 de dezembro, a Emenda Constitucional 95 não só congela como diminui os recursos federais nos próximos 20 anos. As perdas projetadas para a saúde são de R$ 417 bilhões no período. “A única hipótese de manter o bolo de recursos para a saúde no mesmo tamanho de 2017 é se a EC 95 proibisse a população de crescer e de envelhecer até 2036”, ironiza Funcia, completando: “Do contrário, custos crescentes decorrentes de tratamentos de saúde para os idosos, combinados com o crescimento da população apontam que a despesa per capita vai cair e o atendimento vai ser precarizado. Sem contar que a inflação no setor é maior do que no restante da economia, enquanto a regra prevê a correção [de um ano para o outro] pela inflação geral”.
Mas o que isso tem a ver com estados e municípios? É que dois terços do orçamento do Ministério da Saúde são transferências para esses níveis de governo. Além disso, o pano de fundo que tornou possível a aprovação da draconiana EC 95 não é indiferente às demais esferas governamentais. A recessão econômica, que atingiu em cheio o setor público, tem como ponto de partida a queda na arrecadação de impostos e tributos. Isso aconteceu devido ao desaquecimento da economia, mas também graças às bilionárias desonerações tributárias concedidas ao setor privado. Com menos dinheiro entrando, os governos têm tido dificuldades em honrar compromissos e fazer investimentos. Atrasam pagamentos de fornecedores, parcelam salários e aposentadorias e não conseguem pagar juros e encargos das dívidas. O governo federal é o credor de boa parte das dívidas estaduais. A equipe econômica capitaneada por Henrique Meirelles impôs obrigações para os estados em calamidade financeira – hoje três – que precisam renegociar seu pagamento. Dentre elas, um teto para os gastos públicos estaduais nos moldes da EC 95. Com isso, a perspectiva de manutenção das políticas sociais fica comprometida nos níveis federal e estadual.
O efeito cascata, é claro, recai sobre os municípios brasileiros. Um estudo divulgado em agosto pela Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan) mostrou que 86% deles enfrentaram dificuldades fiscais em 2016. É o pior resultado desde o início da pesquisa, em 2006. O levantamento mostra que 57,5% de um total de 4.544 cidades analisadas estavam em situação fiscal difícil. O número de prefeituras em situação crítica, à beira da insolvência, caiu de 1.969 em 2015 para 1.292 (28,4%) em 2016. A queda, contudo, se deu porque 1.024 municípios não divulgaram dados, contra 381 na mesma comparação. Na análise por regiões, quase 95% das cidades nordestinas enfrentam problemas nas contas públicas. No país, 715 prefeituras (15,7%) encerraram o ano sem caixa para cobrir as despesas do ano anterior, entre as quais duas capitais: Campo Grande e Goiânia.
No Rio, o prefeito Marcelo Crivella (PRB), que assumiu o governo com promessas de expansão dos investimentos na saúde, anunciou em fevereiro que o déficit nas contas chegava a R$ 3 bilhões. Os cortes no orçamento, de R$ 700 milhões este ano, já estão afetando a atenção básica. Funcionários contratados por Organizações Sociais (OSs) – que administram quase metade dos serviços do município – começaram a ter salários atrasados em fevereiro. Em agosto, a mobilização de trabalhadores e usuários impediu que a prefeitura fechasse 11 unidades básicas de saúde.
A PNAB se encaixa nesse cenário. As prefeituras, proporcionalmente, são as maiores responsáveis pelo financiamento do SUS. Há vários anos, os municípios vêm comprometendo cerca de 35% do orçamento próprio com despesa em ações e serviços públicos de saúde. A União, segundo o último relatório do Conselho Nacional de Saúde, sequer cumpriu o mínimo constitucional em 2016, aplicando pouco menos de 15%. No financiamento da atenção básica, o desequilíbrio é maior.
Segundo Andreia Passamani, que representou o Conasems em audiência pública realizada na Câmara dos Deputados no dia 22 de agosto, a despesa líquida municipal foi, em média, de R$ 48,74 bilhões em 2016, enquanto as transferências federais ficaram em R$ 16,59 bi. Assim, as prefeituras entraram com 65% dos recursos da atenção básica e o Ministério com 34%. Também quando o assunto é o financiamento da Estratégia de Saúde da Família a conta dos municípios é mais salgada. Cada equipe custou R$ 40.755 em 2014. O Ministério da Saúde financiou algo em torno de R$ 13 mil – entrando com 33% do investimento. Sobrou para os municípios R$ 26 mil, ou 66%. De acordo com Hêider Pinto, que esteve à frente do Departamento de Atenção Básica (DAB) do Ministério no governo Dilma Rousseff, um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) encomendado pela pasta concluiu que para cada real da União repassado para a atenção básica, o município tem que aportar entre R$ 1,20 a R$ 1,60. Além disso, a Saúde da Família é o componente de financiamento federal que mais implica em exigências e mais precisa ser complementado pelas prefeituras.
Por quem os sinos dobram
Em 2011, o mesmo Ipea analisou a percepção da população sobre cinco tipos de serviços prestados pelo SUS. O atendimento por equipe da Estratégia de Saúde da Família foi o mais bem avaliado: 80,7% dos entrevistados consideraram o serviço muito bom ou bom. Apenas 5,7% opinaram que esse atendimento é ruim ou muito ruim. A Saúde da Família está em 74% dos municípios e sua cobertura alcança 63% dos brasileiros. Por ter ampliado o acesso ao cuidado até os rincões mais longínquos e melhorado os indicadores de saúde, a ESF é considerada por especialistas o grande trunfo do SUS junto à população.
À primeira vista, as diretrizes que dão corpo ao programa parecem fáceis de serem adotadas em qualquer situação. “Ao invés de gastar em remédios caríssimos, você previne. É melhor fazer exercício do que botar um stent no coração”, ilustra Eleonor Conill, pesquisadora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e do Observatório Ibero-Americano de Políticas e Sistemas de Saúde. A premissa, assentada na promoção e na prevenção da saúde, se estende para a educação e a participação popular: “Mas, para isso, as pessoas têm que ser estimuladas e tem que ser dadas condições. Isso se faz com articulação comunitária, criando grupos de monitoramento de risco, de várias formas”. O que, por sua vez, pressupõe vínculo entre profissionais de saúde e usuários. “A atenção básica é a porta de entrada. É o primeiro contato, é onde você tem um médico que te conhece a vida inteira, te acompanha. E por isso as pesquisas demonstram que, por te conhecer mais, ele pede menos exames e prevê melhor os seus riscos. Vai te tratar melhor, te mandar menos para o hospital. E, se mandar, vai querer te tirar de lá o mais rápido possível. Isso faz um sistema de saúde ter melhor resultado em mortalidade e, ao mesmo tempo, conseguir cortar custos”, explica.
Pesquisas nacionais e internacionais demonstraram que na comparação entre a Estratégia de Saúde da Família e o restante da atenção básica desenvolvida no Brasil, o primeiro tem resultados muito superiores: reduz internações, encaminhamentos, solicitação de exames supérfluos, assim como prescrição de medicamentos e procedimentos desnecessários. E interrompe quadros de agravamento de diversas condições de saúde. “É um valor em muito superior à economia que aparece à primeira vista em uma análise mais rasa que desconsidera os efeitos econômicos no sistema e também negligencia o objetivo maior: a qualidade da atenção à saúde e resultados na qualidade de vida do cidadão”, escreveu Hêider Pinto em um dos muitos textos em que tem analisado as mudanças da nova PNAB.
Não é à toa que diversos países em diferentes contextos históricos fizeram a opção por criar um tipo de serviço de saúde local que não se resume a um prédio com profissionais de plantão. E também não é à toa que o conceito que dá sentido a um certo tipo de organização de práticas e ações de saúde – a atenção básica – seja muitas vezes usado com sentidos contraditórios. Quando surgiu, nos anos 1970, o conceito serviu para inspirar a criação de sistemas de saúde nacionais universais. Já na década seguinte, a crise econômica mundial retorceu seus objetivos. O marco desse processo é um relatório de 1983 em que o Banco Mundial recomenda a governos de países em desenvolvimento que adotem a atenção básica sob a forma de um pacote restrito de serviços dirigidos à população pobre – e deixem todo o resto a cargo do setor privado. Mais tarde, nos anos 2000, o pêndulo volta a se aproximar do sentido original da atenção básica. “Sempre vai haver – e está havendo – uma disputa de modelo assistencial. A ideia de atender as pessoas de modo mais integral vai contra toda a indústria de especialidades, de equipamentos, de medicamentos, e é permanentemente isso que está em jogo”, diz Eleonor.
A revisão da PNAB, alertam pesquisadores, está levando o conceito para mais longe do SUS e mais perto do mercado. “A gente retorna a um discurso dos anos 1990, com o qual nos debatemos. Não que ele tenha sido completamente extinto na década de 2000 ou 2010, mas teve muita força, esteve muito associado ao primeiro momento de formulação do Programa Saúde da Família. E na correlação de forças os defensores do SUS universal, público, estratégico, de uma atenção integral foram ganhando. Houve um reequilíbrio que conseguiu apontar, pelo menos na atenção básica, para o horizonte da universalidade, da integralidade. Mas a nova PNAB desregulamenta questões fundamentais e propicia que a seletividade retorne – e com mais força”, contextualiza Márcia Valéria Morosini, professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) que vem acompanhando os sinais emitidos por gestores no processo de elaboração da nova Política desde o ano passado.
Rumo ao desmonte?
A ESF, que nasceu como Programa Saúde da Família (PSF) em 1993, tem sua trajetória marcada por essas disputas e contradições. O Sistema Único de Saúde tinha sido criado apenas cinco anos antes no bojo do movimento que ficou conhecido como ‘reforma sanitária’ que se lançou no desafio de conceber uma arquitetura institucional e administrativa inédita no país. “Durante muito tempo, existiu um grande vazio no modelo assistencial que só viria a ser resolvido com a implantação do PSF”, retoma Eleonor Conill. E quando o ‘vazio’ começa a ser preenchido, é sob a lógica de um programa centralizado.
Parte importante dos argumentos apresentados pelo Conasems para defender a revisão da PNAB dizem respeito às amarras desse centralismo. “Qual é a forma de fazer possível em cada local? Tem que ser local. Tudo que a gente falar aqui vai estar errado no primeiro município que a gente olhar. Esse é um problema nosso. A gente faz portarias e torna não conforme a portaria o mundo inteiro. Porque a gente idealiza o mundo e tenta fazer ele dessa maneira”, criticou Nilo Bretas Júnior, assessor técnico da entidade, durante a coletiva de imprensa do dia 10 de agosto.
Luciana Lima destaca que a reivindicação dos municípios por maior autonomia na condução das políticas e na gestão dos recursos financeiros não é novidade e perpassa toda a trajetória do Sistema Único. “O Conasems alega que o Ministério da Saúde tem demonstrado uma postura mais aberta para atender essas reivindicações”, situa. Contudo, a pesquisadora da ENSP lembra que existe um elemento que não pode ser desconsiderado: “Eu me refiro à tensão que se coloca para constituir um sistema de saúde que é nacional e universal numa federação com as características do Brasil”.
São 5.570 municípios e 27 estados, contando com o Distrito Federal. Quase 70% das cidades brasileiras têm menos de 20 mil habitantes em um país que já ultrapassou a marca das 200 milhões de pessoas. Sessenta por cento dessa população se concentra em apenas 304 municípios. São as cidades com mais de 100 mil habitantes. Essas prefeituras mais poderosas não são a regra – mas a exceção. “A maior parte são municípios pequenos têm dificuldade de arrecadar recursos próprios e limitações para arcar com as responsabilidades colocadas para eles na Constituição. Eles são fortemente dependentes do aporte federal”, conta Luciana.
Desde a implantação do SUS, a União usou seu poder financeiro para dar alguma ordem à geleia geral. Dessa forma, garantiu ao mesmo tempo que quase todas as cidades tivessem uma porta de entrada para o Sistema Único sob um mesmo modelo para a atenção à saúde. “É a forma que o Ministério encontrou para garantir o caráter nacional desse sistema”, pontua ela. No caso da atenção básica, quem implanta é o município. Segundo Luciana, que estudou o assunto no doutorado, no início dos anos 2000, mais da metade das cidades tinha no PAB, o Piso de Atenção Básica, a principal fonte de recursos orçamentários.
Assim, o financiamento da atenção básica se desdobrou no PAB fixo e no PAB variável. O primeiro é um valor per capta que, desde 2013, está estacionado em R$ 24 ao ano por pessoa. Todos os municípios recebem, independente de adotarem ou não a Estratégia de Saúde da Família. Já o PAB variável é usado para induzir a implantação de programas, sendo o mais importante a ESF. O que está em jogo com a nova PNAB é justamente a flexibilização do PAB variável, que vai passar a financiar todo tipo de arranjo organizacional que existe na atenção básica. “A nova PNAB está dando flexibilidade para eles direcionarem os recursos que recebem – o único que recebem, em geral – da forma como quiserem”, alerta Luciana, e completa: “Mas num país como o nosso, algum nível de governo tem que assumir essa regulação. No caso do Brasil, foi a União. Se o governo federal abre mão desse papel, quem vai assumir?”, questiona.
Uma possível resposta seria ‘os estados’. Contudo, a analista alerta que a nova PNAB também mexe nas atribuições estaduais de controle e fiscalização do que acontece nos municípios. “Os estados são ainda mais fragilizados. Vai se criar um vácuo de regulação, minando a possibilidade de uma coordenação mais ampla do Sistema Único. A própria ideia de sistema fica comprometida”, avalia Luciana. Também para Francisco Funcia, a nova PNAB abre a porteira para que cada município faça uma atenção básica segmentada e pouco articulada entre si. “O Ministério da Saúde se transforma em um agente financeiro, que só manda o recurso”, diz.
Incentivo às avessas
Os gestores têm repetido que a ESF continua sendo a “estratégia” prioritária. “A gente reafirma que o Saúde da Família é a estratégia prioritária. Nós não vamos trair o SUS. Estamos muito bem, com muita gente nesse sistema, para agora tomar posição diferente”, declarou Jurandi Frutuoso na coletiva de imprensa do dia 10. Mas, de olho nas mudanças da nova PNAB, as fontes ouvidas pela Poli alertam que a Política traz alguns mecanismos que podem estimular a substituição das equipes de Saúde da Família já implantadas pelas chamadas ‘equipes de atenção básica’ –composta por médico, enfermeiro e técnico ou auxiliar de enfermagem. “A nova PNAB garante uma flexibilidade muito maior na conformação das equipes de atenção básica. Não tem parâmetro de cobertura, não tem parâmetro de composição e o parâmetro de carga horária é por categoria profissional e não por trabalhador”, explica Márcia Valéria Morosini.
Segundo ela, ao mesmo tempo em que financia o modelo tradicional de atenção básica sem impor contrapartidas, a nova Política endureceu uma regra para a ESF. Na última PNAB, aprovada em 2011, o governo federal flexibilizou a carga horária do médico. Enquanto todos os profissionais da equipe de Saúde da Família deveriam cumprir 40 horas, o médico podia ser contratado por 30. A mudança atendia a um pedido dos municípios, que afirmavam que era difícil fixar o médico no interior ou mesmo contratar esse profissional para atender na periferia das grandes cidades. A nova PNAB volta atrás, e fixa as 40 horas do médico da Estratégia de Saúde da Família. Só que as outras equipes podem ter profissionais trabalhando apenas 10 horas. Uma equipe de atenção básica pode ter três médicos, sendo que dois cumprem 10 horas e o terceiro cumpre carga horária de 20. E três enfermeiros, três técnicos de enfermagem…
Contudo, os gestores têm argumentado que esse modelo de equipe atenderia aos princípios e diretrizes da atenção básica, tal qual a Saúde da Família. Para Hêider Pinto, um arranjo do gênero demonstra que não. “Pode não conhecer sua população; funcionar em regime de pronto-atendimento; ter trabalhadores que nunca conseguiram fazer sequer uma reunião, que dirá atuar em equipe; e ter um atendimento no qual cada vez em que o usuário vai à unidade é atendido por um profissional diferente quebrando dois dos mais importantes fatores para a qualidade da atenção básica: o vínculo e a longitudinalidade do cuidado (a relação próxima, responsável e humanizada com o paciente e o acompanhamento dele)”, escreveu.
Nessas equipes, não há agente comunitário de saúde – trabalhador cuja presença foi reduzida também na Estratégia de Saúde da Família. Sobre isso, Márcia Valéria nota outra mudança que diz respeito ao caráter universalista da política. Isso porque na PNAB de 2011 o parâmetro de cobertura da população pelas equipes de Saúde da Família aparecia colado ao agente comunitário de saúde. Funcionava assim: o mínimo de agentes por equipe era quatro e o máximo 12 para o atendimento de 100% da população de um determinado território. Cada agente se vinculava a até 750 pessoas. “Cada vez que se atingisse o número máximo de agentes atendendo ao número máximo de pessoas você fechava a equipe e abria outra porque o horizonte era 100% de cobertura. Se eu não tenho esse horizonte, o que vai determinar o número de equipes a serem implantadas?”, questiona ela. E explica: “O que eles fazem agora? Colocam a meta de 100% de cobertura somente para territórios vulneráveis. Além de não definir que territórios são esses, quando você diz que só garante isso para uma parte da população, você está se descomprometendo com a universalidade, que é um princípio estruturante do SUS”.
Já o ex-diretor do DAB afirma que a nova PNAB prejudica as regiões Norte e Nordeste, além dos municípios menores e mais pobres. Partindo de informações sobre a cobertura disponíveis em bases de dados do Ministério, Hêider estima que existam hoje aproximadamente oito mil equipes tradicionais no país que cobrem efetivamente 11% da população brasileira – contra o número de 40% divulgado pelos gestores. Segundo ele, 5,7 mil dessas equipes (72%) estão nos cinco estados mais ricos da federação: São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Paraná. Já os estados nordestinos somariam 778 equipes (menos de 10% do total) e os estados do Norte apenas 500 (6%).
Passando para o perfil das cidades brasileiras, os números também demonstram um desequilíbrio. Aproximadamente 70% dos municípios do país têm até 20 mil habitantes. Destes, apenas 121 (3%) têm equipes tradicionais. Também só 28% das cidades que têm entre 20 e 50 mil habitantes, seriam beneficiadas. Elas equivalem a 15% dos municípios brasileiros. Ou seja: 69% das equipes tradicionais estão concentradas nas cidades com mais de 50 mil pessoas (821 municípios).
Cada equipe da ESF recebe, no mínimo, R$ 7.130 do Ministério da Saúde. Partindo do número, ele traça uma hipótese: se, com a nova PNAB, as equipes tradicionais receberem metade desse valor, isso exigiria um incremento anual de R$ 341 milhões no PAB variável. “Um recurso que iria 72% dele para cinco estados, que são os mais ricos da federação, e para 15% dos municípios, aqueles com mais de 50 mil habitantes”, escreve Hêider, e provoca: “É contraditório que gestores dos 85% de municípios que nada têm a ganhar com essa lógica de financiamento serem a favor da nova PNAB”. Para ele, a contradição também se resolve na ponta do lápis: mesmo recebendo R$ 3.565 a menos, o gestor municipal pode ver vantagem em demitir os agentes comunitários de saúde – que, em média, são seis por equipe. Com isso, ele deixaria de complementar algo em torno de R$ 3 mil – sem contar insalubridade e outros auxílios. “O valor que deixaria de ser gasto já ‘compensaria’ a redução do recurso repassado”, conclui.
O ex-diretor do DAB acredita ainda que os gestores vão promover uma guinada na maneira de se contratar profissionais para as equipes da atenção básica que trará impactos negativos na qualidade. “É evidente que é mais barato contar com um médico e um enfermeiro que não precisa estar o dia inteiro na unidade e nem todos os dias da semana (…) ao qual não se cobra a realização de visita domiciliar, a programação do cuidado aos grupos de maior risco e vulnerabilidade, a participação na organização da equipe e o atendimento integral da população”.
Eleonor Conill, alerta: “A flexibilização pode transformar o SUS em algo mais fraco do que é. Nesse contexto flexibilizar é abrir mercado para os planos populares, paras as clínicas populares. E vai abrir porque as pessoas vão precisar de atendimento”. A pesquisadora acredita que não existem soluções mágicas: “O SUS precisa de mais recurso”.
Realismo mágico
“É possível trabalhar com economia, buscando eficiência e eficácia dos serviços para fazer mais com o mesmo recurso”, garantiu o presidente reeleito do Conasems, Mauro Junqueira, em um evento realizado no Palácio do Planalto no dia 13 de agosto. A declaração, em perfeita sintonia com a bandeira da gestão de Ricardo Barros – primeiro ministro da saúde a não defender a ampliação do financiamento para o SUS –, parece apontar uma guinada no diálogo da entidade com a população, como se os gestores municipais tivessem se adaptado a um ‘novo normal’. Ou, para usar a palavra que entrou em voga com a defesa da reformulação da PNAB, à ‘realidade’.
No evento, o ministro anunciou o remanejamento de R$2 bilhões para a atenção básica e a pasta tem divulgado que tem ampliado os investimentos nesse nível de atenção tem sido uma prioridade da gestão. Com base nos dados oficiais do primeiro semestre, Francisco Funcia alerta que nada na execução financeira e orçamentária até 30 de junho aponta para isso. Segundo o economista, as despesas federais com saúde vêm caindo em termos reais nos últimos anos. Informações dos relatórios de gestão do Ministério mostram que na comparação entre os primeiros quatro meses de 2016 e 2017, o desembolso financeiro (recursos efetivamente transferidos) cresceu 1%. “Portanto, teve queda real já que a inflação está em um patamar de 3,5%”, explica Francisco Funcia. Segundo o economista, no período houve queda de 10,25% nos recursos repassados para atenção básica.
Esses números, no entanto, não têm vindo acompanhados de uma cobrança incisiva por mais recursos para o SUS. Por exemplo, pela recomposição do PAB fixo que não recebe aumento desde 2013. “O PAB fixo vai, de fato, perdendo importância no montante de recursos destinados pelo Ministério da Saúde para o financiamento da atenção básica”. Por meio do PAB fixo, o município poderia ter maior flexibilidade no uso, por exemplo fazer os ajustes necessários da Estratégia de Saúde da Família à realidade local. “Complementar de alguma forma, contratar outros profissionais que sejam necessários, desenvolver outras estratégias de adaptação desse modelo nacional a sua realidade. É muito estranho os municípios não estarem reivindicando isso”, comenta Luciana Lima, que destaca que a pauta municipal sempre foi casada: mais autonomia e mais recursos. “Agora, parece que é só mais autonomia”.
E foi sob a bandeira de maior autonomia – não por acaso pouco tempo depois da promulgação da EC 95 – que os gestores fizeram uma primeira tentativa de flexibilizar os recursos da saúde. “Está tudo articulado”, pontua Funcia. No dia 26 de janeiro, a CIT pactuou mudanças na forma como os recursos federais são transferidos para prefeituras e estados. A proposta extingue o modelo no qual os recursos federais saem de Brasília carimbados para serem necessariamente aplicados em certos programas, ações e serviços. Isso acontece por meio dos chamados blocos de financiamento, que atualmente são seis: atenção básica, média e alta complexidade, assistência farmacêutica, vigilância em saúde, gestão do SUS e investimento. Com a mudança, os gestores queriam criar duas grandes categorias: custeio, para manter funcionando o que já existe, e capital, que envolve novos investimentos.
Apesar de ter sido aprovada na CIT, a medida não foi à frente. Analistas ouvidos pela Poli relatam que a extinção dos blocos foi questionada dentro do próprio governo, pela área econômica e de controle. “A definição dos blocos não ganha adesão dentro do governo. A Fazenda é contra. Só quem está disputando essa pauta é o Ministério da Saúde. O que isso tem a ver com a PNAB? Como eles não ganham pela definição financeira, precisam ganhar pela política, desregulamentando o máximo que puderem”, avalia a ex-conselheira nacional de saúde Liu Leal. Membro do Cebes, ela capitaneou o debate da PNAB no CNS. Luciana Dias concorda: “Com a revisão da PNAB, o efeito esperado com a mudança dos mecanismos de transferência vai se concretizar na prática. A maior parte dos municípios recebe mesmo PAB fixo e PAB variável, é a principal fonte, então, atende o interesse”.
Mas por um momento, segundo Liu, pareceu que todos esses esforços iam fazer água. Isso porque, junto com a crise econômica, a crise política é outra lente fundamental para analisar qualquer assunto no país hoje. Com a PNAB não seria diferente. O evento no Planalto do dia 13 de julho, por exemplo, foi um dos ingredientes que acelerou a aprovação da Política. Na ocasião, Ricardo Barros entrou em rota de colisão direta com as poderosas entidades médicas brasileiras. “Muito sinceramente, o senhor [presidente Michel Temer] sabe que sou uma pessoa muito pragmática e clara. Vamos parar de fingir que pagamos o médico e o médico vai parar de fingir que trabalha”, disse o ministro. “A necessidade de aprovação a jato da PNAB entra aí como moeda de troca. Teria sido uma articulação do ministro com o Conasems em reação ao movimento dos médicos, que pediram a saída de Barros. Nesse processo, ele tenta buscar fôlego no lugar em que ele tem força política, que é junto aos municípios”, avalia Liu.
No Conselho Nacional de Saúde, os gestores tinham afirmado pouco tempo antes, em 7 de julho, que a PNAB ainda estava em uma fase “piloto”. A entidade instituiu no começo do ano um grupo de trabalho para debater a revisão composto por um representante de trabalhadores, três usuários e um gestor. “O gestor nunca foi à reunião do GT e não nos disponibilizava os documentos que estavam em discussão na CIT”, conta Liu, emendando: “Quando tivemos acesso ao primeiro documento, fomos ao pleno do conselho apresentar. Os gestores – que em nenhum momento apresentaram as mudanças no Conselho – afirmaram que o documento que nós discutimos era uma versão antiga e que nossos apontamentos que alertavam que as mudanças significam desregulamentação, desuniversalização e privatização eram um delírio. O delírio foi tão grande que em três semanas, aquele documento virou uma minuta pronta para pactuação”.
A pedido do presidente do CNS, Ronald Santos, os gestores colocaram o documento em consulta pública. O prazo inicial (28/08), de dez dias, foi estendido para quase duas semanas e a consulta se encerrou em 10 de agosto. Ao todo, foram 6.281 contribuições; 60% delas dos trabalhadores, 27% dos usuários e 8% dos gestores. A composição e o arranjo das equipes foi o ponto que recebeu o maior número de propostas de mudança, seguida por 1.981 posicionamentos contra a revisão da PNAB.
O Conselho também promoveu uma reunião aberta no Rio de Janeiro. A nova PNAB foi debatida ao longo de todo o primeiro dia do encontro. O controle social recomendou aos gestores que nada sobre a revisão da PNAB fosse decidido sem um amplo processo de debate, que deveria, inclusive, aproveitar toda a mobilização entorno da 1ª Conferência Nacional de Vigilância em Saúde – uma vez que um dos objetivos declarados da nova PNAB é a integração entre vigilância e atenção à saúde. Segundo o Conselho, faltou esclarecer objetivamente os impactos assistenciais e econômicos da revisão. Também não foram apresentados estudos ou projeções que embasassem as propostas de mudança. A entidade informou que pretende analisar a nova PNAB. Caso não aprove a Política, afirma que ela pode ser revogada pelo legislativo. A conferir os próximos capítulos.
Fonte: EPSJV